quarta-feira, 5 de novembro de 2025

Capítulo 13 - Em Resumo

Toda revolução social é precedida por, ou traz consigo, uma mudança na percepção do mundo e/ou uma mudança na percepção do possível. Como não podia deixar de ser, essas novas maneiras de ver são, a princípio, consideradas como um contra-senso ridículo, ou coisa pior do que isso, pelo senso comum coletivo da época.

A revolução de Copérnico é, sem dúvida, o principal exemplo. Pensar que a Terra não era o centro do universo, que girava em torno do Sol e era parte de uma vasta galáxia, não era apenas absurdo, era uma heresia que solapava a religião e a civilização. Há também exemplos menos importantes. Era enorme absurdo pensar que organismos invisíveis, que ninguém podia ver, pudessem ser causa de doenças. A crença de que escravos não eram objetos para serem comprados e vendidos como gado, mas sim pessoas com plenos direitos humanos, não era somente um pensamento nocivo, contrário à História e à Bíblia: era também economicamente perturbador e perigoso. A noção revelada por uma fórmula matemática obscura de que a menor porção da matéria, o átomo, uma vez rompido, poderia libertar uma força incalculável, era evidentemente apenas um excêntrico rebento da ficção científica.

Entretanto, todas essas "ridículas" mudanças perceptuais alteraram a face e a natureza de nosso mundo. Foi o "senso comum" que passou a ser gradualmente ridículo.

Vejamos um exemplo corriqueiro da maneira pela qual esta mudança acontece. Era um fato perfeitamente óbvio para todos - e além disso apoiado pelas Sagradas Escrituras - que a Terra era plana, e aqueles que sugeriram que ela era esférica eram hereges perigosos. Mas, quando Colombo navegou para o Novo Mundo, sem com isso cair da extremidade da Terra, essa experiência real, essa evidência de que a concepção anteriormente aceita era um erro, forçou uma mudança no modo de se perceber a Terra. E essa mudança


terça-feira, 4 de novembro de 2025

O Ego: a dimensão consciente da personalidade

Embora suas bases sejam em si mesmas relativamente desconhecidas e inconscientes, o ego é, por excelência, um fator consciente. É inclusive adquirido, em termos empíricos, ao longo da vida. Parece surgir, em primeiro lugar, da colisão entre o fator somático e o meio ambiente, e, depois de estabelecido como sujeito, prossegue desenvolvendo-se a partir de outras colisões com o mundo exterior e interior.

Apesar da ilimitada extensão de suas bases, o ego nunca é mais e nunca é menos que a consciência como um todo. Como fator consciente, o ego poderia ser, pelo menos no plano teórico, descrito de forma completa. Isso porém nunca chega a ser mais do que uma imagem da personalidade consciente; todos os aspectos desconhecidos ou inconscientes para o sujeito estarão ausentes. A imagem completa teria que incluí-los. Mas uma descrição total da personalidade, mesmo teórica, é absolutamente impossível porque a porção inconsciente que a compõe não pode ser apreendida pelos recursos cognitivos. Essa porção inconsciente, como a experiência o tem generosamente comprovado, não é de maneira alguma destituída de importância. Pelo contrário, as qualidades mais decisivas de uma pessoa são em geral inconscientes e podem ser percebidas apenas pelos outros, ou têm que ser laboriosamente descobertas com ajuda externa.

Está claro, então, que a personalidade como um fenômeno total não coincide com o ego, quer dizer, com a personalidade consciente, mas forma uma entidade que precisa ser distinguida do ego. Sem dúvida, a necessidade dessa distinção só recai sobre uma psicologia que admite o fator do inconsciente e, para ela, essa distinção é da mais lapidar importância.

Sugeri que se chamasse a personalidade total que, embora presente, não pode ser plenamente conhecida, de Self (si-mesmo). Por definição, o ego está subordinado ao Self e mantém com ele uma relação de parte para o todo. Dentro do campo da consciência, como dissemos, ele tem livre-arbítrio. Com isso não estou querendo dizer nada de filosófico, apenas me refiro ao bem conhecido fato psicológico de se ter "liberdade de escolha" - ou melhor, o sentimento subjetivo de liberdade. Mas, da mesma forma como nosso livre-arbítrio choca-se com as necessidades que vêm do mundo externo, também no mundo interior subjetivo essa função encontra seus limites fora do campo da consciência, ao entrar em conflito com os fatos do Self. E, assim como as circunstâncias e eventos externos "acontecem" conosco e limitam nossa liberdade, também o Self atua sobre o ego como uma ocorrência objetiva diante da qual o livre-arbítrio pode fazer muito pouco. Na realidade, é bem sabido que o ego não só nada pode fazer contra o Self, como é às vezes realmente assimilado por componentes inconscientes da personalidade em seu processo de desenvolvimento, sendo por eles profundamente alterado.

Diante da natureza dessa função, é impossível oferecer uma descrição geral do ego, exceto em termos formais. Qualquer outro modo de observação teria que admitir a individualidade que aliás se constitui em uma de suas principais características. Embora os numerosos elementos que compõem este complexo fator sejam em si os mesmos em toda parte, são infinitamente variados em sua clareza, tonalidade emocional e abrangência. O resultado de sua combinação - o ego - é, portanto, e até onde é possível julgar, individual e único, conservando até certo ponto sua identidade. Sua estabilidade é relativa porque às vezes podem se dar mudanças extensas na personalidade. Essas alterações não são necessariamente sempre patológicas, podem ser decorrentes do próprio processo de desenvolvimento e, nessa medida, pertencer à variação normal.

