sábado, 14 de novembro de 2020

Marcha

As ordens da madrugada
romperam por sobre os montes:
nosso caminho se alarga
sem campos verdes nem fontes.

Apenas o sol redondo
e alguma esmola de vento
quebraram as formas do sono
com a ideia do movimento.
Vamos a passo e de longe;
Entre nós dois anda o mundo,
com alguns vivos pela forma,
com alguns mortos pelo fluido.
As aves trazem mentiras
de países sem sofrimento.
Por mais que alargue as pupilas, 
mais minha dúvida aumenta.

Também não pretendo nada
senão ir andando à toa,
como um número que se arma
e em seguida se esboroa,
- e cair no mesmo poço
de inércia e de esquecimento,
onde o fim do tempo soma
pedras, águas, pensamento.

Gosto da minha palavra
pelo sabor que lhe deste:
mesmo quando é linda, amarga
como qualquer fruto agreste.
Mesmo assim amarga, é tudo
que tenho, entre o sol e o vento:
meu vestido, minha música,
meu sonho, meu alimento.

Quando penso no teu rosto,
fecho os olhos de saudades;
tenho visto muita coisa,
menos a felicidade.
Soltam-se os meus dedos tristes,
dos sonhos claros que invento.
Nem aquilo que imagino
Já me dá contentamento.

Como tudo sempre acaba,
oxalá seja bem cedo!
A espera que falava
tem lábios brancos de medo.
O horizonte corta a vida
isento de tudo, isento...
Não há lágrima nem grito:
apenas consentimento.

Poema de Cecília Meireles retirado do livro Flor de Poemas, Coleção Poiesis, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 7ª Edição, 1983.

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