quarta-feira, 27 de junho de 2012

Borboleta

           Marcelo Jeneci/Arnaldo Antunes/Alice Ruiz/Zélia Duncan



Música é que nem borboleta
Ela voa pra onde quer
Ela pousa em quem quiser
Não é homem nem mulher
Música que sai da gaveta
Se traveste na voz de alguém
Quando entra dentro da cabeça
Não é sua e nem de ninguém

Te invade, te assalta e te faz refém
Se a rima não vem, já sabe
Bater palma com a mão
E quando chegar o refrão
Bater com os pés no chão

Se não decorar a letra
Pode cantar o " nananananáa "
A melodia pode assoviar
Pode até dar um berro, pode berrar
Às vezes ela é como um ladrão
Ou como um convidado trapalhão
Depois que entra não quer mais sair
Quer repetir, repetir, repetir

Verde, branca, azul ou vermelha
Também tem música de toda cor
De acalanto, de baile, de amor
De restaurante, de elevador
Música é que nem borboleta
Sai do casulo do auto-falante
Do carrossel e da roda gigante
Pra que você e todo mundo cante


Música do CD Pelo Sabor do Gesto/Em cena, gravado ao vivo em 2011. Esta e outras três canções fazem parte do álbum, mas gravadas em estúdio.



Música Música

              Sueli Costa/Abel Silva


Música, Música
Companheira do quarto dos rapazes
Entre revistas e fumaça
Confidente do quarto das meninas
Entre calcinhas e sandálias
Música, Música

Farol na cerração dos grandes medos
A força que levanta os bailarinos
Elétrica guitarra entre os dedos
Aflitos e quentes dos meninos
Música, Música

Irmã, imã, irmã
Feroz como a ira do Irã
Ou mansa como o último carinho
Quando já chega a manhã
Música, Música

Música que abre o então LP de Simone de 1980...