Sendo o ponto de referência do campo da consciência, o ego é o sujeito de todas as bem-sucedidas tentativas de adaptação passíveis de serem alcançadas pela vontade. Portanto, o ego desempenha uma parte significativa dentro da economia psíquica. É tão importante a sua posição nesse sentido que há bons motivos para se alimentar a falsa noção de que o ego é o centro da personalidade e que o campo da consciência é a psique em si. Afora as alusões encontradas em Leibniz, Kant, Schelling e Schopenhauer, e os esboços filosóficos de Carus e von Hartmann, é somente a partir do final do século XIX que a moderna psicologia com seu método indutivo descobriu os fundamentos da consciência e comprovou empiricamente a existência de uma psique fora do campo consciente. Com essa descoberta, a posição do ego até então absoluta tornou-se relativa, o que quer dizer que, embora conserve seu atributo de centro do campo da consciência, é discutível se funciona ou não como centro da personalidade. O ego é parte da personalidade, não a personalidade inteira. Como já disse, é simplesmente impossível estimar se sua parcela de participação é grande ou pequena, e até onde é livre ou depende das qualidades da psique "extraconsciente". Podemos dizer apenas que sua liberdade é limitada e sua dependência comprovada de maneira muitas vezes decisiva.


Texto de Carl Gustav Jung retirado do livro Espelhos do Self - As imagens arquetípicas que moldam a sua vida, vários autores, organização de Christine Downing, Editora Cultrix, São Paulo, 1998.

O texto integral desse ensaio encontra-se no livro Aion: Estudos sobre o simbolismo do si-mesmo, C.G. Jung, Editora Vozes, RJ, 1982, Obras Completas.

segunda-feira, 3 de novembro de 2025

Ser Homem

"Quando eu era pequeno - engraçado - eu me sentia mais próximo da minha mãe que do meu pai, ela era mais afetuosa, mas eu sabia que era a opinião do meu pai sobre mim que contava, era a sua aprovação que eu realmente queria. Por quê? Não sei. Mas eu ainda sou assim, num certo sentido: amo muito minha esposa, nós somos felizes juntos, mas para me sentir realmente feliz eu preciso, acima de tudo, fazer parte do mundo dos homens e ser reconhecido pelos outros homens como um homem bem-sucedido."

Num sentido concreto, o que "conta" para os homens numa sociedade patriarcal são as relações entre eles próprios - muito mais do que as relações entre homens e mulheres. Os homens procuram nos outros aprovação, aceitação, legitimação e respeito. Os homens veem os outros homens como árbitros do que é real, como guardiães da sabedoria e detentores e controladores do poder.

Mas é possível para os homens sentirem-se próximos de outros homens na nossa sociedade? Compartilhar sentimentos? Como é que eles são educados em nossa sociedade? O que significa ser um homem? O que é que eles aprendem de seus pais a respeito do que significa ser homem? E eles se sentem próximos de seus pais na infância? Como se sentem a respeito de suas amizades com outros homens? Como é que as relações com outros homens se comparam com as relações com mulheres? Que padrões de comportamento e aprovação os homens estabelecem uns para os outros? Como foi que o papel tradicional afetou a capacidade dos homens de se sentirem próximos uns dos outros?

Paradoxalmente, embora os homens se vejam uns aos outros como "aquele que é importante", a maioria tem medo de se aproximar demais. "Sentimentos" por outros homens devem ser expressos apenas de forma casual, e não devem ultrapassar a admiração e o respeito. Assim, as relações entre homens costumam se basear numa aceitação mútua de papéis e posições, numa integração no grupo, ao invés de numa discussão pessoal e íntima sobre suas vidas e sentimentos. Como disse um homem, "nós somos mais colegas do que amigos". Nossa cultura glorifica e ao mesmo tempo limita severamente as relações entre homens, mesmo aquelas entre pais e filhos. Ainda assim, alguns homens afirmaram ter um sentimento profundo de afinidade e companheirismo para com outros homens.

Como são as amizades íntimas entre os homens? Como se sentem os homens sobre isso? O que elas significam dentro de suas vidas? Como os homens gostam de passar o tempo juntos? O que é que eles veem de mais importante nos outros homens? Como se relacionavam quando meninos - incluindo as relações físicas? Como se sentem ao demonstrar seus sentimentos ou afeição para com outros homens?


