domingo, 27 de julho de 2025

Prefácio à 1ª Edição do livro Além do Carnaval

Conheci James Green nos anos 70. Ambos recém-chegados ao Brasil. James, mais jovem, dando aulas de Inglês em São Paulo; eu, um pouco mais velho, dando aulas de Antropologia em Campinas. Meu amigo e então aluno Edward MacRae estava muito ativo no incipiente movimento gay de São Paulo e o apartamento dele, na Praça da República, virou um ponto de encontro de muita gente, entre os quais James. Naqueles tempos idos do regime militar a "política de identidades", desenvolvida por feministas, negros, índios e gays, tinha não pouca dificuldade em ganhar a simpatia dos amigos da esquerda "marxisante". Este pregavam que a vitória da "luta maior", ou seja, do socialismo, resultaria inexoravelmente no fim da opressão das assim chamadas "minorias" sexuais, étnicas e de gênero. Dessa óptca, os movimentos das "minorias" eram desqualificadas como uma forma de "luta menor". James era um entre vários que tentavam construir pontes entre as duas posições.

Eu não tinha muito jeito para militância. Tinha tentado me envolver com o movimento gay nos Estados Unidos, mas descobri que não me identificava com a aparente necessidade de subordinar tudo a uma única identidade. Uma das minhas identidades, a de antropólogo, vinha consolidar uma dificuldade de me conformar com aquelas identidades fixas e naturalizadas que supostamente governam ou devem governar toda nossa sociabilidade. A antropologia me ajudava a pensar essas identidades em sua gênese social e histórica, ou seja, como construções nascidas, consolidadas, enfraquecidas e mortas ao longo do tempo e nos espaços sociais.

Tentei reconciliar minha simpatia pela luta contra o preconceito em relação à homossexualidade com minhas restrições à militância por meio da pesquisa de campo e da escrita, até mesmo como membro fundador do jornal Lampião de Esquina. Comecei a entender que o mundo que conhecera na Inglaterra, dividido entre homossexuais e heterossexuais, representava apenas uma maneira de organizar as relações sexuais. Aqui no Brasil, ficou cada vez mais claro que para muita gente era demasiado importante saber da "atividade" ou "passividade" sexual dos homens, e que, para alguns, o parceiro sexual ideal deveria ser um "homem mesmo", de preferência com mulher e filhos. Mais  importante do que o sexo dos parceiros era a sua relativa "masculinidade" ou "feminilidade". Assim, "bicha" com "bicha" seria uma forma de lesbianismo. Numa pesquisa sobre os cultos afro-brasileiros, facilitada pela minha amiga e então aluna Anaiza Vergolino e Silva, pude ver esse "sistema" na sua forma mais acabada. Com o tempo, porém, ficou também claro que essa não era a única maneira de organizar as relações sexuais e afetivas entre homens no Brasil. Surgia nas classes médias urbanas uma forma de pensar e praticar relações sexuais e afetivas entre homens que era muito semelhante ao que me era familiar na Inglaterra. Nesse meio, todos os homens que mantinham relações com outros homens, independentemente do que faziam na cama, eram considerados homossexuais. Além disso, havia um certo repúdio à divisão entre "ativos" e "passivos" e uma ênfase crescente na igualdade entre parceiros. Essa posição foi mais ou menos predominante no movimento homossexual que espelhava o movimento feminista com sua crítica aos papéis de gênero convencionais. Eu identificava essa nova forma de pensar as relações entre gente do mesmo  sexo (o mesmo movimento se dava entre as mulheres) como mais um aspecto da formação da ideologia individualista nas classes médias urbanas já identificada por antropólogos amigos meus, principalmente no Museu Nacional, onde lecionava à época. Mas depois de escrever alguns artigos, parti para outras bandas. Entre outras coisas, tinha medo de me tornar um "homossexual profissional". Vi que a antropologia pós-moderna estava rumando para uma espécie de solipsismo. A sua origem calcada no encontro entre uns e outros diferentes estaria dando lugar a um novo ethos que privilegiaria encontros entre semelhantes; mulheres escrevendo sobre mulheres; homossexuais sobre homossexuais; negros sobre negros; subalternos sobre subalternos, e assim por diante. Pode ser que estivesse enganado, mas pressentia que essa tendência sinalizava mais uma etapa na concretização e naturalização das identidades sociais.

