08 dezembro 2025

Victor, o "selvagem de Aveyron"

O "menino selvagem" Victor de Aveyron é um dos casos mais conhecidos de seres humanos  criados livres em ambientes selvagens. Provavelmente abandonado numa floresta aos 4 ou 5 anos, foi objeto de curiosidade e provocou discussões acaloradas principalmente na França, onde o caso ocorreu.

Sua história oficial começa em 1797, quando um menino inteiramente nu, que fugia do contato com as pessoas, foi visto pela primeira vez na floresta de Lacaune. Em 9 de janeiro de 1800 foi registrado seu aparecimento num moinho em Saint-Sernein, distrito de Aveyron. Tinha a cabeça, os braços e os pés nus; farrapos de uma velha camisa cobriam o resto do corpo. Era um menino de cerca de 12 anos de idade, media 1,36m, tinha a pele branca e fina, rosto redondo, olhos negros e fundos, cabelos castanhos e nariz comprido e aquilino. Sua fisionomia foi descrita como graciosa; sorria involuntariamente e seu corpo apresentava a particularidade de estar coberto de cicatrizes.

Victor não pronunciava nenhuma palavra e parecia não entender nada do que falavam com ele. Apesar do rigoroso inverno europeu, rejeitava roupas e também o uso de cama, dormindo no chão sem colchão. Quando procurava fugir, locomovia-se apoiado nas mãos e nos pés, correndo como os animais quadrúpedes.


Estudo sociológico do caso

Alguns médicos, como os franceses Esquirol (1772-1840) e Pinel (1745-1826), diagnosticaram o menino selvagem como idiota (nomenclatura que hoje corresponde à deficiência mental grave). Talvez por essa razão tenha sido abandonado pelos pais.

O médico psiquiatra Jean-Marie Gaspard Itard, diretor de um instituto de surdos-mudos, não compartilhava da opinião dos colegas. Propôs uma questão: quais as consequências da privação do convívio social e da ausência absoluta da educação social humana para a inteligência de um adolescente que viveu assim, separado de indivíduos de sua espécie? Ele acreditava que a situação concreta de abandono e afastamento da civilização explicava o comportamento diferente do menino Victor, contrapondo-se ao diagnóstico de deficiência mental para o caso.

Em seu livro A educação de um homem selvagem, publicado em 1801, Itard apresenta seu trabalho com o menino selvagem de Aveyron, descrevendo as etapas de sua educação: ele já é capaz de sentar-se convenientemente à mesa, tirar a água necessária para beber, levar ao seu benfeitor as coisas de que necessita; diverte-se ao empurrar um pequeno carrinho e começa também a ler. Cinco anos mais tarde já fabricava pequenos objetos e podava as plantas da casa. A partir desses resultados Itard reforçou sua tese de que os hábitos selvagens e a aparente deficiência mental iniciais eram apenas e tão-somente resultados de uma vida afastada de seus semelhantes e da civilização.

Acompanhando de perto e trabalhando vários anos com Victor para educá-lo, Itard formula a hipótese de que a maior parte das deficiências intelectuais e sociais não é inata, mas tem sua origem na ausência da socialização, na falta de comunicação com os semelhantes, principalmente pela palavra. Aproximando-se da visão sociológica dos fatos sociais, o pesquisador concluiu que o isolamento social prejudica a sociabilidade do indivíduo. E a sociabilidade é a base da vida em sociedade. Os estudos de Itard reforçam um dos fundamentos da Sociologia: os fatos sociais, embora exteriores, são introjetados pelo indivíduo e exercem sobre ele um poder coercitivo, já que determinam seu comportamento.


Texto retirado do livro Introdução à Sociologia, de Pérsio Santos de Oliveira, Editora Ática, 20ª Edição, São Paulo, 2001.

06 dezembro 2025

Vê e Segue (95)

 "Uma coisa sei: eu era cego e agora vejo." - (JOÃO, 9:25.)


Apesar de o trabalho renovador do Evangelho, nos círculos da consolação e da pregação, desdobrar-se, diante das massas, semeando milagres de reconforto na alma do povo, o serviço sutil e quase desconhecido do aproveitamento da Boa Nova é sempre individual e intransferível.

Os aprendizes da vida cristã, na atividade vulgar do caminho, desfrutam do conceito de normalidade, mas se não gozam de vantagens observáveis no imediatismo da experiência humana, quais sejam as da consolação, do estímulo ou da prosperidade material, de maneira a gravarem o ensinamento vivo de Jesus, nas próprias vidas, passam à categoria de pessoas estranhas, muita vez ante os próprios companheiros de mistério.

Chegando a semelhante posição, e se sabe aproveitar a sublime oportunidade pela submissão e diligência, o discípulo experimenta completa transposição de plano.

Modifica a tabela de valores que o rodeiam.

Sabe onde se ocultam os fundamentos eternos.

Descortina esferas novas de luta, através da visão interior que outros não compreendem.

Descobre diferentes motivos de elevação, por intermédio do sacrifício pessoal, e identifica fontes mais altas de incentivo ao esforço próprio.

Em vista disso, frequentemente provoca discussões acesas, com respeito à atitude que adota à frente de Jesus.

Por ver, com mais clareza, as instruções reveladas pelo Mestre, é tido à conta de fanático ou retrógrado, idiota ou louco.

Se, porém, procuras efetivamente a redenção com o Senhor, prossegue seguro de ti mesmo; repara, sem aflição e sem desânimo, as contendas que a ação genuína de Jesus em ti recebe de corações incompreensivos e estacionários, repete as palavras do cego que alcançou a visão e segue para diante.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

04 dezembro 2025

Introdução do livro Jacques DeMolay

O estímulo para que o presente livro pudesse vir à luz, foi colhido com muito carinho, do entusiasmo que Alberto Mansur foi tomado para introduzir no Brasil, o trabalho fenomenal junto à nossa mocidade dos "Capítulos De Molay".

É difícil saber de onde Mansur retira tanta força para o trabalho, pois, além de sua atividade profissional profana, está à testa do Supremo Conselho do Grau 33 da Maçonaria, para a República Federativa do Brasil.

Como Soberano Grande Comendador, é convidado a participar ativamente, em todas as reuniões interamericanas e internacionais, o que equivale a uma ausência constante do Rio de Janeiro.

Esse trabalho, de per si, já seria, mais do que suficiente para absorver todo pouco tempo de folga, que restaria a esse homem tão dinâmico.

Mas não. Entusiasmado com o que lhe foi dado assistir nos Estados Unidos da América do Norte, trouxe para nosso País, o extraordinário "Capítulo De Molay", formando em cada Estado da União, grupos de 25 jovens, para dar-lhes uma orientação sadia com o fito de prepará-los ao ingresso da maioridade.

Nós todos, sabemos como é difícil para um adolescente tornar-se adulto! Não porque tenhamos sido, obviamente, todos nós, também, adolescentes, mas porque a cada ano que passa, esses jovens tão assediados pelos fatores negativos, como o mau exemplo dos mais velhos, a droga e a violência.