Trecho inicial do livro O Relatório Hite sobre a sexualidade masculina, Shere Hite, Difel - Difusão Editorial S.A., São Paulo, 1981/1982.

domingo, 12 de outubro de 2025

Escrevendo

Não me lembro mais onde foi o começo, foi por assim dizer escrito todo ao mesmo tempo. Tudo estava ali, ou devia estar, como no espaço-temporal de um piano aberto, nas teclas simultâneas do piano. Escrevi procurando com muita atenção o que se estava organizando em mim e que só depois da quinta paciente cópia é que passei a perceber. Meu receio era de que, por impaciência com a lentidão que tenho em compreender, eu estivesse apressando antes da hora um sentido. Tinha a impressão de que, mais tempo eu me desse, e a história diria sem convulsão o que ela precisava dizer. Cada vez mais acho tudo uma questão de paciência, de amor criando paciência, de paciência criando amor. - Ele se levantou todo ao mesmo tempo, emergindo mais aqui do que ali. Eu interrompia uma frase no capítulo 10, digamos, para escrever o que era o capítulo 2, por sua vez interrompido durante meses porque escrevia o capítulo 18. Esta paciência eu tive, e com ela aprendia: a de suportar, sem nenhuma promessa, o grande incômodo da desordem. Mas também é verdade que a ordem constrange. - Como sempre, a dificuldade maior era a da espera. (Estou me sentindo mal, diria a mulher para o médico. É que a senhora vai ter um filho. E eu que pensava que estava morrendo, responderia a mulher. A alma deformada, crescendo, se avolumando, sem nem ao menos se saber que aquilo é espera. Às vezes, ao que nasce morto, sabe-se que se esperava.) - Além da espera difícil, a paciência de recompor paulatinamente a visão que foi instantânea. E como se isso não bastasse, infelizmente não sei "redigir", não consigo "relatar" uma ideia, não sei "vestir uma ideia com palavras". O que vem à tona já vem com ou através de palavras, ou não existe. - Ao escrevê-lo, de novo a certeza só aparentemente paradoxal de que o que atrapalha ao escrever é ter de usar palavras. É incômodo. Se eu pudesse escrever por intermédio de desenhar na madeira ou de alisar uma cabeça de menino ou de passear pelo campo, jamais teria entrado pelo caminho da palavra. Faria o que tanta gente que não escreve faz, e exatamente com a mesma alegria e o mesmo tormento de quem escreve, e com as mesmas profundas decepções inconsoláveis: não usaria palavras. O que pode vir a ser a minha solução. Se for, bem-vinda.


Crônica de Clarice Lispector retirada do livro Para Não Esquecer, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 2019.

sábado, 11 de outubro de 2025

Demonstrações do Céu (92)

 "Disseram-lhe, pois: que sinal fazes tu para que o vejamos, e creiamos em ti? - (JOÃO, 6:30.)


Em todos os tempos, quando alguém na Terra se refere às coisas do Céu, verdadeira multidão de indagadores se adianta pedindo demonstrações objetivas das verdades anunciadas.

Assim é que os médiuns modernos são constantemente assediados pelas exigências de quantos se colocam à procura da vida espiritual.

Esse [e vidente e deve dar provas daquilo que identifica.

Aquele escreve em condições supranormais e é constrangido a fornecer testemunho das fontes de sua inspiração.

Aquele outro materializa os desencarnados e, por isso, é convocado ao teste público.

Todavia, muita gente se esquece de que todas as criaturas do Senhor exteriorizam os sinais que lhes dizem respeito.

O mineral é reconhecido pela utilidade.

A árvore é selecionada pelos frutos.

O firmamento espalha mensagens de luz.

A água dá notícias do seu trabalho incessante.

O ar esparge informações, sem palavras, do seu poder na manutenção da vida.

E entre os homens prevalecem os mesmos imperativos.

Cada irmão de luta é examinado pelas suas características.

O tolo dá-se a conhecer pelas puerilidades.

O entendido revela mostras de prudência.

O melhor demonstra as virtudes que lhe são peculiares.

Desse modo, o aprendiz do Evangelho, ao solicitar revelações do Céu para a jornada da Terra, não deve olvidar as necessidades de revelar-se firmemente disposto a caminhar para o Céu.

Houve dia em que a turba vulgar dirigiu-se ao próprio Salvador que a beneficiava, perguntando: - "que sinal fazes tu para que o vejamos, e creiamos em ti?"

Imagina, pois, que se ao Senhor da Vida foi dirigida semelhante interrogativa, que indagação não se fará do Alto a nós mesmos, toda vez que rogarmos sinais do Céu, a fim de atendermos ao nosso simples dever?


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

Donas do nosso lar

Empregadas domésticas são figuras folclóricas em qualquer lar. Imagina numa casa de bibas. Normalmente conservadoras, elas chegam desconfiadas. "Dois homens e uma cama! Há algo de esquisito nessa casa!" Para logo depois virarem grandes aliadas no espetáculo de vaudeville que, muitas vezes, se transforma o dia-a-dia de dois gays vivendo sob o mesmo teto.

O primeiro contato com essas rainhas dos nossos lares é o mais difícil. Como dizer para aquela senhora, com saia até o joelho, coque no cabelo, a maior pinta de evangélica radical, que ali moram você e seu namorado? Mais fácil contar pra mãe, né? Ela, ao menos, a gente conhece. Mas não adianta esconder, porque um dia os dois acabam pegos juntos no chuveiro. E aí a empregada vai embora revoltada e fazendo fofoca com o porteiro.

Só não passa por essa dificuldade quem faz a linha Act up e diz logo de cara: "Antônia, aqui também mora o Pedro e nós somos bichas. Você entendeu?" Assim mesmo, com esse vocabulário, porque se sofisticar com somos gays, homossexuais, transviados, pederastas... Ela vai perguntar em seguida: "São o quê, patrão?" Então, você terá que explicar de qualquer maneira: "Bichas, Antônia! Nós somos bichas. Entendeu agora?"

