quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Reabilitação do Cachorrinho Engraçadinho

                                           Cecília Meireles

Aquele cachorrinho engraçadinho, cuja história tive ocasião de contar outro dia, com suas travessuras e audácias levou a dona da casa a um estado de quase desespero. Disse-me a pobre moça que o bichinho se tornara extravagante: comia botões, bolas de gude, esponjas de banho, rolha de garrafa, carretéis de linha e aparecia-lhe muito faceiro lambendo-se com delícia, com um ar que lhe parecia de provocação. De modo que ela resolvera botar as cartas na mesa, manifestar o seu descontentamento, e, se fosse preciso, lançar um ultimato. Era preciso optar: ou ela, ou o cachorrinho engraçadinho.

Ora, essa decisão solene foi precedida de uma longa exposição acerca do comportamento do gracioso animalzinho, que a todos seduzia com seus encantos, mas já causava tais prejuízos que, tudo bem considerado, sua presença representava uma soma de fatores negativos muito superior à dos positivos.

O cachorrinho engraçadinho estava ao seu lado e ouvia. Foram exibidas provas esmagadoras, almofadas rotas, tapetes manchados, objetos quebrados, o que justificava a atitude da dona da casa, na decisão que pretendia tomar. O cachorrinho engraçadinho levantava os olhos, de vez em quando, para cada peça do corpo de delito, e logo os baixava, com uma preocupação de consciência que os próprios homens já vão perdendo. E todas as vezes que seu nome era citado, ao longo da acusação, suas orelhas sedosas estremeciam e o cachorrinho engraçadinho suspirava - ai de nós! - como se quisesse dar uma demonstração de arrependimento.

Terminada a discussão, cada qual foi tratar dos seus assuntos, e o bichinho retirou-se para um canto, humildemente, como um réu cheio de remorso que reconsidera os seus crimes. Passou o resto do dia muito triste, sem nenhum entusiasmo, cabisbaixo e deprimido. À noite, recolheu-se à sua caminha, solitário e pensativo, sem molestar ninguém.

Tal foi a sua atitude que nunguém pôde deixar de reparar. Se o chamavam, aproximava-se, porém, sem alegria. Levantava os olhos a custo e o menino também entristecido, que já não ousava fazer manivela com o seu rabinho, descobriu que o cachorrinho engraçadinho parecia capaz de chorar.

No dia seguinte, quando todos se dispunham a mandar para longe o cachorrinho engraçadinho, a dona da casa mudou de ideia. Enquanto lhe vestia o casaquinho de lã, raciocinava: eu tenho aturado neste mundo tanta gente detestável! Ingratos, maldizentes, hipócritas! Gente que tem estragado a minha vida de propósito, enquanto este bichinho estraga a minha casa por inocência! O mundo está cheio de pretensiosos, de incompetentes, de arrogantes: e eu os suporto - nas ruas, nos ônibus, nas repartições...

Tanta gente emboscada, preparando-se para assaltar os deprevinidos! Tanta falta de amor! Tanta competição, tanto ódio. E este pobre cachorrinho, cordial e afetuoso, a transbordar alegria, a brincar com todos, a distribuir carinho de maneira tão efusiva! Um bichinho analfabeto, sem escola nenhuma, sem nenhuma disciplina! É isso: falta-lhe apenas a necessária educação!

A moça fez um afago na cabeça do cachorrinho engraçadinho, já tão desiludido que até ficou sem saber se era um afago de verdade, ou uma distração da moça que o vestia. Ela, porém, tornou a afagá-lo nas orelhas sedosas, levantou-lhe o focinho triste, para ver-lhe os olhos. E então ele percebeu que não estava desprezado, que não o odiavam, que o compreendiam e perdoavam, e ficou a princípio estarrecido. depois achegou-se a ela, refugiou-se na sua bondade, tão claramente comovido e agradecido, que a família se deteve em lágrimas, diante daquele quadro singular.

Por isso, o cachorrinho engraçadinho, que tem nome, coleira, casaquinho, e está vacinado com soros legítimos, o cachorrinho de orelhas sedosas e rabinho de manivela,  continuará naquela casa, onde vai ser educado segundo os melhores manuais para vir a ser, na sua condição canina, o que desejaríamos que os homens fossem na sua condição humana.