A Iara

            Ricardo Azevedo


Todo mundo sabe o que é um desejo proibido. São aquelas coisas que a gente sente vontade de fazer mas sabe que não deve.
É o caso, por exemplo, da pessoa gorda, pesando duzentos e tantos quilos, que passa diante da loja de doces e fica parada olhando a vitrine. A pessoa suspira. Aqueles bombons crocantes de chocolate. Aquelas tortas de massa folhada. A pessoa geme. Aqueles pasteizinhos. Aquelas balas recheadas de ovo. A pessoa sabe que precisa perder peso. Sabe que o melhor é dar o fora, mas aquelas delícias açucaradas parece que têm um canto sedutor, parecem uma espécie de ímã irresistível puxando e puxando.
Outro caso. O aluno precisa estudar matemática. A prova vai ser no dia seguinte, logo cedo. O menino, ou menina, chega da escola, almoça e vai para o quarto. Quando abre a janela, que dia maravilhoso! A criança pega o livro. Que céu azul! A criança tenta se concentrar. Os passarinhos cantam. A criança sabe que precisa estudar. Sabe que a prova não vai ser fácil. Escuta sua turma jogando bola lá fora, rindo, brincando... É quando vem o desejo proibido: atirar os livros para o alto, gritar: - dane-se o mundo! - e ir correndo brincar.
Último exemplo: quem resiste a passar diante de uma torta cremosa de chocolate e não tirar uma lasquinhazinha?
Tudo isso tem a ver com a Iara.
É que a Iara representa o desejo proibido, a tentação. Está ligada àquelas coisas que a gente tem vontade de fazer mas sabe que é melhor não.
Dizem que é uma mulher belíssima, um ser encantado, habitante do fundo das águas. Em certas regiões, é conhecida como Mãe-d'água, a dona das águas, dos rios, dos lagos, lagoas e igarapés. Graças a seu canto mavioso e a sua beleza inigualável, a Iara consegue atrair suas vítimas para, depois, levá-las para seu reino perdido no fundo das águas.
Uma lenda antiga conta que, certa vez, um índio chamado Jaguarari estava pescando tucunaré quando enxergou uma moça boiando no rio. Era a coisa mais linda que o rapaz já tinha visto na vida. Os cabelos da moça tinham a cor das flores e das plantas. Sua boca tinha o brilho do sol. Sua pele era cheirosa e macia. E seus olhos de jabuticaba? E sua voz? A lenda diz que os passarinhos ficavam em silêncio quando a moça cantava. Até as cachoeiras paravam de correr para não atrapalhar seu canto.
A tal moça bonita era a Iara.
Segundo a lenda, a Iara abriu os braços para Jaguarari, sorriu e desapareceu no escuro profundo. Desde aquele dia, Jaguarari nunca mais foi o mesmo. Não queria mais saber de conversa. Não tinha fome. Passava as noites andando sem rumo. Não conseguia arrancar aquela moça encantada do pensamento. Um dia, desesperado, pegou a canoa e partiu para o meio do rio. Dizem que a Iara apareceu, Jaguarari mergulhou com ela e nunca mais voltou.
Na verdade, em todos os cantos do mundo, existem histórias de mães-d'água.
Na Europa, elas são as famosas sereias, descritas como mulheres loiras e lindas, às vezes metade mulher, metade peixe, que vivem nos rios e nos mares penteando a cabeleira, admirando-se diante dos espelhos, cantando e fazendo os navegantes perderem o juízo.
Histórias muito antigas, vindas da África, contam que no fundo do mar habita uma deusa, Iemanjá, muito poderosa, capaz de influenciar as coisas e os rumos de nossa vida. Até hoje existe o costume de levar presentes, colares, pentes, sabonetes, essas coisas de que as mulheres gostam, à rainha do mar. Muitos pescadores garantem que é essa deusa quem determina se sua rede vai voltar vazia ou cheia de peixes. Tal como a Iara e as sereias, a poderosa Iemanjá, se quiser, também pode levar homens embora para sempre.
Na Grécia Antiga, contava-se a história do astuto Ulisses, o herói de mil ardis. Durante sua viagem de volta à Ítaca, onde morava, viu-se obrigado a cruzar a perigosa Terra das Sereias. Acontece que Ulisses era atrevido. Resolveu que ia conhecer o canto daquelas verdadeiras feiticeiras aquáticas e, para isso, seguiu os conselhos de sua amiga Circe: primeiro, tapou com cera os ouvidos de seus companheiros de viagem. Depois, pediu a eles que o amarrassem, bem amarrado, no mastro do navio. Assim, graças a esse estratagema, o guerreiro dos mil disfarces passou pertinho das sereias e, maravilhado, quase enlouquecido, pôde admirar suas maravilhas e ouvir seu canto indescritível, sem correr o risco de ser levado, antes do tempo, para o abismo inevitável da morte.
Iaras, sereias, mães d'água.
Pensando bem, talvez representem algo presente na alma de todo ser humano: a vontade secreta de experimentar o novo, mesmo correndo riscos. O sonho de encontrar, no desconhecido, o paraíso e a felicidade perdida.
O mito de Ulisses, em todo caso, nos ensina que existe um meio-termo: é possível, sim, experimentar e sobreviver ao canto extraordinário da sereia. Basta ter coragem e, claro, saber usar a cabeça.


do livro " Armazém do Folclore ".

terça-feira, 26 de junho de 2012

Cabelos Negros

           Eduardo Dusek/Luís Antônio de Cássio


Eu quero seus cabelos negros
Nas minhas mãos
Eu quero esses olhinhos ciganos
Nos meus sonhos

Eu quero você
Minha vida inteira
Como doce mania
Fosse qualquer maneira
Eu queria você
Assim como é
Sem mentir, nem dizer
O que não quiser

Eu quero você criança
Caída no chão
Eu quero você brilhando
Brincando de mim
Pois eu quis você
Como o sol e as estrelas
Noites de lua
Nostalgia
Eu vou ter você
Mesmo só pra pensar
Nessas coisas de amar
Na alegria

Eu começo a descobrir
Que em meu coração
Tá nascendo um jardim
Pensando em plantar
Você dentro de mim

Pois preciso
Lhe ver várias vezes florescendo
Nas luas crescentes
Sentir seu perfume
Pra encontrar
Você

Música que abre o lado B do então LP de Eduardo Dusek de 1982 intitulado Cantando no Banheiro.