A alternativa pra não enfrentar a conversa é ter a sorte de contratar uma empregada enrustida, como a Dulce. Ela trabalha para duas bibas empresários faz 17 anos. Eles são muito gays e completamente assumidos. Mas não há santo que faça Dulce reconhecer isso. Quando tem festa no apartamento da dupla, a empregada enrustida vira atração, pobrezinha:

- Dulce, preciso lhe contar. Marcelo e Sérgio estão juntos todos esses anos. Casados, feito homem e mulher, fazem sexo e tudo. Só você ainda não sabe.

- Não levanta esse falso, seu Henrique.

- Verdade, você não vê? Eles dormem até na mesma cama.

- Imagina, seu Marcelo e seu Sérgio, que não podem ver mulher de saia.

Inexplicavelmente, ela duvida. E ainda testemunha contra a calúnia, mesmo sendo a única mulher a dormir naquela casa.

Outro estilo clássico de empregada de gays é a de fachada. Ela dá a maior força, mas não aprova que os patrões deem muita pinta. Acha necessário disfarçar e sempre dá um jeito de falar de noitadas com mulheres com as visitas, que naturalmente pensam que ela é louca. A Francisca, por exemplo, chega ao requinte de mentir ao telefone, sempre que pega uma ligação dos pais do seu patrão biba. "Deixa eu vê se ele já saiu do quarto. Você conhece o danado do seu filho. Chegou com uma mulher e tá trancado na maior safadeza."

Pouco importa pra elas que você não esconda sua homossexualidade. Generosas como mães zelosas, querem nos proteger a todo custo. Mas, às vezes, atrapalham. Vera Lúcia, por exemplo, sempre deixa de saia justa os paqueras de uma biba dom Juan. Bem-sucedido com homens, na cama dele não faltam belos jovens. Mas Vera Lúcia, muito simpática, num esforço de memória, sempre chama o rapaz pelo nome do visitante de outra noite qualquer. "Olha, seu Eduardo, fiz vitamina de abacate como o senhor gosta." A biba que já alertou mil vezes - "Vera Lúcia quando você vir homem aqui não abra a boca, sua anta!" - quase morre de vergonha, ou de medo de ser tomado por promíscuo, e fala desolado para a lesada: "Fofa, esse é o Marcos." Quem, no entanto, consegue manter empregada despachada de boca calada? "Gente, nem reconheci. E o seu Marcos gosta de quê mesmo no café?"

Para os enrustidos, ter empregada aliada é gênero de primeira necessidade. Um conhecido, filho de família rica e tradicional do Rio Grande do Sul, tem uma ótima para os seus propósitos. Esperta passista do Salgueiro, Cleonice é treinada para sumir com tudo gay do apartamento em 23 minutos. Basta um parente qualquer ligar, mesmo do aeroporto, já no Rio de Janeiro, dizendo que vai pra lá e ela dispara feito um raio. Em tempo cronometrado, escamoteia porta-retratos, livros, revistas, bilhetes, deixa calcinha lavada esquecida no box, até o quadro do Vitor Arruda desaparece da parede. Cleonice é tão pós-graduada nas paranoias do patrão que, em época de visita, troca invariavelmente os nomes das bibas que ligam pra ele. Nem a gente escapou dessa.

- Seu Patrick, dona Nelsa da Revista Playboy lá no telefone.

Foi indisfarçável o espanto dos parentes diante de nome tão improvável. Restou à biba esforçada um sorriso amarelo e a saída de emergência.

- Família excêntrica, a da gatinha.


Editorial de Nelson Feitosa para a hoje extinta revista Sui Generis, ano 3, número 24, SG Press Editora, Rio de Janeiro, 1997.

sábado, 4 de outubro de 2025

Problemas do Amor (91)

"... que vosso amor cresça cada vez mais no pleno conhecimento e em todo discernimento." - Paulo (FILIPENSES. 1:9.)


O amor é a força divina do Universo.

É imprescindível, porém, muita vigilância para que não a desviemos na justa aplicação.

Quando um homem se devota, de maneira absoluta, aos seus cofres perecíveis, essa energia, no coração dele, denomina-se "avareza"; quando se atormenta, de modo exclusivo, pela defesa do que possui, julgando-se o centro da vida, no lugar em que se encontra, essa mesma força converte-se nele em "egoísmo"; quando só vê motivos para louvar o que representa, o que sente e o que faz, com manifesto desrespeito pelos valores alheios, o sentimento que predomina em sua órbita chama-se "inveja".

Paulo, escrevendo a amorosa comunidade filipense, formula indicação de elevado alcance. Assegura que "o amor deve crescer, cada vez mais, no conhecimento e no discernimento, a fim de que o aprendiz possa aprovar as coisas que são excelente".

Instruamo-nos, pois, para conhecer.

Eduquemo-nos para discernir.

Cultura intelectual e aprimoramento moral são imperativos da vida, possibilitando-nos a manifestação do amor, no império da sublimação que nos aproxima de Deus.