Esse trabalho, que só é combatido por aqueles que "não gostam da juventude" e os há, por inacreditável que possa ser, tem grande afinidade com a Maçonaria.

Há mais de 60 anos, em 1919, a "ORDEM DE MOLAY" foi fundada em Kansas City - USA, pelo maçom Frank S. Land e nove meninos, como uma nova e promissora ideia objetivando preparar melhores cidadãos.

Em um folheto que recebemos, vem formuladas as seguintes questões que reproduzimos:

"DE MOLAY em síntese. Você sabia?...

Que mais de 3 milhões de jovens já se ajoelharam perante os altares da Ordem De Molay em todo mundo, e que, atualmente, existem mais que 111.000 De Molay em 12 países...

Que o ingresso de rapazes entre a idade de 13 e 21 anos não é restrito somente a filhos ou parentes de maçons...

Que De Molay é uma organização que inspira os jovens a se tornarem melhores filhos, melhores homens e melhores líderes...

Que a iniciação ritualística é uma cerimônia solene que reafirma nos jovens os ideais de boa cidadania e de amor filial...

Que diversos Senior De Molay (membro que completa mais de 21 anos de idade) entre eles John Wayne, Walt Disney, Henri C. Clausen, se tornaram líderes em suas diversas atividades na vida...

Que uma média de 50% de todos os De Molay ao completarem 21 anos de idade ingressam na Maçonaria...

Que mais de 150 De Molays chegaram a ser Grão-Mestres em diversas Grandes Lojas Norte-Americanas e grande número deles atingiram o Grau 33, Inspetor Geral da Ordem Maçônica...

Que a Ordem De Molay é a maior organização fraternal de jovens em todo o mundo!"

Alguém, poderia se confundir e questionar: mas... a Ordem do Templo prossegue?

Não se confunda "Ordem do Templo" com "Ordem De Molay", esse trabalho junto aos jovens nada tem a ver com os Templários!

No entanto, o trabalho é de inspiração maçônica e a Maçonaria, evidentemente, pode ser remanescente templárica!

Como apêndice, neste livro, inserimos algumas bases da "Ordem De Molay", como "Capítulos De Molay e lá o leitor buscará respostas a suas dúvidas.

Nos foi dado, já, por várias vezes, assistir às cerimônias, tanto no Rio de Janeiro, como em Goiânia, de um Capítulo De Molay, e os jovens repetem, como profunda simbologia o sacrifício de Jacques De Molay.

Nessas oportunidades, inquirimos a esse jovens e a seus dirigentes sobre o Templarismo, sobre a Ordem do Templo e notamos que o conhecimento histórico é muito escasso.

Isso decorre da falta, entre nós brasileiros, de literatura sobre o assunto.

 Existem centenas de obras sobre a Ordem do Templo em todo o mundo, especialmente, na França e na Alemanha.

Não temos nenhuma traduzida; raras notícias em alguns livros não específicos.

O saudoso escritor maçônico Adelino de Figueiredo Lima, já há algum tempo, escreveu bela obra intitulada: "Os Templários", que merece ser lida, pois, revela um trabalho de fôlego.

Ousamos afirmar que nosso modesto livro, quase se torna uma complementação aos "Templários" de Adelino Figueiredo Lima, visto sob outro prisma.

O leitor, tendo ambas as obras, poderá aquilatar do esforço para sintetizar fatos que demandaram duzentos anos entre a fundação da Ordem do Templo até a sua destruição.

O nosso propósito é apresentar a tese de que os Templários aperfeiçoaram a Maçonaria operativa.

Paralelamente, o nosso desejo é de que os jovens da "Ordem De Molay", do Brasil, possam conhecer, um pouco mais, a respeito de seu ilustre patrono, Jacques De Molay.

Inicialmente, quando Alberto Mansur trouxe a "Ordem De Molay" para o Brasil, levantaram-se algumas vozes "nacionalistas" dizendo da inconveniência de buscarmos fora da Pátria, um trabalho social de eugenia, de educação para a Arte Real.

Receptivo a essa "reação", Mansur tudo fez para "nacionalizar" o movimento, no que foi exitoso.

Os dirigentes norte-americanos, não têm interesse algum, na hegemonia do movimento. Nacionalizaram os Capítulos De Molay; a Bandeira que tremula nas sessões, é exclusivamente a do Brasil; a história a ser estudada é a Pátria, o laboratório é a Nação onde esses jovens vivem.

Assim, Alberto Mansur foi agraciado com o título de Grande Mestre do Supremo Conselho da Ordem De Molay para o Brasil.

Então, ninguém poderá pôr qualquer objeção a essa bênção para os jovens brasileiros, para a Sociedade e para a Maçonaria.

Nosso trabalho objetiva, exclusivamente, apresentar um panorama geral a respeito daquele movimento iniciado no século XIV, passagem da Idade Média para o Renascimento.

Não queiram os leitores exigir, demasiadamente, de nosso esforço; alguém precisa se apresentar para a "missão" de ilustrar os menos cultos, dando-lhes a oportunidade de encontrar em nossas editoras e livrarias, o material suficiente para a compreensão do que era a Maçonaria há séculos passados, quando, ainda, se dedicava exclusivamente ao trabalho operativo.

Posteriormente, diante do surgimento da Universidade, o trabalho operativo das Instituições, tanto religiosas como filosóficas e dos principais movimentos antes e depois da Idade Média, já não tinha razão de ser, porque, como acontecia na época do Rei Salomão, que a arte de construir era mantida em grande segredo, transmitido de pai para filho, com a responsabilidade de não divulgá-lo, a Universidade "popularizou" esses segredos tendo qualquer um do povo, a oportunidade de se dedicar à Construção Civil.

Passou a Maçonaria a ser especulativa, a construir o Templo interno de cada Iniciado.

A Maçonaria não tem interesse, atualmente, em participar de obras sociais, a não ser, obviamente, através do esforço pessoal e individual, como obrigação, do maçom-cidadão.

A Ordem do Templo, em sua época absorveu todas as grandes lições dos diversos povos; do Oriente ao Ocidente conhecidos, nada escapara aos Grão-Mestres da Ordem.

Os sigilos ocultados ao vulgo profano, eram necessários, para a preservação; no entanto, como veremos, de nada lhes valeu o sacrifício, porque esses sigilos, não preservaram a continuidade da obra idealística.

Frequentemente, maçons menos avisados e de certa forma menos cultos, nos criticam porque em nossos livros "revelamos os segredos" da Maçonaria que "deveriam permanecer ocultos!"

Nada disto! Não há segredo dentro da Filosofia Maçônica, e muito menos, razão de tê-los preservados!

O que pode haver, são certas senhas, sinais, palavras que devem ser sigilosas mas apenas, sob o ponto de vista de uma "tradição" porque em todas as Bibliotecas do Mundo, esses "sigilos e segredos" são desvendados; e são dessas obras, que todos vão se abastecer para a complementação dos seus conhecimentos!

