Empregadas domésticas são figuras folclóricas em qualquer lar. Imagina numa casa de bibas. Normalmente conservadoras, elas chegam desconfiadas. "Dois homens e uma cama! Há algo de esquisito nessa casa!" Para logo depois virarem grandes aliadas no espetáculo de vaudeville que, muitas vezes, se transforma o dia-a-dia de dois gays vivendo sob o mesmo teto.
O primeiro contato com essas rainhas dos nossos lares é o mais difícil. Como dizer para aquela senhora, com saia até o joelho, coque no cabelo, a maior pinta de evangélica radical, que ali moram você e seu namorado? Mais fácil contar pra mãe, né? Ela, ao menos, a gente conhece. Mas não adianta esconder, porque um dia os dois acabam pegos juntos no chuveiro. E aí a empregada vai embora revoltada e fazendo fofoca com o porteiro.
Só não passa por essa dificuldade quem faz a linha Act up e diz logo de cara: "Antônia, aqui também mora o Pedro e nós somos bichas. Você entendeu?" Assim mesmo, com esse vocabulário, porque se sofisticar com somos gays, homossexuais, transviados, pederastas... Ela vai perguntar em seguida: "São o quê, patrão?" Então, você terá que explicar de qualquer maneira: "Bichas, Antônia! Nós somos bichas. Entendeu agora?"
A alternativa pra não enfrentar a conversa é ter a sorte de contratar uma empregada enrustida, como a Dulce. Ela trabalha para duas bibas empresários faz 17 anos. Eles são muito gays e completamente assumidos. Mas não há santo que faça Dulce reconhecer isso. Quando tem festa no apartamento da dupla, a empregada enrustida vira atração, pobrezinha:
- Dulce, preciso lhe contar. Marcelo e Sérgio estão juntos todos esses anos. Casados, feito homem e mulher, fazem sexo e tudo. Só você ainda não sabe.
- Não levanta esse falso, seu Henrique.
- Verdade, você não vê? Eles dormem até na mesma cama.
- Imagina, seu Marcelo e seu Sérgio, que não podem ver mulher de saia.
Inexplicavelmente, ela duvida. E ainda testemunha contra a calúnia, mesmo sendo a única mulher a dormir naquela casa.
Outro estilo clássico de empregada de gays é a de fachada. Ela dá a maior força, mas não aprova que os patrões deem muita pinta. Acha necessário disfarçar e sempre dá um jeito de falar de noitadas com mulheres com as visitas, que naturalmente pensam que ela é louca. A Francisca, por exemplo, chega ao requinte de mentir ao telefone, sempre que pega uma ligação dos pais do seu patrão biba. "Deixa eu vê se ele já saiu do quarto. Você conhece o danado do seu filho. Chegou com uma mulher e tá trancado na maior safadeza."
Pouco importa pra elas que você não esconda sua homossexualidade. Generosas como mães zelosas, querem nos proteger a todo custo. Mas, às vezes, atrapalham. Vera Lúcia, por exemplo, sempre deixa de saia justa os paqueras de uma biba dom Juan. Bem-sucedido com homens, na cama dele não faltam belos jovens. Mas Vera Lúcia, muito simpática, num esforço de memória, sempre chama o rapaz pelo nome do visitante de outra noite qualquer. "Olha, seu Eduardo, fiz vitamina de abacate como o senhor gosta." A biba que já alertou mil vezes - "Vera Lúcia quando você vir homem aqui não abra a boca, sua anta!" - quase morre de vergonha, ou de medo de ser tomado por promíscuo, e fala desolado para a lesada: "Fofa, esse é o Marcos." Quem, no entanto, consegue manter empregada despachada de boca calada? "Gente, nem reconheci. E o seu Marcos gosta de quê mesmo no café?"
Para os enrustidos, ter empregada aliada é gênero de primeira necessidade. Um conhecido, filho de família rica e tradicional do Rio Grande do Sul, tem uma ótima para os seus propósitos. Esperta passista do Salgueiro, Cleonice é treinada para sumir com tudo gay do apartamento em 23 minutos. Basta um parente qualquer ligar, mesmo do aeroporto, já no Rio de Janeiro, dizendo que vai pra lá e ela dispara feito um raio. Em tempo cronometrado, escamoteia porta-retratos, livros, revistas, bilhetes, deixa calcinha lavada esquecida no box, até o quadro do Vitor Arruda desaparece da parede. Cleonice é tão pós-graduada nas paranoias do patrão que, em época de visita, troca invariavelmente os nomes das bibas que ligam pra ele. Nem a gente escapou dessa.
- Seu Patrick, dona Nelsa da Revista Playboy lá no telefone.
Foi indisfarçável o espanto dos parentes diante de nome tão improvável. Restou à biba esforçada um sorriso amarelo e a saída de emergência.
- Família excêntrica, a da gatinha.
Editorial de Nelson Feitosa para a hoje extinta revista Sui Generis, ano 3, número 24, SG Press Editora, Rio de Janeiro, 1997.
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