Faltando Um Pedaço

                    Djavan 


O amor é um grande laço
Um passo pr'uma armadilha
Um lobo correndo em círculo
Pra alimentar a matilha
Comparo sua chegada
Com a fuga de uma ilha
Tanto engorda quanto mata
Feito desgosto de filha, de filha

O amor é como um raio
Galopando em desafio
Abre fendas, cobre vales
Revolta as águas dos rios
Quem tentar seguir seu rastro
Se perderá no caminho
Na pureza de um limão
Ou na solidão do espinho

O amor e a agonia
Cerraram fogo no espaço
Brigando horas a fio
O cio vence o cansaço
E o coração de quem ama
Fica faltando um pedaço
Que nem a lua minguando
Que nem o meu nos seus braços.

O difícil facilitário do verbo ouvir

                   Arthur da Távola


Um dos maiores problemas de comunicação, tanto a de massas como a interpessoal, é o de como o receptor ouve o que o emissor falou.

Numa mesma  cena de telenovela, notícia de telejornal ou num simples papo ou discussão, observo que a mesma frase permite diferentes níveis de entendimento.

Na conversação dá-se o mesmo. Raras, raríssimas, são as pessoas que procuram ouvir exatamente o que a outra está dizendo.
Diante desse quadro, venho desenvolvendo uma série de observações e como ando bastante entusiasmado com a formulação delas, divido-as com o competente leitorado que, por certo me ajudará passando-me as pesquisas que tenha a respeito.

Observe que:

1- Em geral o receptor não ouve o que o outro fala: ele ouve o que o outro não está dizendo.
2- O receptor não ouve o que o outro fala: ele ouve o que quer.
3- O receptor não ouve o que o outro fala: ele ouve o que já escutara antes e coloca que o outro está falando aquilo que se acostumou a ouvir.
4- O receptor não ouve o que o outro fala: ele ouve o que imagina que o outro ia falar.
5- Numa discussão, em geral, os discutidores não ouvem o que o outro está falando. Eles ouvem quase só o que estão pensando para dizer em seguida.
6- O receptor não ouve o que o outro fala. Ele ouve o que gostaria de ouvir ou que o outro dissesse.
7- A pessoa não ouve o que a outra fala. Ela apenas ouve o que está sentindo.
8- A pessoa não ouve o que a outra fala. Ela ouve o que já pensava a respeito daquilo que a outra está falando.
9- A pessoa não ouve o que a outra está falando. Ouve o que confirme ou rejeite o seu próprio pensamento. Vale dizer, ela transforma o que a outra está falando em objeto de concordância ou discordância.
10- A pessoa não ouve o que a outra está falando: ouve o que possa se adaptar ao impulso de amor, raiva ou ódio que já sentia pela outra.
11- A pessoa não ouve o que a outra fala. Ouve da fala dela apenas aqueles pontos que possam fazer sentido para as ideias e pontos de vista que no momento a estejam influenciando ou tocando mais diretamente.

Esses pontos mostram como é raro e difícil conversar. Como é raro e difícil se comunicar! O que há, em geral, ou são monólogos simultâneos trocados à guisa de conversa, ou são monólogos paralelos, à guisa de diálogo. O próprio diálogo pode haver sem que necessariamente haja comunicação. Esta só se dá quando ambos os polos ouvem-se, não é claro, no sentido material de " escutar " mas no sentido de procurar compreender em sua extensão e profundidade o que o outro está dizendo.

Ouvir, portanto, é muito raro. É necessário limpar a mente de todos os ruídos e interferências do próprio pensamento durante a fala alheia.

Ouvir implica uma entrega ao outro, uma diluição nele. Daí a dificuldade de as pessoas inteligentes efetivamente ouvirem. A sua inteligência em funcionamento permanente, o seu hábito de pensar, avaliar, julgar e analisar tudo interferem como um ruído na plena recepção daquilo que o outro está falando.

