É ponto pacífico entre os estudiosos que universalidade e multissignificação são dois traços fundamentalmente caracterizadores de um texto enquanto literário. A primeira está ligada a uma revelação do Homem, do mundo e da relação entre ambos, cujos espaços de plenitude se busca atingir, através de uma forma específica de linguagem. A segunda vincula-se a esta última, que é necessariamente ambígua e possibilitadora de constante atualização e abertura, estritamente relacionada com o caráter conotativo que a singulariza.
A conotação, ensina a Linguística, implica em universo cultural bem mais variável do que o que se traduz na dimensão denotativa do signo, seja em termos de indivíduos ou de grupos ou classes sociais.
Ao assumir perspectiva radical diante da condição humana, a partir de uma linguagem polissêmica, a Literatura vem assegurando sua permanência e sua atemporalidade. Ao dizer de um tempo, diz de todos os tempos, integrando, unitariamente, presente, passado e futuro.
Assim, cada novo leitor, armado de seu repertório cultural, pode ser capaz de identificar, na dimensão escondida no texto literário, emoções coincidentes com as que povoam o âmago do seu universo psicológico. Isso se torna possível quando a representação simbólica, que se caracteriza na Literatura ultrapassa os limites do meramente individual, histórico ou conjuntural e mobiliza determinadas componentes da psique humana que se mantêm imunes ao processo modificador peculiar ao percurso histórico-cultural da humanidade.
Há, portanto, certas características que têm aproximado e continuam aproximando os homens de todos os lugares e de todas as épocas. A obra literária tem sido um dos veículos mais eficazes na configuração dessa sintonia. Tais elementos, associados à concretude de determinados fatos de época e a eles integrados, garantem a natureza do texto de literatura e asseguram o interesse do leitor ou ouvinte. Esse interesse será tão mais permanente, quanto maior for o índice de universalidade atingido pelo texto, como já assinalou Tomachevski e quanto maior for a abertura do texto a novas incursões.
Polissemia e universalidade, portanto, é que permitem que um texto seja atual e permaneça.
É o caso de Machado de Assis.
Sua obra permanece e é atual, na medida em que, em textos multissignificativos, evidencia, a partir de seu testemunho sobre o homem e a realidade de seu tempo, questões relacionadas com o homem de todas as épocas, numa temática que envolve, entre outros destaques o amor, o ciúme, a morte, a afirmação pessoal, o jogo da verdade e da mentira, a cobiça, a vaidade, a relação entre o ser e o parecer, as oscilações entre o Bem e o Mal, a luta entre o absoluto e o relativo.
Se escreve com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, se seus personagens se movem em espaços urbanos do Brasil, notadamente do Rio de Janeiro, essa visão e essa localização em nada diminuem os espaços da reflexão que suas estórias nos lançam diante. Antes, pelo contrário. Sua percuciente visão de mundo aprofunda o nosso mergulho na direção de nos mesmos.
Tomemos, por exemplo, Dom Casmurro. A nível aspectual, a trama é simples como o percurso dos personagens no seu cotidiano. Uma história de amor, uma família de classe média no Rio de Janeiro do século passado, sua ética, seus valores. Ao mesmo nível, o duvidoso adultério, deflagrador do desequilíbrio familiar e convertido em núcleo da ação desenvolvida. Resumida a tal dimensionamento, a obra teria pouco a revelar. Mas quando a lemos como uma revisão existencial do personagem-narrador, buscando "atar as duas pontas da vida e restaurar na velhice a adolescência" como ele mesmo nos informa na narrativa, quando a entendemos, entre outras possibilidades, como um estudo acurado do ciúme e do comportamento psicológico do ser humano, o romance alcança outra representatividade e significação. Nesse contar de vidas, o autor consegue através da simulação do particular, atingir dimensões de universalidade: seus personagens ultrapassam os próprios limites individuais, para se converterem em metonímias do homem do ocidente.
Do percurso existencial também se fazem as Memórias Póstumas de Brás Cubas, como se depreende à primeira leitura, desde os capítulos iniciais da obra. Neste livro, a irônica obsessão do narrador também personagem define bem a linha universalizante assumida e declarada. Sua ideia fixa é nada mais, "nada menos, que a invenção de um medicamento sublime, um emplasto anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade" e, ainda nas suas palavras, uma ideia que "trazia duas fazes, como as medalhas, uma virada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; do outro lado, sede de nomeada. Digamos: amor da glória". Nada mais humano. E carregado de burguesia.
Brás Cubas, sabemos os leitores, não consegue realizar o seu propósito, como não consegue, como tantas pessoas, realizar-se a si mesmo. Daí a revisão que, morto, faz de sua vida. Acentuada pela amarga corrosão. Ele traz a marca do pessimismo trágico. Mas não nos angustia tanto o seu fracasso. Machado amortece a dimensão trágica com a dimensão do humor. A vida continua. Apesar de absurda.
