quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

O Cachorrinho Engraçadinho

                                Cecília Meireles

Há coisa mais triste que um menino sem irmãos nem companheiros, fechado num apartamento? Foi por isso que a família resolveu arranjar um cachorrinho para brincar com o filho único. Os brinquedos, afinal, são máquinas e acabam por enfastiar; o cachorrinho é um brinquedo vivo, quase humano, o melhor amigo do homem etc. E veio o cachorrinho, muito engraçadinho. Todos o cercavam, encantadíssimos. Dizem que os cães sempre se parecem com os seus donos; este parecia-se com os donos, com os amigos dos donos e até com os empregados da casa. Não se pode ser mais amável. Era pretinho, lustroso, com umas malhas cor de mel em certos lugares do focinho e do corpo. Orelhas sedosas e moles, e um rabinho que o menino logo descobriu poder funcionar como manivela. E assim o utilizou.

O cachorrinho também parecia contentíssimo, e pulava para cá e para lá, e às vezes parecia um cavalinho em miniatura. Mas era uma miniatura Pinscher.

Não era só engraçadíssimo; era inteligentíssimo. Se lhe ensinassem, creio que chegaria a atender o telefone. Instalou-se no apartamento como se fosse o seu principal habitante. A vida passou a girar em torno dele. Deram-lhe coleira, casaquinho, osso artificial para brincar, puseram-lhe nome, compraram-lhe biscoitos. Pensando bem, era muito mais feliz que o menino cuja felicidade se cogitava. Talvez ele até entendesse o que diziam a seu respeito, pois a cozinheira reparou que sua inteligência excedia a das criaturas humanas. Via-o fitar um ponto no vazio, acompanhar uma presença invisível, para a qual latia, demonstrando ser um animal dotado de poderes sobrenaturais: um cãozinho vidente. Nessas condições, nem precisava entender a nossa linguagem: podia captar diretamente os pensamentos...

O cachorrinho engraçadinho recebia as visitas com grande efusão. Mordia-as de brincadeira nas pernas e nos braços, às vezes puxava um fio de meio - mas era muito engraçadinho - dava saltos verticais que nem um bailarino, e, como estava na muda dos dentes, babava as pessoas com muito entusiasmo e de vez em quando deixava cair por cima delas um de seus dentinhos, tão brancos e primorosos que pareciam de matéria plástica.

Além de receber as visitas, o cachorrinho engraçadinho sentava-se ao lado delas, acompanhava com os olhos as suas expressões, despedia-se delas com muita gentileza.

Acostumou-se de tal modo à família que não quis mais dormir sozinho, passou a ocupar o melhor lugar das camas, como ocupava o das poltronas. E quis também comer à mesa, escolhendo uma cadeira e colocando as patinhas no lugar que a etiqueta recomenda, e que já bem poucas pessoas conhecem - como se pode observar em qualquer restaurante.

Até certo ponto o cachorrinho engraçadinho foi um divertimento, slavo quando molhava os tapetes ou as almofadas. Mas que era isso, comparado à sua brilhante inteligência, à graça dos seus pulos, à amabilidade das suas comunicações, à malícia com que acompanhava os programas de televisão, às ideias que evidentemente possuía, deixando de manifestá-las apenas por não se expressar ainda em idioma dos homens?

Mas errar não é só humano, é também canino. E o cachorrinho engraçadinho começou a abusar. E atreveu-se, num jantarzinho íntimo, a pular para cima da mesa, a meter o focinho nos pratos, a derrubar os copos com os seus movimentos na verdade muito graciosos, mas inadequados. Diante do que, a família pesarosa e perplexa, vê-se na contingência de passar adiante a quem disponha de jardim ou quintal, o cachorrinho engraçadinho, com pedigree , nome, coleira, vacinado com soros legítimos, de casaquinho de lã e rabinho de manivela, porque, para os homens como para os cães, a liberdade de uns termina onde a dos seus vizinhos começa.

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