Não só a inteligência a atrapalhar a plena audiência. Outros elementos perturbam o ato de ouvir. Um deles é o mecanismo de defesa. Há pessoas que se defendem de ouvir o que as outras estão dizendo, por verdadeiro pavor inconsciente de se perderem a si mesmas. Elas precisam " não ouvir " porque " não ouvindo " livram-se da retificação dos próprios pontos de vista, da aceitação de realidades diferentes das próprias, de verdades idem e assim por diante. Livram-se do novo, que é saúde, mas as apavora. Não ouvir, é, pois, um sólido mecanismo de defesa.

Ouvir é um grande desafio. Desafio de abertura interior: de impulso na direção do próximo, de comunhão com ele, de aceitação dele como é e como pensa. Ouvir é proeza. Ouvir é raridade. Ouvir é ato de sabedoria.

Depois que a pessoa aprende a ouvir ela passa a fazer descobertas incríveis escondidas ou patentes em tudo aquilo que os outros estão dizendo a propósito de falar.


segunda-feira, 18 de junho de 2012

A Centopéia

Um cara vivia sozinho, até que decidiu que sua vida seria melhor se ele tivesse um animalzinho  de estimação como companhia. Assim, ele foi até uma loja, falou com o dono que queria um bichinho que fosse incomum.
Depois de um tempo, chegaram à conclusão de que ele deveria ficar com uma centopéia. Centopéia seria mesmo um bichinho incomum...
Um bichinho tão pequeno, com cem pés... é realmente incomum!! A centopéia veio dentro de uma caixinha branca, que seria usada para ser a sua casinha...
Bem, ele levou a caixinha para casa, achou um bom lugar para colocar tão pequenina caixinha, e pensou que o melhor começo para sua nova companhia seria levá-la até o bar, para tomarem uma cervejinha... Assim, ele perguntou à centopéia, que estava dentro da caixinha: - Gostaria de ir comigo até o Frank's tomar uma cerveja? Mas não houve resposta da sua nova amiguinha.
Isto deixou-o meio chateado. Esperou um pouco e perguntou de novo: - Que tal ir comigo até o bar tomar uma cervejinha, heim? Mas, de novo, nada de resposta da nova amiguinha... De novo ele esperou mais um pouco, pensando e pensando sobre o que estava acontecendo... Decidiu perguntar de novo, mas desta vez, chegou o rosto bem perto da caixinha e gritou: - EI, VOCÊ AÍ!!! QUER OU NÃO QUER IR COMIGO ATÉ O FRANK'S TOMAR UMA CERVEJA? 
Uma pequena voz veio de lá de dentro da caixinha: - Eu já ouvi desde a primeira vez, CARA! Estou calçando os sapatos, PORRA!

autoria desconhecida

Eu Vou Estar

             Dinho Ouro Preto/Alvin L.   


Eu não vou pro inferno
Eu não iria tão longe por você
Mas vai ser impossível não lembrar
Vou estar em tudo em que você vê:

Nos seus livros, nos seus discos
Vou entrar na sua roupa
E onde você menos esperar
Eu vou estar

Eu não vou pro céu também
Eu não sou tão bom assim
E mesmo quando encontrar alguém
Você ainda vai me ver a mim

Nos seus livros, nos seus discos
Vou entrar na sua roupa
E onde você menos esperar

Embaixo da cama
Nos carros passando
No verde da grama
Na chuva chegando
Eu vou voltar

Nos seus livros, nos seus discos
Vou entrar na sua roupa
E onde você menos esperar
Eu vou estar...

Música incluída como bônus no CD Sortimento de Zélia Duncan, lançado em 2001.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Se as coisas fossem mães

                  Sylvia Orthof

Se a lua fosse mãe, seria mãe das estrelas,
o céu seria sua casa, casa das estrelas belas.

Se a sereia fosse mãe, seria mãe dos peixinhos,
o mar seria um jardim e os barcos seus caminhos.

Se a casa fosse mãe, seria a mãe das janelas,
conversaria com a lua sobre as crianças estrelas,
falaria de receitas, pasteis de vento, quindins,
emprestaria a cozinha pra lua fazer pudins!

Se a terra fosse mãe, seria a mãe das sementes,
pois mãe é tudo que abraça, acha graça e ama a gente.