Mas... Se não existisse a crítica, mesmo a maldosa, resultado de inveja torpe, os escritores não revidariam com tanto ímpeto e essa força e isto proporciona grande vantagem para o leitor!

As vozes que clamam no deserto, permanecem no deserto da estreiteza do conhecimento maçônico.

A cada livro nosso que a Providência permite que venha a público, os mesmos críticos se reanimam e prosseguem na sua árida missão; por outro lado, fazem prosélitos, mas... Os cães ladram e a caravana passa!

Convidamos um ilustre maçom, membro emérito do Supremo Conselho, para prefaciar este livro; acedeu com boa vontade e a sua bondade dá relevo ao nosso trabalho.

Erwin Seignemartin, conquistou dentro da Maçonaria Simbólica e Filosófica, todas as posições. Seus escritos continuam a abrilhantar os nossos jornais; seu discurso é atraente, ameno, contando em preâmbulo, chistes interessantes, para após, entregar a sua profunda mensagem, fruto de sua experiência e de seu amor fraterno.

Agradecemos a sua gentileza e a sua colaboração.

Walmor Bittencourt Corrêa é um jovem artista; seus desenhos já são apresentados em exposições coletivas e individuais; catarinense, estudante de arquitetura, é nosso amigo. Seu traço é vigoroso e reflete, com perfeição, a sutileza e o bom gosto; quando lhe pedimos, quase, como uma constante, mais uma capa, ele sorri; gosta de fazê-la e tem embelezado nossa modesta obra. O nosso agradecimento.

Francisco Molinaro, esse jovem avelhantado; são oitenta anos de idade que não se notam; aos domingos nada no mar de Copacabana alguns quilômetros, mantendo um físico invejável; espiritualista, dinâmico, sabe dirigir a Gráfica Aurora, apoiado no ombro amigo de seu filho Natal. Porém, é insaciável; quer mais um original, sempre mais um, e quando o enviamos, se entusiasma e não mede sacrifícios para aprontar a edição, deixando de lado, outros trabalhos, quiçá mais importantes. A beleza de sua personalidade está em não ser ele maçom.

Mas não o será mesmo? Pelo menos o seu comportamento supera em muito o da grande maioria de maçons, especialmente, daqueles que nós gostamos, e nos perdoem os leitores de denominar de "profanos de avental", sim, aqueles que ingressam na ordem mas nada perdem da bagagem que trazem do mundo profano; não se iniciam, são apenas, "iniciados pelos demais".

Lançamos o 16º livro. Até quando poderemos escrever? Nos perguntamos constantemente, este será o último?

O Grande Arquiteto do Universo, que é Deus, nos tem dado a inspiração, a persistência e o ânimo. Se Ele quiser, prosseguiremos.

Sim, o trabalho é compensador e nós, nos rendemos à máxima dos Templários: "Deus o quer"!

Os leitores hão de ficar surpresos com as revelações sobre o relacionamento entre Filipe o Belo, ou o Formoso como querem alguns, e o Papa Bonifácio; relacionamento de sodomia como tão claramente informa Dante Alighieri em sua Divina Comédia.

Esse aspecto seja por pudor, seja para preservar a imagem de um Papa, é pouco conhecido; sabemos não ser uma contribuição relevante, a "descoberta" que a pesquisa traz, mas é um fato histórico que nos conduz a compreender do porque Filipe imputava aos Templários, em suas cerimônias, a infâmia da prática sodômica.

Na parte em que descremos os grafitos, constataremos que o triponto tão usado pela Maçonaria, é originário dos Templários, bem como a influência da Ordem do Templo, nas grandes construções da Idade Média que alguns historiadores maçônicos restringem a autoria, exclusivamente, aos "Pedreiros Livres", aos "free masons".

No Brasil, o culto à Cruz de Caravaca é muito difundido, mas nada encontramos sobre a sua verdadeira origem

A colaboração templárica vem esclarecer uma parte que, ainda entre nós era pouco conhecida; muitos maçons são seguidores dessa Cruz e a Maçonaria Filosófica a usa, com o nome de Cruz Patriarcal.

A análise comparativa entre os Templários e os Maçons, vem enriquecer os nossos conhecimentos.

Cremos que estamos entregando uma obra, modesta, mas instrutiva e fazemos votos para que haja aproveitamento.

Por fim, lembramos aos que têm influência junto a Igreja de que já chegou o momento de reabilitar Jacques De Molay.

Em nossa campanha como candidato ao Grão-Mestrado, propugnamos isto e fomos duramente atacados, porque a falta de conhecimento sobre o personagem é gritante.

Nossa esperança, agora, está na "Ordem De Molay"; esses bravos jovens, por certo, terão maior interesse em contactar com o seu Patrono e dar-lhe na história o lugar merecido.

O nosso profundo agradecimento ao irmão e amigo Wilton Cunha, Grande Secretário Geral da Ordem DEMOLAY, pela contribuição inserida como honroso apêndice que vem dar um "sentido" final ao presente e modesto trabalho.


Introdução do livro Jacques De Molay, de Rizzardo da Camino, Editora Aurora, série Literatura Maçônica, Rio de Janeiro, 1985.

02 dezembro 2025

Prefácio do livro Jacques DeMolay

Em nosso País, a literatura maçônica é reconhecida e deploravelmente restrita. Os poucos estudiosos e autores de obras maçônicas existentes entre nós, por certo, não escrevem visando a pingues lucros. O mais provável é que se lançam a essa ingrata empreitada por obstinação, por apego à Maçonaria, ou mesmo, por desejo de compartilhar seus conhecimentos e sua vivência maçônica com seus irmãos.

É improvável que esses poucos escritores percam horas e horas em pesquisas e leituras, com vistas a uma incerta lucratividade, pois quando conseguem, depois de penosa expectativa recobrar o dinheiro dispendido com a impressão do livro, dão-se por satisfeitos. Talvez resida aí a razão de existirem tão poucos abnegados escritores no meio maçônico brasileiro.

Por isso, quando surge uma nova obra de autoria de escritor brasileiro, é ela aclamada com entusiasmo e até com certo orgulho patriótico.

Rizzardo da Camino é um desses brasileiros. Com uma já apreciável bagagem literária que já se aproxima de dezessete volumes, brinda-nos, agora, com uma nova obra de leitura agradável por não ser escrita em estilo sentencioso, sendo de fácil assimilação até por quem seja estranho ao assunto.

Este novo livro de Rizzardo da Camino, traça o perfil de Jacques De Molay e sua época, demorando-se no estudo dos Templários, Ordem da qual De Molay foi o último Grão-Mestre.

A intrigante saga dos Cavaleiros Templários é exaustiva e seguramente desenvolvida neste livro. Ao lermos a obra, remontamos à fascinantes Era Medieval e às suas lendárias figuras que se apresentam como se vivas fossem na pena competente de Rizzardo.