Mas, evidentemente, nunca deixei de me interessar por pesquisas sobre sexualidade, e fico cada vez mais feliz com a qualidade das pesquisas sobre sexualidade, em geral, e sobre homossexualidade, em particular, no Brasil. E é por isso que felicito James Green pela sua esplêndida história dos homens que gostam de outros homens no Rio de Janeiro e em São Paulo do fim do século XIX até 1980, agradecendo-lhe a honra de escrever este prefácio.

Depois da sua passagem por São Paulo na década de 1970, James Green voltou para os Estados Unidos e para a academia, cursando o seu doutorado em História na Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Mas James não é apenas um narrador de histórias. Combina o afã do historiador de adentrar o passado por meio de cuidadosa pesquisa de arquivos, literatura de época e entrevistas com os sobreviventes de tempos idos, com clara preocupação "antropológica" em entender a lógica cultural de cada situação histórica e as continuidades e transformações que podem ser detectadas entre cada uma delas. Isso ele faz não procurando verificar uma "identidade homossexual" perene e imutável ao longo do tempo, mas justamente verificando a maneira pela qual os seus "nativos" (e aqui inclui os homens que gostaram de outros homens, e todos os outros, médicos, jornalistas, policiais, religiosos, psiquiatras que opinaram sobre o assunto) conceituaram o sexo entre homens e a natureza dos homens, eles próprios envolvidos nessa atividade. E, para evitar que a sua própria linguagem se imponha ao material pesquisado, mantendo, dessa forma, uma saudável distância entre os conceitos do narrador e os dos seus personagens, James Green lança mão de termos como "homens que procuraram outros homens para aventuras sexuais", "erotismo do mesmo sexo", "homens que gostam de relações sociais e eróticas com outros homens" para descrever o "objeto" do seu estudo. Perfeito! Como o leitor verá, este livro tem a seriedade que se exige de uma tese de doutorado, mas é escrito numa linguagem direta e acessível a todos.

Além do Carnaval vai muito mais adiante que as minhas primeiras intuições sobre a estruturação da homossexualidade no Brasil. Embora verifique a presença de um movimento geral do modelo "ativo-passivo", "bicha-bofe" para "homossexual-homossexual" ao longo do século, James demonstra a existência de uma certa identidade entre homens que gostam de outros homens, independentemente da sua suposta "atividade" ou "passividade", anterior ao surgimento de uma identidade de "entendidos" na década de 1940, e, mais tarde, de "gay" na década de 1970. Na sua descrição da sociedade homoerótica no Rio de Janeiro na virada do século XIX para o século XX, James identifica a presença da figura do fanchono, que teria sido um homem associado ao papel de "ativo" nas relações sexuais, mas com uma distinta preferência para sexo com outros homens, e não faute de mieux. Todos, argumenta James, compartilhavam o mesmo mapa moral da cidade e as regras que subentendiam as relações sexuais e eróticas entre eles. E, embora não sendo o seu material disponível para a descrição e análise desse período relativo aos frescos e fanchonos, eles próprios, mas sim aos agentes de polícia, escritores e chargistas, a maioria deles do lado de fora do mundo das relações homoeróticas, há fortes evidências de que o que se fazia sexualmente nem sempre estava de acordo com as regras estabelecidas no modelo "ativo-passivo". Mas como poderia ser de outra forma? Afinal, são as regras que definem as contravenções e, como James nota, os médicos ficaram um tanto perplexos com os homens que se declararam simultaneamente "ativos" e "passivos". Quebrando a taxonomia estabelecida se tornam, evidentemente, anômalos.

Uma outra virtude deste livro está nas relações que o autor estabelece entre o mundo dos homens que gostam de outros homens e as grandes mudanças sociais, políticas e econômicas ao longo desses oitenta anos. James Green incorpora a história de homens que gostam de outros homens à história geral desse período. Primorosa é a sua análise da relação entre as migrações rural-urbana e Nordeste-Sudeste que acompanharam a industrialização do país, e a importância desta para a trajetória de jovens com gostos homossexuais. Estes puderam encontrar uma vibrante sociabilidade dos grandes centros urbanos, particularmente Rio de Janeiro e São Paulo, mesmo que, escapando do opróbrio familiar, corressem o risco de cair nas garras das autoridades policiais e da medicina legal. Embora a homossexualidade per se nunca tenha sido considerada ilegal no período que James estuda, havia leis que permitiam a repressão policial, entre as quais a de vadiagem e a do atentado ao pudor. Há uma análise extensiva da produção científica dos médicos e legistas sobre o assunto, e o autor demonstra claramente a dívida destes para com os produtores de teorias da Europa enquanto tentavam dar conta do que observavam no Brasil. Não chega a ser surpresa que a maioria dos que caíam nas mãos da polícia e dos médicos eram os sempre mais vulneráveis nesta sociedade: os negros e os pobres em geral. É por essa razão que o historiador tem mais acesso a informações sobre a homossexualidade entre pobres e negros do que as camadas médias e altas. Essa concentração de negros e pobres nos gabinetes de polícia, argumenta James, permite uma associação entre "doença" e "perversão sexual" com os "atavismos" associados aos descendentes de africanos no Brasil, comum na literatura médico-legal.