Se uma fada fosse mãe, seria a mãe da alegria,
toda mãe é um pouco fada... Nossa mãe fada seria.

Se uma bruxa fosse mãe,
seria mãe gozada:
seria a mãe das vassouras, da Família Vassourada!

Se a chaleira fosse mãe, seria a mãe da água fervida,
faria chá e remédio para as doenças da vida.

Se a mesa fosse mãe,
as filhas, sendo cadeiras,
sentariam comportadas,
teriam " boas maneiras ".

Cada mãe é diferente: mãe verdadeira, ou postiça,
mãe vovó e mãe titia, Maria, Filó, Francisca, Neide,
Gertrudes, Malvina, Alice, toda mãe é como eu disse.

Dona Mamãe ralha e beija,
erra, acerta, arruma a mesa,
cozinha, escreve, trabalha fora,

ri, esquece, lembra e chora,
traz remédio e sobremesa...

Tem até pai que é " tipo mãe "...
esse, então, é uma beleza!

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Ser

            Carlos Drummond de Andrade

O filho que não fiz
hoje seria homem.
Ele corre na brisa,
sem carne, sem nome.

Às vezes o encontro
num encontro de nuvem.
Apóia em meu ombro
seu ombro nenhum.

Interrogo meu filho,
objeto de ar:
em que gruta ou concha
quedas abstrato?

Lá onde eu jazia,
responde-me o hálito,
não me percebeste,
contudo chamava-te
como ainda te chamo
(além, além do amor)
onde nada, tudo
aspira a criar-se.

O filho que não fiz
faz-se por si mesmo.

Trecho do Livro do Desassossego (passagem 10)

                               Fernando Pessoa

E assim sou, fútil e sensível, capaz de impulsos violentos e absorventes, maus e bons, nobres e vis, mas nunca de um sentimento que subsista, nunca de uma emoção que continue, e entre para a substância da alma. Tudo em mim é a tendência para ser a seguir outra coisa; uma impaciência da alma consigo mesma, como com uma criança inoportuna; um desassossego sempre crescente e sempre igual. Tudo me interessa e nada me prende. Atendo a tudo sonhando sempre; fixo os mínimos gestos faciais de com quem falo, recolho as entoações milimétricas dos seus dizeres expressos; mas ao ouvi-lo, não o escuto, estou pensando noutra coisa, e o que menos colhi da conversa foi a noção do que nela se disse, da minha parte ou da parte de com quem falei. Assim, muitas vezes, repito a alguém o que já lhe repeti, pergunto-lhe de novo aquilo a que ele já me respondeu; mas posso descrever, em quatro palavras fotográficas, o semblante muscular com que ele disse o que me não lembra, ou a inclinação de ouvir com os olhos com que recebeu a narrativa que me não recordava ter-lhe feito. Sou dois, e ambos têm a distância - irmãos siameses que não estão pegados.

sábado, 2 de junho de 2012

O Ron-Ron do Gatinho

                  Ferreira Gullar


O gato é uma maquininha
que a natureza inventou;
tem pelo, bigode, unhas
e dentro tem um motor.

Mas um motor diferente
desses que tem nos bonecos
porque o motor do gato
não é um motor elétrico.

É um motor afetivo
que bate em seu coração
por isso ele faz ron-ron
para mostrar gratidão.

No passado se dizia
que esse ron-ron tão doce
era causa de alegria
pra quem sofria de tosse.

Tudo bobagem, despeito,
calúnias contra o bichinho:
esse ron-ron em seu peito
não é doença - é carinho.

A Fala do Gato

             Ferreira Gullar


O gato siamês
tem uns vinte miados:
alguns são suaves,
outros exaltados;
há os miados graves
e há os engasgados.

É quase um idioma
que ainda não entendo
mas o gato bem sabe
o que está dizendo.

E até falou comigo
em linguagem de gente.
Disse: " meu amigo ",
assim de repente.

Então eu acordei
feliz e contente!
Era sonho, claro.
Mas, como se sabe,
é no sonho que ocorre
o que se deseja
e no mundo não cabe.