Há uma escola que atribui a origem da Maçonaria à Ordem dos Cavaleiros Templários, enquanto que outra prefere ligá-la à construção do Templo de Salomão. A primeira seria então a Maçonaria místico-cavaleirística e a segunda, bíblico-simbólica. Rizzardo da Camino disseca a conotação Templário-Maçônica nesta sua obra.

A Ordem dos Cavaleiros Templários, fundada em Jerusalém em 1118 é irresistivelmente fascinante. Criada pela Igreja Cristã para combater os ímpios, acabou sendo dissolvida pela própria Igreja, através do Rei Filipe, o Belo, que condenou Jacques De Molay à fogueira, no dia 18 de março de 1314.

Jacques De Molay tornou-se figura presente na Maçonaria, particularmente, nos graus filosóficos. É, também, o patrono do que se poderia denominar de "escotismo" maçônico. Empresta o seu nome a uma organização para-maçônica que congrega cerca de três milhões de jovens em todo o mundo.

Por que foi o nome de Jacques De Molay escolhido como patrono da juventude maçônica? Seu idealizador, o maçom Frank S. Land apresentou o nome de diversas personalidades com suas biografias a um punhado de jovens do Estado de Missouri que almejavam fundar uma sociedade para-maçônica.

Esses jovens, fascinados pela história, integridade e martírio de De Molay em defesa de suas convicções, não hesitaram em escolher seu nome para seu patrono. E hoje, a organização De Molay espalha-se pelo mundo chegando ao Brasil onde se formam os primeiros Capítulos da Ordem que têm por objetivo conduzir os jovens pelo caminho da retidão e princípios da boa moral.

Esta obra de Rizzardo de Camino é, pois, não só oportuna como altamente instrutiva já que analisa minuciosamente a Ordem dos Templários e, por extensão, a figura ímpar de Jacques De Molay que, não obstante, passados 670 anos, ainda constitui uma inspiração para os maçons.

Rizzardo, já com tantos livros publicados, revela-se nesta obra como um contista, tal é o accessível estilo empregado. Gaúcho, advogado, estudioso e praticante de Yoga e da filosofia transcendental, espiritualista, escotista e jornalista. Rizzardo iniciou-se na Maçonaria em 1946 e, daí em diante, a ela se dedicou inteiramente, voltando-se para as letras maçônicas e revelando-se um dos poucos escritores de obras sobre a Maçonaria dono de um estilo que, apesar de didático, torna-se de leitura agradável e ao alcance de todos.

Já conhecia Rizzardo da Camino pelos seus escritos. Vim a conhecê-lo pessoalmente em Araxá onde havíamos ambos sido convidados para pronunciar palestras no 1º Seminário Maçônico de Araxá, patrocinado pela Loja "Ação e Silêncio".

Desde logo, identifiquei-me com os conceitos, ideias e exame panorâmico da Maçonaria expendidos por Rizzardo e, em Araxá, se solidificou uma amizade que a distância e as vicissitudes não abalaram.

Foi lá mesmo em Araxá que recebi o convite para prefaciar esta última - mas não derradeira, espera-se - obra de Da Camino, muito embora lhe tenha feito sentir que, no panorama maçônico nacional, havia um infindável número de maçons mais credenciados e capacitados para fazê-lo. Sua insistência muito me desvaneceu e agora, sinto-me feliz pela oportunidade de prefaciar uma obra sobre uma figura pela qual tenho particular fascínio: JACQUES DE MOLAY.


Texto de Erwin Seignemartin para o prefácio do livro Jacques De Molay, de Rizzardo da Camino, Editora Aurora, série Literatura Maçônica, Rio de Janeiro, 1985.

26 novembro 2025

Os Dragões

 "Fui irmão de dragões

e companheiro de avestruzes."

(Jó, XXX, 29)


Os primeiros dragões que apareceram na cidade muito sofreram com o atraso dos nossos costumes. Receberam precários ensinamentos e a sua formação moral ficou irremediavelmente comprometida pelas absurdas discussões surgidas com a chegada deles ao lugar.

Poucos souberam compreendê-los e a ignorância geral fez com que, antes de iniciada a sua educação, nos perdêssemos em contraditórias suposições sobre o país e raça a que poderiam pertencer.

A controvérsia inicial foi desencadeada pelo vigário. Convencido de que eles, apesar da aparência dócil e meiga, não passavam de enviados do demônio, não me permitiu educá-los. Ordenou que fossem encerrados numa casa velha, previamente exorcismada, onde ninguém poderia penetrar. Ao se arrepender do erro, a polêmica já se alastrara e o velho gramático negava-lhes a qualidade de dragões, "coisa asiática, de importação europeia". Um leitor de jornais, com vagas ideias científicas e um curso ginasial feito pelo meio, falava em monstros antediluvianos. O povo benzia-se, mencionando mulas-sem-cabeça, lobisomens.

Apenas as crianças, que brincavam furtivamente com os nossos hóspedes, sabiam que os novos companheiros eram simples dragões. Entretanto, elas não foram ouvidas.

O cansaço e o tempo venceram a teimosia de muitos. Mesmo mantendo suas convicções, evitavam abordar o assunto.

Dentro em breve, porém, retomariam o tema. Serviu de pretexto uma sugestão do aproveitamento dos dragões na tração de veículos. A ideia pareceu boa a todos, mas se desavieram asperamente quando se tratou da partilha dos animais. O número destes era inferior ao de pretendentes.

Desejando encerrar a discussão, que se avolumava sem alcançar objetivos práticos, o padre firmou uma tese: os dragões receberiam nomes na pia batismal e seriam alfabetizados.

Até aquele instante eu agira com habilidade, evitando contribuir para exacerbar os ânimos. E se, nesse momento, faltou-me calma, o respeito devido ao bom pároco, devo culpar a insensatez reinante. Irritadíssimo, expandi o meu desagrado:

- São dragões! Não precisam de nomes nem do batismo!

Perplexo com a minha atitude, nunca discrepante das decisões aceitas pela coletividade, o reverendo deu largas à humildade e abriu mão do batismo. Retribuí o gesto, resignando-me à exigência de nomes.

Quando subtraídos ao abandono em que se encontravam, me foram entregues para serem educados, compreendi a extensão da minha responsabilidade. Na maioria, tinham contraído moléstias desconhecidas e, em consequência, diversos vieram a falecer. Dois sobreviveram, infelizmente os mais corrompidos. Melhor dotados em astúcia que os irmãos, fugiam, à noite, do casarão e iam se embriagar no botequim. O dono do bar se divertia vendo-os bêbados, nada cobrava pela bebida que lhes oferecia. A cena, com o decorrer dos meses, perdeu a graça e o botequineiro passou a negar-lhes o álcool. Para satisfazerem o vício, viram-se forçados e recorrer a pequenos furtos.

No entanto eu acreditava na possibilidade de reeducá-los e superar a descrença de todos quanto ao sucesso da minha missão. Valia-me da amizade com o delegado para retirá-los da cadeia, onde eram recolhidos por motivos sempre repetidos: roubo, embriaguez, desordem.