O Cachorrinho Engraçadinho

                                Cecília Meireles

Há coisa mais triste que um menino sem irmãos nem companheiros, fechado num apartamento? Foi por isso que a família resolveu arranjar um cachorrinho para brincar com o filho único. Os brinquedos, afinal, são máquinas e acabam por enfastiar; o cachorrinho é um brinquedo vivo, quase humano, o melhor amigo do homem etc. E veio o cachorrinho, muito engraçadinho. Todos o cercavam, encantadíssimos. Dizem que os cães sempre se parecem com os seus donos; este parecia-se com os donos, com os amigos dos donos e até com os empregados da casa. Não se pode ser mais amável. Era pretinho, lustroso, com umas malhas cor de mel em certos lugares do focinho e do corpo. Orelhas sedosas e moles, e um rabinho que o menino logo descobriu poder funcionar como manivela. E assim o utilizou.

O cachorrinho também parecia contentíssimo, e pulava para cá e para lá, e às vezes parecia um cavalinho em miniatura. Mas era uma miniatura Pinscher.

Não era só engraçadíssimo; era inteligentíssimo. Se lhe ensinassem, creio que chegaria a atender o telefone. Instalou-se no apartamento como se fosse o seu principal habitante. A vida passou a girar em torno dele. Deram-lhe coleira, casaquinho, osso artificial para brincar, puseram-lhe nome, compraram-lhe biscoitos. Pensando bem, era muito mais feliz que o menino cuja felicidade se cogitava. Talvez ele até entendesse o que diziam a seu respeito, pois a cozinheira reparou que sua inteligência excedia a das criaturas humanas. Via-o fitar um ponto no vazio, acompanhar uma presença invisível, para a qual latia, demonstrando ser um animal dotado de poderes sobrenaturais: um cãozinho vidente. Nessas condições, nem precisava entender a nossa linguagem: podia captar diretamente os pensamentos...

O cachorrinho engraçadinho recebia as visitas com grande efusão. Mordia-as de brincadeira nas pernas e nos braços, às vezes puxava um fio de meio - mas era muito engraçadinho - dava saltos verticais que nem um bailarino, e, como estava na muda dos dentes, babava as pessoas com muito entusiasmo e de vez em quando deixava cair por cima delas um de seus dentinhos, tão brancos e primorosos que pareciam de matéria plástica.

Além de receber as visitas, o cachorrinho engraçadinho sentava-se ao lado delas, acompanhava com os olhos as suas expressões, despedia-se delas com muita gentileza.

Acostumou-se de tal modo à família que não quis mais dormir sozinho, passou a ocupar o melhor lugar das camas, como ocupava o das poltronas. E quis também comer à mesa, escolhendo uma cadeira e colocando as patinhas no lugar que a etiqueta recomenda, e que já bem poucas pessoas conhecem - como se pode observar em qualquer restaurante.

Até certo ponto o cachorrinho engraçadinho foi um divertimento, slavo quando molhava os tapetes ou as almofadas. Mas que era isso, comparado à sua brilhante inteligência, à graça dos seus pulos, à amabilidade das suas comunicações, à malícia com que acompanhava os programas de televisão, às ideias que evidentemente possuía, deixando de manifestá-las apenas por não se expressar ainda em idioma dos homens?

Mas errar não é só humano, é também canino. E o cachorrinho engraçadinho começou a abusar. E atreveu-se, num jantarzinho íntimo, a pular para cima da mesa, a meter o focinho nos pratos, a derrubar os copos com os seus movimentos na verdade muito graciosos, mas inadequados. Diante do que, a família pesarosa e perplexa, vê-se na contingência de passar adiante a quem disponha de jardim ou quintal, o cachorrinho engraçadinho, com pedigree , nome, coleira, vacinado com soros legítimos, de casaquinho de lã e rabinho de manivela, porque, para os homens como para os cães, a liberdade de uns termina onde a dos seus vizinhos começa.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Homens e Mulheres

                                Ana Carolina

E eu gosto de homens e de mulheres
E você, o que prefere?
E você, o que prefere?

Homens que dançam tango
Mulheres que acordam cedo
Homens que guardam as datas
Mulheres que não sentem medo
Homens de toda idade
Mulheres, até as genéricas
Homens que são de verdade
Mulheres de toda a América

E eu gosto de homens e mulheres
E você, o que prefere?
E você, o que prefere?