Gato Pensa?

                 Ferreira Gullar


Dizem que gato não pensa
mas é difícil de crer.
Já que ele também não fala
como é que se vai saber?

A verdade é que o Gatinho,
quando mija na almofada,
vai depressa se esconder:
sabe que fez coisa errada.

E se a comida está quente,
ele, antes de comer,
muito calculadamente,
toca com a pata pra ver.

Só quando a temperatura
da comida está normal,
vem ele e come afinal.

E você pode explicar
como é que ele sabia
que ela ia esfriar?

O Gatinho Curioso

                     Ferreira Gullar




Era uma vez era uma vez
um gato siamês.


Por ser muito engraçadinho,
é chamado de Gatinho.


Além de ser carinhoso,
ele é muito curioso.


Nada se pode fazer
que ele não deseje ver.


Se alguém mexe na estante,
está lá no mesmo instante.


Se vão consertar a pia,
está ele lá de vigia.


E o resultado é que quando
viu seu dono consertando


a tomada da parede,
meteu-se, com tanta sede,


a cheirar tudo que - nhoque!
levou um baita choque!


E pensa que ele aprendeu?
Mais fácil aprendia eu!


Mantém-se o mesmo abelhudo
que quer dar conta de tudo.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Meu Mundo E Nada Mais

                     Guilherme Arantes


Quando eu fui ferido
Vi tudo mudar
Das verdades que eu sabia
Só sobraram restos
E eu não me esqueci
Toda aquela paz que eu tinha


Eu que tinha tudo
Hoje estou mudo
Estou mudado à meia-noite
À meia luz sonhando
Daria tudo por um modo de esquecer


Eu queria tanto estar
No escuro do meu quarto
À meia-noite
À meia luz sonhando
Daria tudo por meu mundo
E nada mais


Não estou bem certo
Se ainda vou sorrir
Sem um travo de amargura
Como ser mais livre
Como ser capaz
De enfrentar um novo dia


Eu que tinha tudo
Hoje estou mudo
Estou mudado à meia-noite
À meia luz sonhando
Daria tudo por um modo de esquecer


Eu queria tanto estar
No escuro do meu quarto
À meia-noite
À meia luz sonhando
Daria tudo por meu mundo
E nada mais

Ouvindo Estrelas

             Chico Roque/Paulo Sérgio Valle 


Quando a gente está amando, pode ouvir estrelas
Pode ser poeta, pode andar sonhando
Adormecer na rua
E acordar na lua

Quando a gente é amada
Tudo mais é nada
Não é mais pecado
Certo ou errado
O corpo é só desejo
A boca só quer beijo

Quando estou com você
É pra valer
Muito demais
Quem é que sabe o que faz é a gente
Deixa o coração querer
Deixa tudo acontecer
No mundo não há bem nem mal
É tudo natural
E deixa a gente se atrair
Deixa o corpo desejar
Inútil querer resistir
Quando tem que ser, ninguém segura

De coração pra coração
Quero você
Não dá mais pra esconder

De coração pra coração
Só sei dizer
Te amo

Música do então LP de 1989 de Joanna intitulado Primaveras e Verões. Marcava os dez anos de carreira dela.

Via Láctea

              Olavo Bilac

" Ora (direis) ouvir estrelas! certo
Perdeste o senso! " Eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...

E conversamos toda a noite, enquanto
A via láctea, como um pálido aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: " Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo? "

E eu vos direi: " Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas. "

Trem Fantasma

                   Moacyr Scliar

Afinal se confirmou: era leucemia mesmo, a doença de Matias, e a mãe dele mandou me chamar. Chorando, disse-me que o maior desejo de Matias sempre fora passear de Trem Fantasma; ela queria satisfazê-lo agora, e contava comigo. Matias tinha nove anos. Eu, dez. Cocei a cabeça.

Não se poderia levá-lo ao parque onde funcionava o Trem Fantasma. Teríamos de fazer uma improvisação na própria casa, um antigo palacete nos Moinhos de Vento, de móveis escuros e cortinas de veludo cor de vinho. A mãe de Matias deu-me dinheiro; fui ao parque e andei de Trem Fantasma. Várias vezes. E escrevi tudo num papel, tal como escrevo agora. Fiz também um esquema. De posse destes dados, organizamos o Trem Fantasma.