Como jamais tivesse ensinado a dragões, consumia a maior parte do tempo indagando pelo passado deles, família, métodos pedagógicos seguidos em sua terra natal. Reduzido material colhi dos sucessivos interrogatórios a que os submetia. Por terem vindo jovens para a nossa cidade, lembravam-se confusamente de tudo, inclusive da morte da mãe, que caíra num precipício, logo após a escalada da primeira montanha. Para dificultar a minha tarefa, ajuntava-se à debilidade da memória dos meus pupilos o seu constante mau humor, proveniente das noites mal dormidas e ressacas alcoólicas.

O exercício continuado do magistério e a ausência de filhos contribuíram para que eu lhes dispensasse uma assistência paternal. Do mesmo modo, certa candura que fluía dos seus olhos obrigava-me a relevar faltas que não perdoaria a outros discípulos.

Odorico, o mais velho dos dragões, trouxe-me as maiores contrariedades. Desastradamente simpático e malicioso, alvoroçava-se à presença de saias. Por causa delas, e principalmente por uma vagabundagem inata, fugia às aulas. As mulheres achavam-no engraçado e houve uma que, apaixonada, largou o esposo para viver com ele.

Tudo fiz para destruir a ligação pecaminosa e não logrei separá-los. Enfrentavam-me com uma resistência surda, impenetrável. As minhas palavras perdiam o sentido no caminho: Odorico sorria para Raquel e esta, tranquilizada, debruçava-se novamente sobre a roupa que lavava.

Pouco tempo depois, ela foi encontrada chorando perto do corpo do amante. Atribuíram sua morte a tiro fortuito, provavelmente de um caçador de má pontaria. O olhar do marido desmentia a versão.

Com o desaparecimento de Odorico, eu e minha mulher transferimos o nosso carinho para o último dos dragões. Empenhamo-nos na sua recuperação e conseguimos, com algum esforço, afastá-lo da bebida. Nenhum filho talvez compensasse tanto o que conseguimos com amorosa persistência. Ameno no trato, João aplicava-se aos estudos, ajudava Joana nos arranjos domésticos, transportava as compras feitas no mercado. Findo o jantar, ficávamos no alpendre a observar sua alegria, brincando com os meninos da vizinhança. Carregava-os nas costas, dava cambalhotas.

Regressando, uma noite, da reunião mensal com os pais dos alunos, encontrei minha mulher preocupada: João acabara de vomitar fogo. Também apreensivo, compreendi que ele atingira a maioridade.

O fato, longe de torná-lo temido, fez crescer a simpatia que gozava entre as moças e rapazes do lugar. Só que, agora, demorava-se pouco em casa. Vivia rodeado por grupos alegres, a reclamarem que lançasse fogo. A admiração de uns, os presentes e convites de outros, acendiam-lhe a vaidade. Nenhuma festa alcançava êxito sem sua presença. Mesmo o padre não dispensava o seu comparecimento às barraquinhas do padroeiro da cidade.

Três meses antes das grandes enchentes que assolaram o município, um circo de cavalinhos movimentou o povoado, nos deslumbrou com audazes acrobatas, engraçadíssimos palhaços, leões amestrados e um homem que engolia brasas. Numa das derradeiras exibições do ilusionista, alguns jovens interromperam o espetáculo aos gritos e palmas ritmadas:

- Temos coisa melhor! Temos coisa melhor!

Julgando ser brincadeira dos moços, o anunciador aceitou o desafio:

- Que venha essa coisa melhor!

Sob o desapontamento do pessoal da companhia e os aplausos dos espectadores, João desceu ao picadeiro e realizou sua costumeira proeza de vomitar fogo.

Já no dia seguinte, recebia várias propostas para trabalhar no circo. Recusou-as, pois dificilmente algo substituiria o prestígio que desfrutava na localidade. Alimentava ainda a pretensão de se eleger prefeito municipal.

Isso não se deu. Alguns dias após a partida dos saltimbancos, verificou-se a fuga de João.

Várias e imaginosas versões deram ao seu desaparecimento. Contavam que ele se tomara de amores por uma das trapezistas, especialmente destacada para seduzi-lo; que se iniciara em jogos de cartas e retomara o vício da bebida.

Seja qual a razão, depois disso muitos dragões têm passado pelas nossas estradas. E por mais que eu e meus alunos, postados na entrada da cidade, insistamos que permaneçam entre nós, nenhuma resposta recebemos. Formando longas filas, encaminham-se para outros lugares, indiferentes aos nossos apelos.


Conto de Murilo Rubião retirado do livro Contos Reunidos, Editora Ática, São Paulo, 1998.

25 novembro 2025

Cemitério de Elefantes

À margem esquerda do Rio Belém, nos fundos do mercado de peixe, ergue-se o velho ingazeiro - ali os bêbados são felizes. Curitiba os considera animais sagrados, provê às suas necessidades de cachaça e pirão. No trivial contentam-se com as sobras do mercado.

Quando ronca a barriga, ao ponto de perturbar a sesta, saem do abrigo e,  arrastando os pesados pés, atiram-se à luta pela vida. Enterram-se no mangue até os joelhos na caça ao caranguejo ou, tromba vermelha no ar, espiam a queda dos ingás maduros.

Elefantes malferidos, coçam as perebas, sem nenhuma queixa, escarrapachados sobre as raízes que servem de cama e cadeira. Bebem e beliscam pedacinho de peixe. Cada um tem o seu lugar, gentilmente avisam:

- Não usem a raiz do Pedro.

- Ele foi embora, sabia não?

- Aqui há pouco...

- Sentiu que ia se apagar e caiu fora. Eu gritei: Vai na frente, Pedro, deixa a porta aberta.

À flor do lodo borbulha o mangue - os passos de um gigante perdido? João dispõe no braseiro o peixe embrulhado em folha de bananeira.

- O Cai N'água trouxe as minhocas?

- Sabia não?

- Agora mesmo ele...

- Entregou a lata e disse: Jonas, vai dar pescadinha da boa.

Lá do sulfuroso Barigui rasteja um elefante moribundo.

- Amigo, venha com a gente.

Uma raiz no ingazeiro, o rabo de peixe, a caneca de pinga.

No silêncio o bzzz dos pernilongos assinala o posto de um e outro, assombrado com o farol piscando no alto do morro.

Distrai-se um deles a enterrar o dedo no tornozelo inchado. Puxando os pés de paquiderme, afasta-se entre adeuses em voz baixa - ninguém perturbe os dorminhocos. Esses, quando acordam, não perguntam aonde foi o ausente. E, se indagassem, para levar-lhe margaridas do banhado, quem saberia responder? A você o caminho se revela na hora da morte.

A viração da tarde assanha as varejeiras grudadas nos seus pés disformes. Nas folhas do ingazeiro reluzem lambaris prateados - ao eco da queda de frutos os bêbados erguem-se com dificuldade e os disputam rolando no pó. O vencedor descasca o ingá, chupa de olho guloso a fava adocicada. Jamais correu sangue no cemitério, a faquinha na cinta é para descamar peixe. E, aos brigões, incapazes de se moverem, basta xingarem-se à distância.