Homens no sinal verde
Mulheres de batom vermelho
Homens que caem na rede
Mulheres que são meu espelho
Mulheres na guitarra
Homens de corpo e mente sã
Homens vestindo sobretudo
Mulheres, melhor sem sutiã
Homens que enrolam serpentes
Mulheres que vão na frente
Homens de amar tão de repente
Mulheres de amar pra sempre

E eu gosto de homens e de mulheres
E você, o que prefere?
E você, o que prefere?

música do CD Dois Quartos de Ana Carolina

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Sinal de Amor e de Perigo

                      Patinhas/Capenga

À noite a cidade parece que some
Perdida no sono, nos sonhos dos homens
Que vão construindo com fibras de vidro
Com canções de infância, com tempo perdido
Um grande cartaz, um painel de avisos
Um sinal de amor e de perigo

Há tempo em que a terra parece que some
Em meio à alegria e à tristeza dos homens
Que olham pros campos, pros mares, cidades
Pras noites vazias, pra felicidade
Com o mesmo olhar de quem grita no escuro
O melhor foi feito no futuro

Enquanto o amor for pecado e o trabalho um fardo
Pesado, passado, presente mal dado
As flores feridas se curam no orvalho
Mas os homens sedentos não encontram regato
Que banhe seu corpo e lave sua alma
O desejo é forte mas não salva

Enquanto a tristeza esmagar o peito da terra
E a saudade afastar as pessoas partindo pra guerra
Nós vamos perdendo um tempo profundo
A força da vida, o destino do mundo
O segredo que o rio entrega pra serra
Haverá um homem no céu e deuses na terra.

Canção de onde foi tirado o título do disco de 1981 de Diana Pequeno, Sinal de Amor.

Vagando

                   Paulinho Pedra Azul

No céu entre as estrelas vou cantando
E a terra vai formando um coração
Palavras são tão poucas pra dizer
Que estou vagando assim só por amor
Ferido, chorando
Com peito aberto em chamas
Estou morrendo em minhas mágoas
Transbordo a lua e vejo o mar
Não é nem sonho ou fantasia
É a dor constante e a agonia
De um coração cantando o amor

Canção gravada no disco de 1981 da cantora Diana Pequeno intitulado Sinal de Amor

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Ruas de Outono

                        Antônio Villeroy/Ana Carolina

Nas ruas de outono, os meus passos vão ficar
E todo o abandono que eu sentia, vai passar
As folhas pelo chão que um dia o vento vai levar
Meus olhos só verão que tudo poderá mudar.
Eu voltei por entre as flores da estrada
Pra dizer que sem você não há mais nada
Quero ter você bem mais que perto
Com você eu sinto o céu aberto.
Daria pra escrever um livro, se eu fosse contar
Tudo que passei antes de te encontrar
Pego sua mão e peço pra me escutar
Teu olhar me diz que você quer me acompanhar.
Eu voltei por entre as flores da estrada
Pra dizer que sem você não há mais nada...

Música lançada originalmente no CD duplo Dois Quartos. Regravada posteriormente por ela com participação especialíssima da Zizi Possi no Multishow Registro - Ana Carolina 9+ 1 lançado em 2009.
Sensacional.


O meu recado pra você...

Tolerância

                       Antônio Villeroy/Ana Carolina

Como água no deserto
Procurei seu passo incerto
Pra me aproximar
A tempo.
O seu código de guerra
E a certeza que te cerca
Me fazem ficar atento
Não me importa a sua crença
Eu quero a diferença
Que me faz te olhar
De frente.
Pra falar de tolerância
E acabar com essa distância
Entre nós dois.
Deixa eu te levar
Não há razão e nem motivo
Pra explicar
Que eu te completo
E que você vai me bastar
Tô bem certo de que você vai gostar
Você vai gostar.
Como lava no oceano
Um esforço sobre-humano
Pra recomeçar
Do zero
É que o amor é soberano
E supera todo engano
Sem jamais perder
O elo.
E é por isso que te espero
E já sinto a mesma coisa em seu olhar.
Deixa eu te levar
Não há razão e nem motivo
Pra explicar
Que eu te completo
E que você vai me bastar, eu sei
Tô bem certo de que você vai gostar
Você vai gostar

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Só Por Hoje

                        Dado Villa-Lobos/Renato Russo 

Só por hoje eu não quero mais chorar
Só por hoje eu espero conseguir
Aceitar o que passou e o que virá
Só por hoje vou me lembrar que sou feliz.

Hoje eu já sei que sou tudo que preciso ser
Não preciso me desculpar e nem te convencer
O mundo é radical
Não sei onde estou indo
Só sei que não estou perdido
Aprendi a viver um dia de cada vez.

