A Mula Sem Cabeça teve uma ideia: convocar todos os personagens folclóricos a uma reunião para reivindicar o reconhecimento como cidadãos brasileiros de verdade.
- Somos tratados como se fôssemos meros produtos da imaginação de escritores, quando na verdade nós aqui estamos mais vivos do que nunca - dizia ela indignada a uma plateia lotada de celebridades literárias.
O Saci-Pererê foi um dos primeiros a reclamar:
- Prometeram institucionalizar um dia só meu e até hoje estou a ver navios. E eu aqui me equilibrando há séculos numa só perninha, meu gorro vermelho já furado e meu cachimbo há muito apagado. Exijo meu dia já!
Quem ocupou o microfone em seguida foi o Boitatá:
- A nova geração ao ouvir meu nome pensa que sou boi, quando na verdade sou uma cobra de fogo. Eu me chamo assim porque na língua tupi-guarani cobra se diz "mboi". Exijo reparação urgente.
Chega então a vez do Curupira:
- Vocês podem imaginar o quanto me custa manter pintados meus cabelos vermelhos, meus dentes verdes e andar com os pés virados pra trás despistando quem em persegue para só se referirem a mim como um mero anão? Exijo reconhecimento.
Tomou a palavra o Boto:
- Há séculos minha fama é a de sedutor de mulheres, eu que nem gosto muito de intimidades com os humanos, que vivo nos rios sem perturbar ninguém. Exijo minha reputação de volta.
Mais que depressa, a Cuca pega o microfone:
- Pior sou eu, que me chamam de mocreia, dizendo que pareço um jacaré e espalham que assusto crianças quando na verdade só as faço dormir. Exijo justiça.
E assim foi que um a um tomou a palavra expondo seu problema de forma que todos concordassem e aplaudissem. Os personagens não estavam brincando, queriam partir para a greve geral até que fossem atendidas suas demandas, caso contrário permaneceriam irredutíveis e cortariam a inspiração de escritores do populário cultural. Ou seriam cidadãos brasileiros com direitos trabalhistas iguais ou desapareceriam de vez dos livros. Organizaram um abaixo-assinado e mandaram para a Academia Brasileira de Letras.
Pouco depois, receberam a resposta oficial:
"Viemos informar por meio desta que não poderemos atender vossas postulações. Realizamos uma grande pesquisa em várias escolas e sentimos muito ao dizer que vocês foram excluídos da preferência literária dos alunos, sendo substituídos por super-heróis estrangeiros. Atenciosamente..."
Crônica de Rita Lee retirada do livro Dropz, Globo Livros, São Paulo, 1ª Edição, 2017.
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