Eles suportam o delírio, a peste, o fel na língua, o mormaço, as câimbras de sangue, berram de ódio contra os pardais, que se aninham entre as folhas e, antes de dormir, lhes cospem na cabeça - o seu pipiar irrequieto envenena a modorra.

Da margem contemplam os pescadores mergulhando os remos.

- Um peixinho aí, compadre?

O pescador atira o peixe desprezado no fundo da canoa.

- Por que você bebe, Papa-Isca?

- Maldição de mãe, uai.

- O Chico não quer peixe?

- Tadinho, a barriga d'água.

Sem pressa, aparta-se dos companheiros cochilando à margem, esquecidos de enfiar a minhoca no anzol.

Cospe na água o caroço preto do ingá, os outros não o interrogam: presas de marfim que apontam o caminho são as garrafas vazias. Chico perde-se no cemitério sagrado, as carcaças de pés grotescos surgindo ao luar.


Conto de Dalton Trevisan retirado do livro Cemitério de Elefantes, Editora Record, 11ª Edição, Rio de Janeiro, 1997.

24 novembro 2025

O Vampiro de Curitiba

Ai, me dá vontade até de morrer. Veja, a boquinha dela está pedindo beijo - beijo de virgem é mordida de bicho-cabeludo. Você grita vinte e quatro horas e desmaia feliz. É uma que molha o lábio com a ponta da língua para ficar mais excitante. Por que Deus fez da mulher o suspiro do moço e o sumidouro do velho? Não é justo para um pecador como eu. Ai, eu morro só de olhar para ela, imagine então se. Não imagine, arara bêbada. São onze da manhã, não sobrevivo até à noite. Se fosse me chegando, quem não quer nada - ai, querida, é uma folha seca ao vento - e encostasse bem devagar na safadinha. Acho que morreria: fecho os olhos e me derreto de gozo. Não quero do mundo mais que duas ou três só para mim. Aqui diante dela, pode que se encante com o meu bigodinho. Desgraçada! Fez que não me enxergou: eis uma borboleta acima de minha cabecinha doida. Olha através de mim e lê o cartaz de cinema no muro. Sou eu nuvem ou folha seca ao vento? Maldita feiticeira, queimá-la viva, em fogo lento. Piedade não tem no coração negro de ameixa. Não sabe o que é gemer de amor. Bom seria pendurá-la cabeça para baixo, esvaída em sangue.

Se não quer, por que exibe as graças em vez de esconder? Hei de chupar a carótida de uma por uma. Até lá enxugo os meus conhaques. Por causa de uma cadelinha como essa que aí vai rebolando-se inteira. Quieto no seu canto, ela que começou. Ninguém diga seu taradinho. No fundo de cada filho de família dorme um vampiro - não sinta gosto de sangue. Eunuco, ai quem me dera. Castrado aos cinco anos. Morda a língua, seu desgraçado. Um anjo pode dizer amém! Muito sofredor ver moça bonita - e são tantas. Perdoe a  indiscrição, querida, deixa o recheio do sonho para as formigas? Ó, você permite, minha flor? Só um pouquinho, um beijinho só. Mais um, só mais um. Outro mais. Não vai doer, se doer eu caia duro a seus pés. Por Deus do céu não lhe faça mal - o nome de guerra é Nelsinho, o Delicado.

Olhos velados que suplicam e fogem ao surpreender no óculo o lampejo do crime? Com elas usar de agradinho e doçura. Ser gentilíssimo. A impaciência é que me perde, a quantas afugentei com gesto precipitado? Culpa minha não é. Elas fizeram o que sou - oco de pau podre, onde floresce aranha, cobra, escorpião. Sempre se enfeitando, se pintando, se adorando no espelhinho da bolsa. Se não é para deixar assanhado um pobre cristão por que então? Olhe as filhas da cidade, como elas crescem: não trabalham nem fiam, bem que estão gordinhas. Essa é uma das lascivas que gostam de se coçar. Ouça o risco da unha na meia de seda. Que me arranhasse o corpo inteiro, vertendo sangue do peito. Aqui jaz Nelsinho, o que se finou de ataque. Gênio do espelho, existe em Curitiba alguém mais aflito do que eu?

Não olhe, infeliz! Não olhe que você está perdido. É das tais que se divertem a seduzir o adolescente. Toda de preto, meia preta, upa lá lá. Órfã ou viúva? Marido enterrado, o véu esconde as espinhas que, noite para o dia, irrompem no rosto - o sarampo da viuvez em flor. Furiosa, recolhe o leiteiro e o padeiro. Muita noite revolve-se na cama de casal, abana-se com leque recebendo a valeriana. Outra, com a roupa da cozinheira, à caça de soldado pela rua. Ela está de preto, a quarentena do nojo. Repare na saia curta, distrai-se a repuxá-la no joelho. Ah, o joelho... Redondinho de curva mais doce que o pêssego maduro. Ai, ser a liga roxa que aperta a coxa fosforescente de brancura. Ai, o sapato que machuca o pé. E, sapato, ser esmagado pela dona do pezinho e morrer gemendo. Como um gato!

Veja, parou um carro. Ela vai descer. Colocar-me em posição. Ai, querida, não faça isso: eu vi tudo. Disfarce, vem o marido, raça de cornudo. Atrai o pobre rapaz que se deite com a mulher. Contenta-se em espiar ao lado da cama - acho que ficaria inibido. No fundo, herói de bons sentimentos. Aquele tipo do bar, aconteceu com ele. Esse aí um dos tais? Puxa, que olhar feroz. Alguns preferem o rapaz, seria capaz de? Deus me livre beijar outro homem, ainda mais de bigode e catinga de cigarro? Na pontinha da língua a mulher filtra o mel que embebeda o colibri e enraivece o vampiro.

Cedo a casadinha vai às compras. Ah, pintada de ouro, vestida de pluma, pena e arminho - rasgando com os dentes, deixá-la com os cabelos do corpo. Ó bracinho nu e rechonchudo - se não quer por que mostra em vez de esconder? -, com uma agulha desenho tatuagem obscena. Tem piedade, Senhor, são tantas, eu tão sozinho.

Ali vai uma normalista. Uma das tais disfarçada? Se eu desse com o famoso bordel. Todas de azul e branco - ó mãe do céu - desfilando com meia preta e liga roxa no salão de espelhos. Não faça isso, querida, entro em levitação: força dos vinte anos. Olhe, suspenso nove centímetros do chão, desferia voo não fora o lastro da pombinha do amor. Meu Deus, fique velho depressa. Feche o olho, conte um, dois, três e, ao abri-lo, ancião de barba branca. Não se iluda, arara bêbada. Nem o patriarca merece confiança, logo mais com a ducha fria, a cantárida, o anel mágico - conheci cada pai de família.