Atendamos ao conselho apostólico e cresçamos em valores espirituais para a eternidade, porque muitas vezes, o nosso amor é simplesmente querer e tão-somente com o "querer" é possível desfigurar, impensadamente, os mais belos quadros da vida.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

domingo, 28 de setembro de 2025

O último lírico Mário Quintana

Esta nova antologia de Mário Quintana, como as anteriores, não pretende substituir-se à sua obra ou dela extrair o melhor, o suco, a nata. Muito menos o essencial de sua poesia. Pela própria natureza de sua obra, qualquer antologia que dele se faça resulta em duas antologias: a do que foi incluído e a do que não foi incluído. Não intentei sequer estabelecer uma ordem de preferência, uma direção de leitura. O próprio poeta, na antologia de 1981, eliminou a cronologia dos poemas. Preocupei-me em escolher para um leitor de primeira viagem, sempre pensando na obra de Mário Quintana como um lado indivisível.

Essa obra é bastante peculiar por sua estreita unidade, cada poema é um fragmento do poema geral que Mário Quintana vem compondo ao longo de toda a sua vida. Dos sonetos de A Rua dos Cataventos, passando pela prosa lírica do Caderno H, até os livros mais recentes, como A Vaca e o Hipogrifo e Esconderijos do Tempo, sua obra mantém uma qualidade, marca, timbre, ressonância ou maneira que só posso definir como quintanidade. Muitos dos pequenos poemas em prosa ou verso de Quintana, isolados, pouco significam além de uma distração lúdica, um jogo sutil de percepção das coisas e dos seres. Mas dentro de sua obra, lado a lado com outras páginas, eles se iluminam repentinamente - o borrifo irisado da cachoeira vai juntar-se às águas profundas que correm para o estuário de sua poesia, sob cuja aparente amenidade às vezes se oculta um Estige assustador.

Uma antologia de Mário Quintana dificilmente podia deixar de fora todos ou quase todos os sonetos de seu memorável livro de estreia, A Rua dos Cataventos, ao qual ele ficou devendo sua instantânea popularidade. O tempo se encarregou de provar que esses sonetos, longe de refletirem um retardo na adoção de novos postulados estéticos, mostravam um tratamento novo dessa forma fixa, tornando-a mais fluida, mais dúctil, mais aberta. O soneto deixava de ser a forma, era um poema liberto das varas rituais.

Outro livro cuja inclusão in totum seria quase obrigatória é o pequenino Aprendiz de Feiticeiro, pouco mais que uma plaquete. Não posso negar minha especial admiração, diria até minha paixão, por esse livrinho, que passou um tanto quanto despercebido da crítica quando de seu lançamento em 1950 (hoje é uma raridade da qual ninguém se desfaz nem a peso de ouro). Essa admiração eu a partilhava com o saudoso Augusto Meyer, a quem tanto devo para a melhor compreensão da grandeza de Quintana, ele próprio, Augusto, um excelente poeta. Lembro-me de nossas infindáveis conversas a respeito do lírico de Alegrete, cidade que ele colocou no mapa literário brasileiro. Havia entre nós uma espécie de cumplicidade afetiva. Hoje me dou conta de que, para Augusto Meyer, a princípio deve ter parecido estranho que um jovem crítico nordestino se interessasse tão obsessivamente por dois poetas gaúchos bem gaúchos, que na melhor das hipóteses a crítica oficial considerava menores, e as novas gerações, na sua faina epigônica, deixavam de observar mais detidamente: o até hoje injustiçado Felipe d'Oliveira e Mário Quintana. Para alguns de meus companheiros de geração literária foi um verdadeiro choque meu artigo "Assassinemos o poeta", no qual confessei minha admiração pelo poeta do Aprendiz, contraposta ao cansaço, ao tédio pelas glórias convencionais de nossa poesia.

Um terceiro livro de Mário Quintana que considero indispensável a quem deseje penetrar no mundo fascinante de sua obra é o das Canções, publicado em 1946. Até hoje ainda me surpreende o fato de que, no meio de nossos milhares de exegetas universitários recém-formados, poucos se deram ao trabalho de mergulhar as mãos nessa verdadeira arca de preciosidades poéticas. Criou-se entre nós a mística de que só se deve estudar os autores difíceis, constituindo dificuldade, para esse critério, o hermetismo da linguagem, o inusitado do vocabulário e da sintaxe, que de fato permitem elocubrações e interpretações no mais das vezes gratuitas. Não só Mário Quintana, outros poetas e alguns romancistas brasileiros têm pago por parecerem demasiado fáceis para a sede decifratória de nossos escoliastas.

A verdade é que, sob o campo visual da poesia de Mário Quintana, se esconde uma teia infinita de raízes, um entrançado de sentidos, duplos sentidos, alusões. elipses, subentendidos, um código vivencial de cuja tradução o poeta é o único a possuir a chave. E sua aparente simplicidade formal, aos olhos de leitores mais atentos, encobre uma extraordinária riqueza de recursos poéticos, de sutilezas verbais, de soluções rímicas e rítmicas; revela-se também o conhecimento, por parte do poeta, das grandes fontes da poesia universal.