Quincas Borba, mais rico de substância humana do que Brás Cubas, centraliza-se muito mais no fundo irracional que ilustra a precariedade e a incerteza do ser humano do que no jogo das causas que movem os personagens. Rubião é um ingênuo vencido pela fatalidade. Um homem que perde. Perde a fortuna, o amor, a razão, na realidade dilaceradora da existência incompreensível que marca a visão-denúncia de Machado de Assis. Uma tragédia a mais. Amenizada de novo pelo riso acionado pelo tratamento parodístico carnavalizador e satirizador do Positivismo de Augusto Comte e configurado na célebre teoria do humanitismo, explicitado no capítulo IV do romance. Afinal, "ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas" e "bolha não tem opinião".
Relativismo e ambiguidade de comportamento são também as tônicas de Esaú e Jacó, um estudo de caracteres em oposição, apresentado sob a forma de um divertimento lúdico do autor que, apoiado no próprio fazer do livro, integra espaços do mito, do histórico-cultural e do imaginário com predominância deste último. O narrador, a cada momento, direta ou indiretamente, nos coloca diante do método de elaboração que preside a feitura da obra. E frequentemente convoca o leitor para refletir com ele sobre o antagonismo dos gêmeos Pedro e Paulo, a ambiguidade não resolvida de Flora, o equilíbrio sem emoções do Conselheiro Aires, o mesmo do Memorial, a própria técnica de que se está valendo. Gente, gente em crise, debatendo-se nas incertezas das dicotomias, vivida no Conselheiro e por ele contemplada na figura dos demais personagens. Angústias existenciais que se atenuam diante do distanciamento do narrador, que assegura um permanente amortecimento da tensão.
Esse distanciar-se suavizador se torna ainda mais nítido nas reflexões do Memorial de Aires, seu último romance. Nele também se evidencia a visão desenganada, agora envolvida por uma certa aceitação ou resignação menos ácida, pois a vida "é assim mesmo, uma repetição de atos e meneios como nas recepções, comidas, visitas e outros folgares; nos trabalhos é a mesma coisa. Os sucessos, por mais que o acaso os teça e devolva, saem muita vez iguais no tempo e nas circunstâncias; assim a história, assim a história, assim o resto". O que talvez console é a saudade de si mesmo.
Ainda uma vez, o sentimento da existência subjetiva dos seus personagens, na busca de significações universalizantes, em que a tônica é a relatividade.
Essa preocupação também está presente nos contos machadianos. Nestes, o que importa é ainda a atitude e o sentir dos personagens, mais do que as ações, a trama, o espaço. Com atenção especial ao modo de fazer do texto, à técnica de construção, caracterizada em frequentes exercícios de metalinguagem.
E tudo se dá num processo de elaboração gradativa que, como ressalta com lucidez Alfredo Bosi, vai da "obsessão da mentira", dominante nos Contos Fluminenses à configuração da "força de uma necessidade objetiva que prende a alma frouxa e veleitária de cada homem ao corpo uno, sólido e manifesto das formas constituídas que me permito denominar a ditadura da aparência evidenciada nos outros seis livros feitos de narrativas curtas.
Entendo e, nesse entender, associo-me, em princípio, às conclusões de Bosi no estudo citado, que, ao satirizar o comportamento comprometido dos personagens com as instituições, a sua subserviência ao parecer, como garantia do sobreviver, ao caracterizar o reconhecimento à necessidade do bem material como forma do estar bem no mundo, Machado não referenda: denuncia, embora não acuse diretamente. É atitude que mantém diante de outras transgressões ou escoriações que atingem o socialmente estabelecido ou esperado pela moral convencional. Quase escrevo burguesa ou pequeno-burguesa.
Em tais termos, seus contos, distribuídos pelos vários livros, publicados em momentos distintos, tratam do autoritarismo das imposições sociais como determinador do comportamento dos indivíduos. Isto claramente se configura em "Teoria do Medalhão", "O Espelho", "O Segredo do Bonzo", "O Anel de Polícrates"; vincula-se à veleidade em "D. Benedita" e em "Verba Testamentária"; liga-se à sátira aos costumes políticos em "A Sereníssima República"; alia-se à crítica ao cientificismo em "O Alienista", todos integrantes de Papéis Avulsos, aparece no retrato psicológico de "Uma Senhora", de Histórias Sem Data, associa-se ao poder corruptor da riqueza e ao requinte de crueldade em "Conto de Escola" e em "O Enfermeiro", textos de Várias Histórias, de certa maneira presentifica-se, relacionado com o jogo da relatividade entre a verdade e a mentira na "Noite de Almirante", de Histórias Sem Data e com a máscara do homem relativizado pelo Bem e pelo Mal em "A Igreja do Diabo", também de Histórias Sem Data.
O adultério é objeto de "A Senhora do Galvão", ainda de Histórias Sem Data, de "A Cartomante", de Várias Histórias e, em termos mentais, velado, de "A Causa Secreta", do mesmo livro, além de juntar-se ao disfarce do entre sonho e realidade na leve sensualidade de "Uns Braços", de Histórias Sem Data, e na sutileza dos meandros da sedução em "Missa do Galo", de Páginas Recolhidas.