Atropelado por um carro, se a polícia achasse no bolso esta coleção de retratos? Linchado como tarado, a vergonha da cidade. Meu padrinho nunca perdoaria: o menino que marcava com miolo de pão a trilha na floresta. Ora uma foto na revista do dentista. Ora na carta a uma viuvinha de sétimo dia. Imagine o susto, a vergonha fingida, as horas de delírio na alcova - à palavra alcova um nó na garganta.

Toda família tem uma virgem abrasada no quarto. Não me engana, a safadinha: banho de assento, três ladainhas e vai para a janela, olho arregalado no primeiro varão. Lá envelhece, cotovelo na almofada, a solteirona na sua tina de formol.

Por que a mão no bolso, querida? Mão cabeluda de lobisomem. Não olhe agora. Cara feia, está perdido. Tarde demais, já vi a loira: milharal ondulante ao peso das espigas maduras. Oxigenada, a sobrancelha preta - como não roer unha? Por ti serei maior que o motociclista do Globo da Morte. Deixa estar, quer bonitão de bigodinho. Ora, bigodinho eu tenho. Não sou bonito, mas sou simpático, isso não vale nada? Uma vergonha na minha idade. Lá vou eu atrás dela, quando menino era a bandinha do Trio Rio Branco.

Desdenhosa, o passo resoluto espirra faísca das pedras. A própria égua de Átila - onde pisa, a grama já não cresce. No braço não sente a baba do meu olho? Se existe força do pensamento, na nuca os sete beijos da paixão.

Vai longe. Não cheirou na rosa a cinza do coração da andorinha. A loira, tonta, abandona-se na mesma hora. Ó morcego, ó andorinha, ó mosca! Mãe do céu, até as moscas instrumento do prazer - de quantas arranquei as asas? Brado aos céus: como não ter espinha na cara?

Eu vos desprezo, virgens incrédulas. A todas poderia desfrutar - nem uma baixou sobre mim o olho estrábico de luxuria. Ah, eu bode imundo e chifrudo, rastejariam e beijavam a cola peluda. Tão bom, só posso morrer. Calma, rapaz: admirando as pirâmides marchadoras de Quéops, Quéfren e Miquerinos, quem se importa com o sangue dos escravos? Me acuda, ó Deus. Não a vergonha, Senhor, chorar no meio da rua. Pobre rapaz na danação dos vinte anos. Carregar vidro de sanguessugas e, na hora do perigo, pregá-las na nuca?

Se o cego não vê a fumaça e não fuma, ó Deus, enterra-me no olho a tua agulha de fogo. Não mais cão sarnento atormentado pelas pulgas, que dá voltas para morder o rabo. Em despedida - ó curvas, ó delícias - concede-me a mulherinha que aí vai. Em troca da última fêmea pulo no braseiro - os pés em carne viva. Ai, vontade de morrer até. A boquinha dela pedindo beijo - beijo de virgem é mordida de bicho-cabeludo. Você grita vinte e quatro hora e desmaia feliz.


Conto de Dalton Trevisan retirado do livro O Vampiro de Curitiba, Editora Record, 14ª Edição, Rio de Janeiro, 1994.

23 novembro 2025

Entrevistas Telefônicas

Antigamente, o repórter envergava a sua melhor roupa, lançava um olhar às unhas e à barba, examinava o dinheiro do bolso, e lá ia com o fotógrafo à busca de sua entrevista. Pensava no que ia perguntar. Estabelecia um plano, um esquema. Examinava o seu caderno de apontamentos. Riscava. Acrescentava. Creio que alguns ensaiariam mesmo a maneira de abordar o assunto. Pesariam as palavras. Para cada pessoa há uma espécie de diálogo. Cada diálogo tem seu vocabulário. O repórter, só com a escola da experiência, com seu senso de responsabilidade e a sua vontade de acertar, comparecia respeitosamente diante do seu entrevistado. E, no fim da conversa, prontificava-se a mandar-lhe o seu trabalho, antes de publicá-lo, para alguma correção necessária.

Um repórter assim parece criatura paleontológica. Mas alguns ainda estão vivos, pela vizinhança. Talvez apenas estejam aposentados ou tenham mudado de profissão, pois os tempos mudaram completamente.

Como os meios de transporte se tornaram impossíveis; e como todos somos tão ocupados que ninguém nos encontra com facilidade; como, além disso, nos tornamos tão inteligentes que podemos concentrar numa simples frase uma ideia sublime, capaz de desvendar mistérios, de transformar o mundo e mesmo atingir o universo em seus fundamentos, a reportagem pode ser feita com muito mais facilidade mediante uma ligação telefônica.

Assim, estamos nós mergulhados numa leitura inadiável, com o pensamento comprometido numa direção, e a voz mais gentil deste mundo pergunta-nos muito obsequiosamente se vamos ou não vamos ganhar o campeonato de futebol; o que pensamos dos amores de Elizabeth Taylor; quem deve ser indicado o homem do ano; se iremos à Luz no ano que vem; se as crianças devem ou não assistir a programas de televisão; se somos a favor ou contra a eutanásia; qual é a senhora mais elegante do mundo; se os mortos devem ser enterrados ou cremados; se a Princesa Soraia poderá vir a ser uma boa artista de cinema; se o melhor meio de ir para Niterói será a ponte ou o túnel; se as escolas devem ter um, dois ou três turnos; qual é a melhor maneira de acabar com o analfabetismo; se o morro do Querosene cai ou deve ser derrubado; se acreditamos que os macacos tenham possibilidade de falar; se os autômatos seriam uma solução para a falta de empregados; qual seria o maior poeta do mundo e quem deve ganhar o Prêmio Nobel; se haverá guerra no Oriente, e quando; se existem barras de ouro nos muros das casas de Ouro Preto; se o carnaval está mesmo acabando ou ainda vai durar alguns anos; se os homens sabem amar melhor que as mulheres ou vice-versa.

Então, nós, da nossa modéstia, na certeza de não sermos nem enciclopedistas, nem adivinhos, nem mesmo observadores internacionais, tropeçamos diante da voz tão amável. Como podemos responder? Quem sabe? É difícil dizer...

Mas a voz não é muito exigente. Uma palavra basta. Sim ou não... Qualquer coisa... Apenas para satisfazer a curiosidade dos leitores...

E então, que fazemos? Porque não se deve ser como uma porta fechada a quem bate e chama por nós, respondemos ao acaso. (Salvo os privilegiados, com presença de espírito, onisciência e genialidade telefônica.)

Mas na semana seguinte os amigos e conhecidos nos felicitam efusivamente. Estivemos formidáveis. Brilhantíssimos. Estupendos. É exatamente assim que eles pensam. E que clareza de resposta! Nítida. Concisa. Perfeita.

E temos até receio de ficar melancólicos. Como nos podemos confessar humilhados com essa perfeição?


Crônica de Cecília Meireles retirada do livro Ilusões do Mundo, Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1976.