Os quintanólogos (são poucos, mas conhecem a matéria a fundo) estudam com particular atenção um quarto livro do poeta, que é o Sapato Florido (1948). É absolutamente essencial à compreensão do quintanismo. Por ser fragmentário e quase todo em prosa, sempre ocupa lugar menor nas antologias. Quintana cultiva um tipo de prosa poética que às vezes se confunde com o poema em prosa ou com o pequeno conto lírico. Não poucas vezes, tudo se resume a uma frase, uma linha: "As folhas enchem de ff as vogais do vento", um fragmento de verso: "... o dia exato alinha os seus cubos de vidro", uma alusão: "Sua vida era um tango argentino", que pode exigir do leitor algumas leituras: "Acabo de ver um negrinho comendo um ovo. Hein, Lin Yutang?". Pode conter uma sugestão retomada ou expandida em verso ou poema de outro livro.

Também Espelho Mágico (1951), conjunto de 111 quadras ou quartetos em que à filosofia da vida e da arte se mesclam notas de humor e cepticismo, é pobremente representada nas antologias de Quintana, inclusive nesta. Várias dessas páginas, sobretudo as mais amargas e as mais pitorescas - inevitável predileção do público! - correm hoje o Brasil anonimamente, o que é uma forma de incorporação à alma e à sabedoria popular.

Esses cinco primeiros livros foram reunidos pela Editora Globo em 1962 no volume Poesias. Este e a Antologia Poética que Rubem Braga organizou em 1966 foram decisivos para que Mário Quintana atingisse uma audiência nacional. Deixou de se o "poeta de Porto Alegre" para se transformar num dos grandes nomes da poesia brasileira, reconhecimento algo tardio mas sempre válido.

A Antologia Poética apresentou mais um importante aspecto: a inclusão dos Novos Poemas. Em 1976, o poeta voltaria a incluir esses poemas na coletânea Apontamentos de História Sobrenatural, dando assim organicidade à sua obra (afinal, antologia é antologia).

Em 1973 havia saído um volume de seu lendário Caderno H (título de sua seção no Correio do Povo), quase totalmente de prosa variada, vale dizer, sem a preocupação intrinsecamente poética do Sapato Florido. Uma dessas páginas, a Carta a um jovem poeta, que reproduzo na antologia, corresponde a um depoimento sobre a formação e a arte poética do escritor.

Mais recentes são os Quintanares (1976), A Vaca e o Hipogrifo (1977) e Esconderijos do Tempo (1980). Em 1981 aparecia a Nova Antologia Poética, seleção dos livros anteriores.

Essa antologia tem uma particularidade. O poeta virtualmente remanejou sua obra, deixando de lado o tradicional critério de livro por livro. O resultado foi surpreendente. Revelou a extraordinária unidade da poesia de Mário Quintana, sua atualidade (no sentido de que um bom poema deve atravessar o tempo sem ficar datado) e a multiplicidade de sua inspiração. Assim, a imagem do poeta sai extremamente enriquecida, pode-se mesmo aventar a sugestão de que a Nova Antologia Poética é um novo livro de Mário Quintana. A sensação de novidade impregna até o leitor antigo, algo como uma peça musical com novo arranjo, novo acompanhamento ou transcrita para instrumentos novos. Alguns poemas como que florescem.

Louvei-me na lição do próprio poeta para não obedecer, também, à ordem cronológica dos poemas, misturando os livros. Meu pensamento inicial era dividir a antologia segundo uma subjetiva ordem temática: o poeta fala da poesia, o poeta fala do amor e da morte, o poeta lembra a infância, o poeta vê a paisagem, o poeta sorri, o poeta canta... Diluí a intenção original para evitar o artificialismo numa alheia, ou pior, o didatismo. Procurei, no entanto, exemplificar o elegíaco, o lírico, o descritivo, a prosa, o chiste, a recordação, a saudade. Tudo em Quintana é tão bom, que o leitor pode lê-lo em qualquer sentido, indiferente à numeração das páginas.

O Brasil, ao contrário do que muitos imaginam, tem produzido pouquíssimos poetas líricos. Talvez o último lírico puro que tivemos foi ainda Casimiro de Abreu. No correr dos séculos, poetas que podiam ter sido excelentes líricos, deixaram-se iludir pelo som cavernoso da tuba épica, escrevendo longos poemas que só nos enchem de tédio. Outros enveredaram pela poesia dramática, pela poesia patriótica, pelos hinos e pelas odes ("Nobre animal, o poeta"), sem que muita coisa restasse de tanto esforço bem intencionado. Mesmo as elegias, que já foram moda, só resistem quando um pouco mais que o talento as legitima.

Apesar da poesia lírica ser a que apresenta maior resistência à passagem do tempo, apurando-se e quintessenciando-se com esta (em mais de um sentido, a grande lírica do Ocidente foi produzida pelos trovadores medievais), os tratados de estética e os manuais de arte poética insistem na velha superstição dos gêneros maiores e menores, como se Homero, Virgílio, Dante e Camões houvessem deixado prole à altura. Os conteúdos da lírica, seu inato individualismo, sua aderência às emoções e seu imediatismo afetivo levam os teóricos à presunção de que o lírico seja um eterno disponível, um improvisador bem dotado, vivendo de inspirações momentâneas; ou, em linguagem mais moderna, um receptivo e não um produtor de mensagens, um recriador e não um criador. A verdade é bem outra: além do talento, do gênio, que marcam os grandes líricos, eles devem possuir rigoroso domínio da forma e ter uma agilidade criadora que lhes permita passar de um estado a outro, de uma inspiração a outra, sem afundar nos lugares-comuns que só fazem engrossar o lixo poético.