A sessão teve lugar a três de julho de 1956, às vinte e uma horas. O minuano assobiava entre as árvores, mas a casa estava silenciosa. Acordamos o Matias. Tremia de frio. A mãe o envolveu em cobertores. Com todo cuidado colocamo-lo num carrinho de bebê. Cabia de tão mirrado estava. Levei-o até o vestíbulo da entrada e ali ficamos, sobre o piso de mármore, à espera.

As luzes se apagaram. Era o sinal. Empurrando o carrinho, precipitei-me a toda velocidade pelo longo corredor. A porta do salão se abriu; entrei por ela. Ali estava a mãe de Matias, disfarçada de bruxa (grossa maquilagem vermelha. Olhos pintados, arregalados. Vestes negras. Sobre o ombro uma coruja empalhada. Invocava deuses malignos).

Dei duas voltas pelo salão, perseguido pela mulher. Matias gritava de susto e prazer. Voltei ao corredor.

Outra porta se abriu - a do banheiro, um velho banheiro com vasos de samambaias e torneiras de bronze polido. Suspenso no chuveiro estava o pai de Matias, enforcado, língua de fora, rosto arroxeado. Saindo dali entrei num quarto de dormir onde estava o irmão de Matias, como esqueleto (sobre o tórax magro, costelas pintadas com tintas fosforescentes; nas mãos, uma corrente enferrujada). Já o gabinete nos revelou as duas irmãs de Matias, apunhaladas (facas enterradas nos peitos; rostos lambuzados de sangue de galinha. Uma estertorava).

Assim era o Trem Fantasma, em 1956.

Matias estava exausto. O irmão tirou-o do carrinho e, com todo o cuidado, colocou-o na cama.

Os pais choravam baixinho. A mãe quis me dar dinheiro. Não aceitei. Corri para casa.

Matias morreu algumas semanas depois. Não me lembro de ter andado de Trem Fantasma desde então.

Eco e Narciso

Eco era o nome de uma ninfa muito tagarela, que conversava muito e sem pensar. Não conseguia ouvir em silêncio quando alguém estava falando. Sempre se intrometia e interrompia, nem que fosse para concordar e repetir o que o  outro dizia. Um dia, fez isso com a ciumenta deusa Juno (Hera), quando ela andava pelos bosques furiosa, procurando o marido Júpiter (Zeus), que brincava com as ninfas. A tagarelice de Eco atrasou a poderosa Juno (Hera), que resolveu:

- De agora em diante, sua língua só vai servir para o mínimo possível.

E a partir desse dia, a coitada da Eco só podia mesmo repetir as últimas palavras do que alguém dissesse. Sua voz deixou de expressar suas próprias palavras.

Por isso, algum tempo depois, quando ela viu um rapaz belíssimo e se apaixonou por ele, tratou de ir atrás sem dizer  nada, em silêncio. Esse rapaz se chamava Narciso e dizem que foi o homem mais bonito e deslumbrante que já existiu. Todo mundo se enamorava dele, que nem ligava.

Eco ficou louca por Narciso e o seguiu por toda parte. Bem que tinha vontade de se aproximar e confessar seu amor, mas não tinha mais sua própria fala, não podia enunciar seus pensamentos e sentimentos... Só lhe restava ficar escondida, por perto, esperando que ele dissesse alguma coisa que ela pudesse repetir.

Um dia, o belo Narciso estava passeando no bosque com uns amigos, mas se perdeu do grupo e não conseguiu encontrá-los. Começou a chamar:

- Tem alguém aqui?

Era a chance da ninfa! E ela logo respondeu, ainda escondida:

- Aqui! Aqui!

Espantado, Narciso olhou em volta e não viu ninguém.

Chamou:

- Vem cá!

Ela repetiu:

- Vem cá! Vem cá!

Não vendo ninguém, ele perguntou:

- Por que me evita?

- Por que me evita? - foi a única resposta que ouviu.