Só por hoje eu não vou me machucar
Só por hoje eu não quero me esquecer
Que há algumas pouco vinte e quatro horas
Quase joguei minha vida inteira fora

Não não não não
Viver é uma dádiva fatal,
No fim das contas ninguém sai vivo daqui mas -
Vamos com calma!

Só por hoje eu não quero mais chorar
Só por hoje eu não vou me destruir
Posso até ficar triste se eu quiser
É só por hoje, ao menos isso eu aprendi.

música que fecha o álbum " O Descobrimento do Brasil ", de 1993 da Legião Urbana.

Dez Preceitos da Serenidade

                                              Papa João XIII


1- Só por hoje tratarei de viver exclusivamente este dia, sem querer resolver o problema de minha vida, todo de uma vez.

2- Só por hoje terei o máximo cuidado com o meu modo de tratar os outros: delicado nas minhas maneiras, não criticarei ninguém, não pretenderei melhorar nem disciplinar ninguém, a não ser a mim.

3- Só por hoje sentir-me-ei feliz com a certeza de ter sido criado para ser feliz, não só no outro mundo, mas também neste.

4- Só por hoje adaptar-me-ei às circunstâncias sem pretender que as circunstâncias se adaptem a todos os meus desejos.

5- Só por hoje dedicarei dez minutos do meu tempo a uma boa leitura, lembrando-me de que assim como é preciso comer para sustentar o meu corpo, assim também a leitura é necessária para alimentar a vida de minha alma.

6- Só por hoje praticarei uma boa ação sem contá-la a ninguém.

7- Só por hoje farei uma coisa de que não gosto, e se for ofendido em meus sentimentos, procurarei que ninguém o saiba.

8- Só por hoje farei uma programação bem completa do meu dia. Talvez não a execute perfeitamente, mas em todo caso vou fazê-la. E guardar-me-ei de duas calamidades: a pressa e a indecisão.

9- Só por hoje ficarei bem firme na fé de que a Divina providência se ocupa de mim como se existisse somente eu no mundo, ainda que as circunstâncias manifestem o contrário.

10- Só por hoje não terei medo de nada. Em particular, não terei medo de crer na bondade.

O que são valores humanos?

Os valores humanos são fundamentos morais e espirituais da consciência humana. Todos os seres humanos podem e devem tomar conhecimento dos valores a eles inerentes. A causa dos conflitos que afligem a humanidade está na negação dos valores como suporte e inspiração para o desenvolvimento integral do potencial individual e consequentemente do potencial social. Não é possível encontrar o propósito da vida sem esses valores que estão registrados em nosso ser profundo, ainda que adormecidos na mente e latentes na consciência. Os valores são a reserva moral e espiritual reconhecidas da condição humana.

A vivência dos valores alicerça o caráter e reflete-se na conduta como uma conquista espiritual da personalidade. Nesse grandioso drama humano, criado por nossos erros e acertos, os valores abrem espaço e trazem inovações essenciais para a sobrevivência da espécie e o cumprimento do papel do ser humano na criação. Vivemos tempos críticos, violentos e desesperados: isso acontece devido ao fato de grande parte da humanidade ter esquecidos seus valores e tê-los considerados até ultrapassados e desinteressantes.

O medo, o desamor e o engano têm qualificado nossos relacionamentos emocionais e operativos com nossos semelhantes e com o mundo. Verificamos que, sem o exercício dos valores intrínsecos ao ser humano, andamos por caminhos de dor, deteriorando a qualidade de vida no planeta. Neste século, fomos mobilizados por ideologias que inverteram a escala dos valores e assim estabeleceram tensões sócioeconômicas, gerando perplexidades, individualismo e desalento. Por outro lado, não podemos deixar de enfocar que, apesar do descompassado desenvolvimento que tivemos, negligenciamos o humano em prol da economia e da tecnologia, desse caldo borbulhante de inquietações e discrepâncias surgiu a mudança dos conceitos de poder e felicidade.

A constatação da ineficácia das coisas materiais, da fama e do poder econômico como portadores de felicidade, trouxe à tona a autoindagação e a necessidade de mudanças. Pouco a pouco percebemos que a felicidade é uma conquista da alma e portanto independente de circunstâncias e satisfação de desejos.

O resgate dos valores humanos é o nosso grande desafio, mas o ser humano tem reservas inesgotáveis de transformação. Temos nos valores morais e espirituais o grande instrumento de aprimoramento e o traço de união dos povos, sem distinção. Os valores promovem a verdadeira prosperidade do homem, da nação e do mundo.

autoria desconhecida