Um lirismo quase puro como o de Mário Quintana é raro em nossa poesia moderna. Ele soube manter-se fiel ao seu gênio poético, à sua vocação lírica, quando tantos em torno dele se esgotavam em caminhos equivocados. Autêntico, elaborado e musical, ele tornou-se o que é, não um dos maiores poetas brasileiros, como também um dos grandes líricos contemporâneos - irmão inteiros dessa família que se faz compreender em qualquer tempo e em qualquer Língua.


Texto de Fausto Cunha retirado do prefácio do livro Os Melhores Poemas de Mário Quintana, Global Editora, 3ª Edição, São Paulo, 1987.

domingo, 21 de setembro de 2025

É preciso romper a regra do silêncio

A questão da homossexualidade na nossa sociedade está mergulhada na hipocrisia. Em uma falsidade sofisticada, que faz mal para todo mundo e tanto mata quanto engorda. Ela sobrevive regulamentada por uma lei silenciosa, objetiva e eficaz, cujo texto diz apenas "não seja gay, se for, não fale". A regra condena gays e lésbicas a uma existência velada. Ou a uma não-existência. E, o pior, a gente aceita. Ninguém tem o poder de não ser gay, mas todos respeitam a segunda imposição, vivendo sua homossexualidade em silêncio, como um crime.

Nesses dois anos como editor da Sui Generis, pude ter a medida do alcance dessa norma, que nos obriga a ficar enrustidos às portas do século XXI. Repetida à exaustão, ela vale até nos veículos de comunicação. O Jornal do Brasil deu um bom exemplo. Na capa de 9 de maio, publicou foto da cantora Leila Pinheiro abraçada à atriz Cláudia Jimenez. O texto dizia que comemoravam a premiação de Guinga, vencedor de um Prêmio Sharp. Mas, por que estamparam elas ali tão íntimas se não ganharam prêmio algum? Na verdade, Jimenez vinha dando entrevistas sobre o fim de sua relação amorosa. O jornal completou a história, que nem sequer fora contada às claras, insinuando por meio da foto um reatamento. Essa era a mensagem consciente. Mais grave era a outra informação, silenciosa, que chegou e chega ao inconsciente do público sempre que o tema é tratado desta forma: homossexualismo é tão vergonhoso que não deve ser encarado abertamente.

Uma semana depois, a revista Super TV do JB entrevistou a atriz. O máximo de sinceridade obtido: "Eu não sou, eu estou", disse Jimenez. Mas, meu Deus! Não é o quê? Está o quê? Por que lésbica, gay, homossexual são palavras graves ao ponto de nem serem pronunciadas? O cantor Orlando Morais, marido de Glória Pires, disse-nos em entrevista: "Acho uma cretinice o repórter perguntar ao entrevistado se ele é homossexual." Por quê? Leviano, vil, antiético, covarde é um homossexual - anônimo ou famoso - aceitar a humilhação de viver escondido. Cretino, um sinônimo pouco inteligente, é achar mais seguro ficar calado, quando romper com a regra do silêncio significa tirar a sociedade desse ciclo hipócrita.

Revelar-se gay traduz um ato político no sentido maior. Difere do exibicionismo de expor a vida privada gratuitamente. Assumir-se é pensar no coletivo. Ajudar milhões de pessoas que, contaminadas pela ignorância, são impedidas de viver plenamente. Quando um gay anônimo respeitado se assume, coloca em choque preconceitos cultivados na família, vizinhança e trabalho. Quando uma pessoa famosa se assume, o efeito é multiplicador pelo tamanho da sua audiência. Se todos os gays e lésbicas agissem assim, daríamos fim a esse estranhamento.

Mas raros indivíduos se assumem. Comigo ocorreu o mesmo. Minha família fazia de conta que não sabia, eu fingia que não sabia que ela fingia que não sabia. A troco de quê fingíamos todos? Há quatro anos, quando eu e o meu atual namorado decidimos morar juntos, abri o jogo com meus pais, duas irmãs e um irmão. Alcancei a liberdade ao encerrar o ciclo de mentiras em que me envolvera desde a adolescente. Para eles, parece ter sido um alívio também. Hoje continuamos muito próximos, o que seria impossível se prosseguíssemos naquela hipocrisia.

A anulação do estranhamento funciona num curso simples. O estereótipo de marginal, sujo, frágil, vergonhoso não encaixava com o que minha família conhecia de mim. Dizer que eu era gay os levou a pensar nos próprios preconceitos. Logo concluíram que havia algo de errado com seus tabus, não comigo. Com meu irmão isso ficou mais claro. Professor e campeão de jiu-jítsu, envolvido desde os 11 anos nesse meio que preza a hipermasculinidade, ele é hoje, aos 21, um jovem hétero "desencanado. Não duvido que sua postura seria outra se algo não colocasse em choque o que sempre lhe disseram sobre bichas e viados (termos que, a propósito, nunca mais o ouvi usar para ofender alguém).

Os grandes resultados, entretanto, surgem de atitudes como a de Renato Russo, que influenciou gerações com sua postura assumida. É bem provável que fãs de Russo, que namoravam ao som de suas músicas, reconheçam mais facilmente a homossexualidade como algo moralmente válido do que seus pais, que cresceram tendo gays e lésbicas como uma abstração pecaminosa.


