Mãos abrasadas pela ansiedade ou pelas chamas itinerantes da tarde? Mãos de fogo consumindo-se de solidão. Por entre elas escorriam lancinantes alguns elos da corrente definindo Gustavo no que ele era, no seu próprio ser.
Deitado sob a árvore no canto mais recuado do quintal, a cabeça esmagando antigas notícias de uma revista, ele não vislumbrava horizontes, só sentia a vida que lhe doía. Não tinha esperança e o verde dos seus olhos diluía-se compreendendo tudo.
Os dedos passavam e repassavam os elos como quem desfia um terço áspero e incolor numa exploração exaustiva, revelando-se em gestos inconclusos, incendiados, indagativos: por quê? por quê?
Brigara com Aniette, a mulher, e não fora como de costume para o desabrigo das ruas onde os seus passos rangiam nas calçadas, enquanto ele repetia um estribilho de raiva e exasperação:
- Não volto mais para casa, não volto mais, não volto...
E quando os pés reclamavam repouso, entregava-se à mesa de um bar, terminando sempre refletido num copo vazio, em mais um sonho destroçado. Era quando os ventos da madrugada reconduziam-no para casa, somente eles impulsionavam os seus passos no itinerário da volta.
Naquele dia, também, não buscara refúgio na biblioteca como às vezes fazia, dissolvendo-se em letras que refeitas em palavras iam povoar as páginas dos livros por ele mal tocados. E havia aquele romance inacabado no qual sempre existiam fatos a acrescentar e a diminuir. Era ele o protagonista de uma história que era a sua e, ao mesmo tempo, não era. Pertencia ao mar que se despejava sem tréguas nas conchas das suas mãos? Ou o cachorro ladrando cheio de cismas no fundo do seu peito? Não podia buscar definições. Não lhe matava a sede aquelas águas azuis.
Um elo de silêncio chegou aos seus dedos hirtos. Tão intenso, tão palpável, que ele poderia desenhar usando a trajetória dos pensamentos, seguindo as pegadas das lembranças. Os seus dedos foram-se amaciando numa imponderabilidade de nuvem atravessando o verão. Era a vida que fluía calada. Gustavo escutava os intervalos das batidas do seu coração.
Onde e quando encontrara um silêncio daquele? Só quando ainda menino flagrara a entrega velada de uma flor ao primeiro pássaro da manhã. Naquela hora ele se fizera gesto e colhera para si a plenitude mágica daquele instante.
E como um barco preso à correnteza de um rio que fluísse em sentido contrário, da foz à cabeceira, ele continuou desaguando na infância.
Reviu a fruta aberta no chão amortalhado de folhas e deteve-se curioso diante daquela intimidade subitamente revelada, embora guardado permanecesse o mistério da vida. A sua baleeira nunca permitia aos canários o direito ao pouso. Chorou a sua solidão nos quartos escuros nos dias de febre ou trovoadas. Redescobriu moças regando flores nos jardins pejados de manhãs.
Outros elos desceram-lhe pelas mãos que ainda há pouco estiveram revestidas de saudade. Precisava fazer um acréscimo no romance: havia um vento desembestado descendo uma ladeira esquecida, um sol rubro de medo, uma borboleta de asas partidas.
Eram elos contorcendo-se na sua flexibilidade plástica. Devia ser mais tolerante com Aniette - dizia-lhe outro elo numa dureza de ferro.
Entre ele e Aniette adensava-se um rio de águas turvas rolando encachoeirado para um tempo que se desfazia no nada. Ela a reclamar dos seus mutismos prolongados, a queixar-se dos seus desleixos, da sua falta de iniciativa para resolver os problemas, a pedir a sua palavra quando ele preferia tê-la guardada no poço da garganta.
Ele a exigir o filho que ela não podia ter. Um filho é um caminho que continua e ele estava ali, os pés retidos numa viela. Outra vez veio o silêncio apaziguando tudo numa maciez de elo de algodão.
A tarde de há muito desmanchava-se na noite. Agora eram sombras que passeavam pelas suas mãos. Algumas cochilavam sorrateiras nos seus cabelos em desalinho. Elos de vidro retratavam-lhe o rosto, ora contrafeito, ora desanuviado. Era ele escorrendo-se em si - rio de comportas abertas resvalando pelo leito do tempo.
Um débil traço de luz alcançou-o por entre a folhagem da árvore. Certamente aquilo era arte da lua. Procurou-a. Lá estava: contida, frágil, minguante - um elo de fogo agônico aninhando-se no verde baço de seus olhos.
- Gustavo, vem jantar. Fiz uma sopa daquelas que você gosta. A voz de Aniette, ali diante dele, chegou-lhe mansa numa clara atitude de quem busca a reconciliação.
Ergueu-se aturdido. A lua saltou dos seus olhos indo abrigar-se no regaço de uma nuvem que a acolheu silente.
- Você me desculpa? - De muito longe veio a sua voz.
Aos seus pés caiu a corrente desfazendo-se em elos isolados rolando sem barulho pela inércia da terra seca.
- Ora...
Num impulso de ternura, Aniette estendeu a mão tentando segurar a dele. Só encontrou o vazio.
Conto de Bartyra Soares retirado do livro Silêncio das Velas Vivas, Editora Novo Horizonte, Recife, 2008.
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