O rapaz não desistiu:

- Vamos nos encontrar...

Toda feliz, Eco saiu do meio das árvores e correu para abraçá-lo, repetindo:

- Vamos nos encontrar...

Mas ele fugiu dela, gritando:

- Pare com isso! Prefiro morrer a deixar que você me toque!

A pobre Eco só podia repetir:

- Que você me toque... que você me toque...

E saiu correndo, triste e envergonhada, para se esconder no fundo de uma caverna. Sofreu tanto com essa dor de amor, que foi emagrecendo, definhando, até perder o corpo, desaparecer por completo e ficar reduzida apenas a uma voz, repetindo as palavras dos outros - isso que nós chamamos de eco.

Narciso continuou sua vida, sempre da mesma maneira. Sem ligar para ninguém, nunca se importando com os outros, brincando com o sentimento alheio. Até que alguém, que ele fez sofrer muito, rezou para Nêmesis, a deusa do Destino, e pediu:

- Que ele possa amar alguém tanto como nós o amamos! E que também seja impossível que ele conquiste seu amor!

Nêmesis ouviu essa oração. Achou que era justa e resolveu atender ao pedido.

Havia no fundo do bosque um laguinho de águas cristalinas e tranquilas, onde nunca vinha um animal beber água e não caíam folhas ou galhos secos - um verdadeiro espelho. Era cercado por uma grama verdinha e macia. Um lugar muito fresco e gostosíssimo. Um dia, no meio de uma caçada, Narciso passou por ali. Com sede, resolveu tomar um pouco d'água. Deitado na margem, com a cabeça debruçada sobre o lago, ficou encantado pelo belíssimo reflexo que via. Nunca tinha se visto num espelho e não sabia que era a sua própria imagem. Mas imediatamente se apaixonou, maravilhado por tanta beleza. Ficou ali parado, contemplando aquele rosto mais bonito do que o de qualquer estátua de mármore que jamais vira. Suspirava, extasiado diante daqueles olhos brilhantes como estrelas. Admirava o pescoço elegante, o rosto adorável, os cachos abundantes do cabelo, emoldurando um rosto de proporções perfeitas e feições incomparáveis. Nem mesmo um deus poderia ser tão belo!

Os amigos apareceram para procurá-lo, mas ele não deu atenção. Chamaram-no para ir embora, mas ele ficou. Olhando o reflexo no lago.

Quando sorria, aquela criatura divina lhe sorria ao mesmo tempo. Quando aproximava os lábios da superfície, via que o outro rosto também chegava mais perto, preparando um beijo. Mas, ao se tocarem, o outro sumia e só ficava a água. Mergulhou os braços na água, tentando puxar para si aquele pescoço, trazer aquele corpo para seu abraço. Mas tudo se dissolvia.

Muito tempo Narciso ficou ali, sem comer nem dormir, admirando aquele ser por quem estava tão apaixonado. Chorou - e suas lágrimas caíram sobre a imagem, que chorava com ele, e ficou turva.

- Ai de mim! - gemia ele.

A única resposta que tinha era de Eco, sempre escondida:

- Ai de mim!

Consumindo-se de amor, sem conseguir sair dali, Narciso ficou desesperado, rasgou as vestes, se arranhou todo, puxou os próprios cabelos, Na água, a imagem fazia o mesmo. Mas ele não podia agarrá-la. Nem tinha forças para prestar atenção em mais nada que não fosse aquele rosto refletido no lago.

Desinteressado de tudo, cada vez mais fascinado por si mesmo, foi definhando. Ao perceber que ia morrer, suspirou:

- Adeus!

Fechou os olhos, deixou cair a cabeça sobre a grama. Na água, o rosto sumiu. Só Eco respondeu:

- Adeus!

Mais tarde, os amigos voltaram. Mas já o encontraram morto. Prepararam tudo para o funeral, e, quando vieram pegar o corpo, ele não estava mais lá. Em seu lugar nascera uma flor perfumada e linda, com uma estrela de pétalas brancas em volta de um miolo amarelo. Para sempre chamada de narciso.

do livro Clássicos da Verdade: Mitos e lendas greco-romanos.