Texto de Nelson Feitosa publicado na Revista IstoÉ número 1447 de 25.06.1997, Editora Três, São Paulo.

sábado, 20 de setembro de 2025

Nem Uma Vírgula

Aquela sexta-feira 18 de agosto de 1967 foi especialmente tensa na redação do Caderno B. Pesava sobre nós uma dupla responsabilidade, inaugurar na manhã seguinte a presença do suplemento aos sábados e apresentar Clarice Lispector como cronista.

Ela disse logo a que vinha. Rompendo a tradição da crônica corrida, ocupou seu espaço na segunda página com vários textos curtos, uma verdadeira amostra daqueles que seriam seus temas centrais ao longo dos próximos seis anos: a relação mãe-filho, a revolta contra a resignação, a busca do eu, os desvãos do pensamento e a transformação do fato cotidiano em pura metafísica.

Desde o princípio Clarice me foi entregue. O editor do Caderno parecia ter medo dela, mas era uma reverência que se confundia com falta de jeito. Achou mais tranquilo me incumbir de recebê-la quando viesse eventualmente ao jornal, de fazer-lhe as comunicações necessárias, de atender o telefone quando ela ligava.

E, sobretudo, de receber seus textos e responsabilizar-me por eles.

Feliz fiquei com esse encargo. Desde a adolescência a admirava, e agora, textos semelhantes àqueles que eu havia lido na sua seção "Children's Corner" na revista Senhor, eram entregues em minhas mãos.

Não creio que Clarice tenha se lembrado que já nos conhecíamos, ou melhor, que eu já a conhecia. Era ainda novata no Jornal do Brasil, no dia em que nosso amigo comum, o jornalista Yllen Kerr, me disse que ia visitá-la, e perguntou se eu queria ir junto. Fomos. A empregada abriu a porta, sentamos na sala em penumbra. Clarice demorou justo o tempo para ser desejada. E veio.

Talvez por eu estar sentada, pareceu-me ainda mais alta do que era. Tinha presença imponente. E estava consciente do impacto provocado por sua estranha beleza. Nada nela era casual, tudo havia sido escolhido com cuidado - nos anos seguintes, jamais a veria sem maquiagem. A conversa aconteceu só entre ela e Yllen, uma conversa cheia de pausas, tateante, como se os dois estivessem andando sobre um fio. Ela fazia pausas que ele não se atrevia a interromper ou que interrompia exatamente quando ela retomava o discurso, então os dois paravam por instantes esperando o próximo passo. Eu, muda, a observava, acompanhando os gestos das mãos, reparando na escolha das pulseiras sem brilho, como se antigas ou rústicas, na roupa escura que se fundia na sala escura, só um abajur aceso.. Não foi uma visita longa nem íntima, mas inesquecível para mim.

E porque Alberto Dines, editor-chefe do Jornal do Brasil, a havia convidado a colaborar no Caderno B, eis que aquela escritora estupenda me pedia para ter cuidado com seus textos. Como se o contrário fosse possível.

No princípio da sua colaboração, veio à redação algumas vezes. Depois, nunca mais. Mandava os textos por uma funcionária, em um envelope grande de papel pardo, sempre igual, subscritado com aquela letra difícil, a única letra permitida pelo incêndio que havia lhe abocanhado a mão direita.

E cada vez, ao estender-me o envelope, a funcionária repetia a recomendação feita por Clarice, que eu tivesse cuidado com seus textos, porque precisava deles e não tinha cópia. Mas não era a voz da funcionária que eu ouvia, era a dela, que tantas vezes ao telefone havia me dito, com aquele seu modo de moer os "erres" na garganta, da sua impossibilidade de usar papel-carbono, porque "o carbono frrranze". Eu repetia o "frrranze" na cabeça e redobrava os cuidados.

Determinamos que uma caixa separada junto à mesa da editoria receberia só a colaboração semanal de Clarice. E levei a funcionária até aquela espécie de ninho, para que transmitisse a Clarice o carinho especial com que seu trabalho era tratado.

Assim mesmo, a funcionária continuou repetindo o mantra, que mais servia para tranquilizar a própria Clarice do que para nos pôr em alerta.

Anos depois, encontrando alguns daqueles textos de que havia sido íntima transferidos para o contexto de um ou outro romance, entendi ainda mais fundamente por que o fato de não ter cópia deixava Clarice tão ameaçada. Qualquer frase podia tornar-se insubstituível no futuro, nenhuma podia se perder.

Como secretária de texto do Caderno B, cabia-me o privilégio de ler Clarice antes que o texto fosse baixado para a oficina. Fazia mínimas correções dos erros de datilografia, não mais do que isso. Nem teria sido necessário. Entretanto, outro dos seus pedidos constantes era que recomendássemos aos revisores para não mexer em suas vírgulas. "Minha pontuação", disse ela mais de uma vez, "é a minha respiração". E durante todos os anos que durou sua presença no Caderno B, Clarice pôde respirar tranquila, nem uma vírgula foi tirada do lugar.


Texto (Prefácio) de Marina Colasanti retirado do livro Todas as Crônicas, de Clarice Lispector, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 2019.