A ânsia de perfeição diante da precária condição humana, presente em "Trio Em Lá Menor", de Várias Histórias e também no citado "D. Benedita", aparece, associada à impotência criadora, em "Cantiga de Esponsais", de Histórias Sem Data e em "Um Homem Célebre", de Várias Histórias.
O interesse pessoal sobreposto ao compromisso moral revela-se em "Evolução", de Relíquias de Casa Velha, onde se alia, amenamente, à vaidade individual; figura em "O Caso da Vara", de Páginas Recolhidas e em "Pai Contra Mãe", de Relíquias de Casa Velha, em ambos vinculado a aspectos da escravidão negra, situada ironicamente como condição paliativa para a torpeza das atitudes configuradas.
A sátira ao poder da ciência e o relativismo dos caminhos da verdade transparecem no "Conto Alexandrino", de Histórias Sem Data.
Nem faltam considerações sobre a arte de escrever em "O Cônego ou Metafísica do Estilo", de Várias Histórias e em "O Dicionário", de Páginas Recolhidas.
Em todos esses contos, como em vários outros do autor, relações humanas a nível de universalização, caracterizadas à luz de aspectos epocais que em nada prejudicam a atualidade das questões apontadas.
Essa atualidade ganha maior relevo porque se associa a uma antecipação da modernidade na ficção brasileira. E aqui retorno opinião que defendi em 1978, em conferência pronunciada na Universidade Federal Fluminense, em curso promovido pela instituição intitulado "Machado de Assis - 70 anos depois" e que, prazeroso, vi coincidir, apoiada em outros argumentos, com posições de José Guilherme Merquior, de João Alexandre Barbosa e de Flávio Loureiro Chaves.
Seus contos e seus romances caracterizam, entre outros traços, o experimentalismo de feição lúdica, a desmitificação da aura, a presença da paródia, a construção gradativa dos personagens através do fluxo de consciência, a valorização dos estados mentais dos personagens mais do que da ação e da trama, o permanente exercício da metalinguagem, a fratura da visão tragicizante através do humor, certa dose de surrealismo, a presença de influências explicitadas, a preferência pela relatividade, a prática da narração como um processo de autorrevisão, o estímulo à participação do leitor na "composição" da obra.
Por tudo que acabo de assinalar e por muitos outros motivos que escapam à natureza deste escrito, a prosa machadiana, no âmbito da arte literária em geral e no espaço da Literatura Brasileira, em particular, continua viva e presente, e presente e viva permanecerá ainda por muito tempo, porque a mentira de sua arte é daquelas que conseguem revelar muito da verdade de nossa complicada condição humana.
Diante da ampla divulgação da obra de Machado de Assis, organizar esta seleção de contos constituiu estimulante desafio.
Excelentes publicações anteriores de natureza semelhante e a machadiana relatividade da adoção de princípios qualitativos de avaliação na área da Literatura levaram-me a adotar um critério em que procurei unir ao juízo crítico individual outros elementos garantidos de alguma objetividade. Parti, então, de alguns referenciais norteadores: a representatividade literária, o prazer da leitura, a consagração do consenso, a natureza do público-alvo, a significação dos textos no contexto machadiano, o dimensionamento didático, a evidência da permanência e da atualidade.
As limitações do livro levaram necessariamente a uma redução do material disponível. Dos sessenta e oito contos escolhidos pelo próprio Machado para figurar nos sete livros que, no gênero, publicou, aqui são apresentados apenas vinte e sete, constantes dos cinco últimos volumes, identificadores da plenitude de sua arte no âmbito da narrativa curta. Não reproduzo, portanto, nenhum texto de Contos Fluminenses, Histórias da Meia-Noite ou de qualquer obra postumamente lançada.
Transcrevi, com a necessária atualização ortográfica, os textos que a Comissão Machado de Assis considerou definitivos, à exceção dos que fazem parte de Papéis Avulsos e Páginas Recolhidas por não estarem publicados até a presente data. No caso destes, vali-me do cotejo de textos das primeiras edições publicadas pela Garnier e da Obra Completa de Machado de Assis, v. 2, lançada pela J. Aguilar.
Adotei, na ordem de apresentação, sequência apoiada na aproximação temática, tal qual explicitei nas considerações sobre permanência e atualidade de Machado de Assis e situei subjetivamente os contos a partir de motivação para a leitura.
À guisa de mobilização de interesse, cada conto é precedido de um pequeno texto, parte dele mesmo. Indiquei também o livro de que cada um faz parte.
Traços biográficos e bibliografia do autor completam o volume.
Agradeço a Edla Van Steen, Diretora da Série, e à Global Editora o convite para assumir a responsabilidade deste trabalho e, a propósito do que possa significar a presente seleção, faço minhas as palavras do bom Joaquim Maria: "Depende de tua impressão, leitor amigo, como dependerá de ti a absolvição da má escolha".
Gratíssimo pela gentileza da atenção e a honra da acolhida.
Domício Proença Filho
Rio de Janeiro, agosto de 1983.
Prefácio retirado do livro Os Melhores Contos de Machado de Assis, seleção de Domício Proença Filho, Global Editora, 6ª Edição, São Paulo, 1991.