domingo, 29 de novembro de 2020

Trecho 41 de Arnaldo Antunes

 O vidro quebra mas não derrete. O plástico derrete mas não quebra. Assim são os óculos. Estrutura plástica para lentes de vidro. O espelho mostra, o vidro deixa ver. Assim são os vidros. O mármore é usado nos túmulos. A madeira polida não solta farpas. As bolhas quando estouram não deixam cacos. O vidro não apodrece, nem na umidade, nem debaixo da terra. Depois de anos enterrados os mortos míopes, sobram apenas os ossos e os óculos. E quando não restarem mais os ossos ainda estarão intactos os óculos. Se o vidro for negro os olhos desaparecem. Assim são os óculos escuros. Mostram mas não deixam ver. O ferro cromado não enferruja. O vidro da janela retém a chuva mas deixa passar as cenas. A água parada espelha como prata. Assim é a água. Se houver luz de um só lado o vidro espelha, como a água parada. A prata depois de anos preteja. Assim é a prata. A pedra quando afunda turva a água. Assim é a pedra.


Texto de Arnaldo Antunes retirado do livro as coisas, Editora Iluminuras, São Paulo, 2000.

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