Outro ponto alto deste livro é a reconstrução de vida de homens que gostaram de outros homens pela análise da sua produção jornalístico-caseira ao longo das décadas de 1960 e 1970. Esse material somado aos depoimentos de quem fez esses jornais, reproduzidos por meio de copiadores, resulta num rico entendimento da sociabilidade da época, bem como das regras implícitas que a governavam. E o que chama a atenção do autor, e do leitor também, é a capacidade que essa gente possui de criar uma solidariedade baseada em preocupações e gostos compartilhados. Essa solidariedade não é, sem dúvida, ausente de tensões internas e brigas de ciúmes, por um lado, nem, por outro, de posturas divergentes perante a homossexualidade. Ainda assim, essa solidariedade revela uma enorme capacidade para a criatividade e produção de prazer, apesar de estar rodeada pela hostilidade de grande parte do mundo. Penso, até, que a malícia, como que ritualizada, poderia ser interpretada contraintuitivamente como mais um ingrediente da solidariedade. Fale mal, mas fale de mim...

A parte final do livro trata do período militar. Apesar de ataques moralizantes sobre a imprensa homossexual e investidas dos policiais contra os travestis de São Paulo, esse período também viu o nascimento de música e teatro populares, que vão colocar em questão os papéis de gênero convencionais, viu o nascimento de uma identidade e de grupos militantes "gay", bem como o surgimento de uma imprensa profissional que vai esmagar a produção caseira anterior, e o crescimento de uma pletora de bares e boates para atender ao "mercado gay". É justamente aqui que vamos encontrar a tensão, à qual me referi no início do prefácio, entre um socialismo convencionalmente marxista e um de viés mais libertário. Há também uma tensão entre o estilo "leve", malicioso e espalhafatoso da sociabilidade homossexual revelada no carnaval e na imprensa caseira e um novo estilo "sério" e reivindicatório que surge junto com o movimento gay.

É evidente que este livro muito interessará aos homens que gostam de outros homens. Mas não só a esses. As relações de James Green estabelece entre as mudanças na vida social dos homens que gostam de outros homens e as transformações na sociedade como um todo fazem que esta obra tenha uma importância muito mais abrangente. É de esperar que agrade também a todos aqueles que se interessam pela história recente do Brasil, afinal, acrescenta-se uma dimensão da história social do Brasil que não pode ser ignorada por ninguém.

A narrativa de Além do Carnaval termina no ano de 1980. Resta ainda um outro livro a ser escrito: a calamidade da Aids, por um lado, e, por outro, a vertiginosa expansão das redes e serviços para homens que gostam de homens, tal como se observa ao longo dos últimos vinte anos do século XX. É de esperar que James Green tenha vontade e tempo de trazer a sua história para os dias de hoje. Creio que vai encontrar muitas das mesmas tensões que notou anteriormente, pois sabemos que o processo social não descarta o passado quando inaugura o aparentemente novo. A Aids veio para ressuscitar as velhas relações entre homossexualidade e doença. Preocupações com "atividade" e "passividade" continuam a permear o campo das relações sexuais entre homens. Há ainda os desentendimentos entre aqueles que imaginam uma identidade "gay" transcultural e transecular e aqueles que preferem pensar na particularidade dos arranjos de cada lugar e cada tempo. E é também impossível não ver no presente a mesma tensão entre o ódio homófobo, que resulta em chantagem e morte, e a persistente produção de um "mundo vibrante" pelos homens que gostam de outros homens. Viva!


Prefácio de Peter Fry à 1ª edição do livro Além do Carnaval - A homossexualidade masculina no Brasil do século XX, de James N. Green, Editora Unesp, São Paulo, 2019, 2ª Edição.

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