quarta-feira, 27 de junho de 2012

A Iara

            Ricardo Azevedo


Todo mundo sabe o que é um desejo proibido. São aquelas coisas que a gente sente vontade de fazer mas sabe que não deve.
É o caso, por exemplo, da pessoa gorda, pesando duzentos e tantos quilos, que passa diante da loja de doces e fica parada olhando a vitrine. A pessoa suspira. Aqueles bombons crocantes de chocolate. Aquelas tortas de massa folhada. A pessoa geme. Aqueles pasteizinhos. Aquelas balas recheadas de ovo. A pessoa sabe que precisa perder peso. Sabe que o melhor é dar o fora, mas aquelas delícias açucaradas parece que têm um canto sedutor, parecem uma espécie de ímã irresistível puxando e puxando.
Outro caso. O aluno precisa estudar matemática. A prova vai ser no dia seguinte, logo cedo. O menino, ou menina, chega da escola, almoça e vai para o quarto. Quando abre a janela, que dia maravilhoso! A criança pega o livro. Que céu azul! A criança tenta se concentrar. Os passarinhos cantam. A criança sabe que precisa estudar. Sabe que a prova não vai ser fácil. Escuta sua turma jogando bola lá fora, rindo, brincando... É quando vem o desejo proibido: atirar os livros para o alto, gritar: - dane-se o mundo! - e ir correndo brincar.
Último exemplo: quem resiste a passar diante de uma torta cremosa de chocolate e não tirar uma lasquinhazinha?
Tudo isso tem a ver com a Iara.
É que a Iara representa o desejo proibido, a tentação. Está ligada àquelas coisas que a gente tem vontade de fazer mas sabe que é melhor não.
Dizem que é uma mulher belíssima, um ser encantado, habitante do fundo das águas. Em certas regiões, é conhecida como Mãe-d'água, a dona das águas, dos rios, dos lagos, lagoas e igarapés. Graças a seu canto mavioso e a sua beleza inigualável, a Iara consegue atrair suas vítimas para, depois, levá-las para seu reino perdido no fundo das águas.
Uma lenda antiga conta que, certa vez, um índio chamado Jaguarari estava pescando tucunaré quando enxergou uma moça boiando no rio. Era a coisa mais linda que o rapaz já tinha visto na vida. Os cabelos da moça tinham a cor das flores e das plantas. Sua boca tinha o brilho do sol. Sua pele era cheirosa e macia. E seus olhos de jabuticaba? E sua voz? A lenda diz que os passarinhos ficavam em silêncio quando a moça cantava. Até as cachoeiras paravam de correr para não atrapalhar seu canto.
A tal moça bonita era a Iara.
Segundo a lenda, a Iara abriu os braços para Jaguarari, sorriu e desapareceu no escuro profundo. Desde aquele dia, Jaguarari nunca mais foi o mesmo. Não queria mais saber de conversa. Não tinha fome. Passava as noites andando sem rumo. Não conseguia arrancar aquela moça encantada do pensamento. Um dia, desesperado, pegou a canoa e partiu para o meio do rio. Dizem que a Iara apareceu, Jaguarari mergulhou com ela e nunca mais voltou.
Na verdade, em todos os cantos do mundo, existem histórias de mães-d'água.
Na Europa, elas são as famosas sereias, descritas como mulheres loiras e lindas, às vezes metade mulher, metade peixe, que vivem nos rios e nos mares penteando a cabeleira, admirando-se diante dos espelhos, cantando e fazendo os navegantes perderem o juízo.
Histórias muito antigas, vindas da África, contam que no fundo do mar habita uma deusa, Iemanjá, muito poderosa, capaz de influenciar as coisas e os rumos de nossa vida. Até hoje existe o costume de levar presentes, colares, pentes, sabonetes, essas coisas de que as mulheres gostam, à rainha do mar. Muitos pescadores garantem que é essa deusa quem determina se sua rede vai voltar vazia ou cheia de peixes. Tal como a Iara e as sereias, a poderosa Iemanjá, se quiser, também pode levar homens embora para sempre.
Na Grécia Antiga, contava-se a história do astuto Ulisses, o herói de mil ardis. Durante sua viagem de volta à Ítaca, onde morava, viu-se obrigado a cruzar a perigosa Terra das Sereias. Acontece que Ulisses era atrevido. Resolveu que ia conhecer o canto daquelas verdadeiras feiticeiras aquáticas e, para isso, seguiu os conselhos de sua amiga Circe: primeiro, tapou com cera os ouvidos de seus companheiros de viagem. Depois, pediu a eles que o amarrassem, bem amarrado, no mastro do navio. Assim, graças a esse estratagema, o guerreiro dos mil disfarces passou pertinho das sereias e, maravilhado, quase enlouquecido, pôde admirar suas maravilhas e ouvir seu canto indescritível, sem correr o risco de ser levado, antes do tempo, para o abismo inevitável da morte.
Iaras, sereias, mães d'água.
Pensando bem, talvez representem algo presente na alma de todo ser humano: a vontade secreta de experimentar o novo, mesmo correndo riscos. O sonho de encontrar, no desconhecido, o paraíso e a felicidade perdida.
O mito de Ulisses, em todo caso, nos ensina que existe um meio-termo: é possível, sim, experimentar e sobreviver ao canto extraordinário da sereia. Basta ter coragem e, claro, saber usar a cabeça.


do livro " Armazém do Folclore ".

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