A Galeria

Entro por um dos lados da galeria, mas não são as primeiras lojas as que mais me interessam, embora se trate de bons restaurantes, com suas vidraças forradas de cortininhas franzidas, por trás das quais bem me lembro do apuro das claras toalhas e dos brilhantes cristais.

Vejo a bela vitrina das modas; detenho-me a contemplar os brocados orientais, esse primor de tecelagem, com figuras, cenas, paisagens, que aparecem e desaparecem ora com fios de seda branca, ora em fios de seda cor de ouro. (Que mão se atreve a cortar um pano destes? Que obra de arte pode essa mão criar que seja superior a essa obra de arte?)

Vejo a pastelaria com sua variedade de pães, bolos, biscoitos, todas as combinações que os homens engendraram sobre o trigo e a simples e primitiva necessidade de se alimentarem. (Houve um homem, na minha raça, que se descobria diante do trigo ceifado. Alguém atreveu-se a perguntar-lhe, certa vez, por que assim fazia. E ele, reverente e sóbrio, respondeu-lhe, com o sucinto falar de seu tempo: "Porque o trigo é sagrado: sem ele não se celebra.")

Vejo a pequena loja de objetos vários; bolsinhas de petit-point, broches de porcelana, colheres de prata, lenços de seda, caixinhas; o dono da loja está sempre no mesmo lugar, sentado da mesma maneira, lendo um jornal (que espero não seja o mesmo), com a mesma expressão no rosto sereno. Entra-se para comprar qualquer coisa, ele atende, embrulha, dá o troco, volta para o mesmo lugar, continua a ler o que estava lendo, e é como se não tivesse acontecido nada. (Pensando bem, acontece alguma coisa em tais ocasiões, entre vendedor e comprador? Algum dos dois fica mais feliz? Ou tudo são ilusões trocadas, pequeno jogo que aprendemos e vamos repetindo, neste mundo de modestos deslumbramentos e precárias rotinas?) Enfim, o dono da loja senta-se da mesma maneira, retoma o seu jornal e é como se nada daquilo lhe pertencesse, nem se importasse que aparecesse qualquer freguês.

Mais adiante, ao contrário, é a loja surpreendente de um jovem cheio de entusiasmo e agitação. O que se vende? Vende-se tudo quanto a fantasia humana é capaz de inventar, e especialmente artigos para cotillon, curiosidades para dias de festa; chapeuzinhos de papel, charutos que parecem acesos, cartolinhas que apertadas de certo modo fazem saltar lá de dentro um coelhinho branco, binóculos que não medem mais de uns dois centímetros - sem falar em vistas transparentes sobre assuntos que podem ser dos mais inocentes, como o Monte Branco, até os mais perigosos, impróprios para menores e senhoras, e que estão separadas em outra caixa, para uma freguesia especial.

E assim prossegue a tranquila galeria. Uns param diante da vitrina de artigos fotográficos: - Que máquinas, que tripés! - inclinam-se, agacham-se, acocoram-se, enviam a todas aquelas peças olhares perpendiculares, transversais e creio que até mesmo elíticos; olhares que veem do outro lado das coisas e o interior das próprias coisas, que desmontam, aparafusam, atarraxam esses segredos mecânicos, engenhosos e sutis. E tudo para quê? Para fotografar este mundo, as pessoas e os objetos deste mundo, como se tudo devesse ser fixado, tudo merecesse perdurar, tudo tivesse uma parte de valor inesquecível; enfim, o seu instante divino e imortal.

Ah! Muita coisa se aprende, a caminhar por uma galeria de lojas tão diversas, de proprietários tão diferentes, e por onde os passantes - tão civilizados - são umas sombras silenciosas que, diante de cada vitrina, procuram compreensão, comunicação, interpretação entre os desejos que levam consigo e as múltiplas sugestões que aos seus olhos se apresentam.

No fim de tudo, e quando já é noite, no salãozinho à meia-luz, um pianista martela no seu piano verde monótonos ritmos intermináveis, a cujo som as belas senhoras jantam, pensativas, sem que se possa adivinhar o que, a cada uma, possa dizer cada nota.


Crônica de Cecília Meireles retirada do livro Ilusões do Mundo, Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1976.

22 novembro 2025

Compensação

Hoje eu queria apenas abrir um álbum de fotografias, onde não houvesse gente de olhos duros e mãos aduncas. Onde umas boas senhoras pousassem no papel com delicadeza, não para sobreviverem eternamente, mas para mandarem seus retratos às amigas com finas letras de "sincera afeição". Um álbum onde aparecessem uns bons velhotes que não faziam negociatas, que não sabiam multiplicar dinheiro, que usavam roupas desajeitadas, sofriam de reumatismo, liam Virgílio e Horácio, e não tinham medo dos fantasmas do porão. De lá de dentro de seus retratos essas sombras estariam dizendo: "Meus filhos, nada disso vale a pena..." (E saberíamos que falavam de parentes sôfregos, ávidos de partilhas, uns querendo herdar as terras do morro; outros, a mata; outros, a várzea - todos vivendo já do testamento, antes mesmo da extrema-unção...) Hoje eu queria ficar folheando este álbum, onde não desejaria encontrar aqueles herdeiros.

Hoje eu queria ler uns livros que não falam de gente, mas só de bichos, de plantas, de pedras: um livro que me levasse por essas solidões da Natureza, sem vozes humanas, sem discursos, boatos, mentiras, calúnias, falsidades, elogios, celebrações...

Hoje eu queria apenas ver uma flor abrir-se, desmanchar-se, viver sua existência, autêntica, integral, do nascimento à morte, muito breve, sem borboletas nem abelhas de permeio. Uma existência total, no seu mistério. (E antes da flor? - Não sei.) (E depois da flor? - Não sei.) Esta ignorância humana. Este silêncio do universo. A sabedoria.

Hoje eu queria estar entre as nuvens, na velocidade das nuvens, na sua fragilidades, na sua docilidade de serem e deixarem de ser. Livremente. Sem interesse próprio. Confiante. À mercê da vida. Sem nenhum sonho de durarem um pouco mais, de ficarem no céu até o ano 2000, de terem emprego público, férias, abono de Natal, montepio, prêmio de loteria, discurso à beira do túmulo, nome em placa de rua, busto no jardim... (Ó nuvens prodigiosas, criaturas efêmeras que estais tão alto e não pretendeis nada, e sois capazes de obscurecer o sol e de fazer frutificar a terra, e não tendes vaidade nenhuma nem apego a esses acasos!) Hoje eu queria andar lá em cima nas nuvens, com as nuvens, pelas nuvens, para as nuvens...

Hoje eu queria estar no deserto amarelo, sem beduíno, camelo ou rebanho de cabras: no puro deserto amarelo onde só reina o vento grandioso que leva tudo, que não precisa nem de água, nem de areia, nem de flor, nem de pedra, nem de gente. O vento solitário que vai para longe de mãos vazias.

Hoje eu queria ser esse vento.


Crônica de Cecília Meireles retirada do livro Escolha o Seu Sonho, Editora Record,  21ª edição, Rio de Janeiro, 1998.