segunda-feira, 11 de junho de 2012

Trecho do Livro do Desassossego (passagem 10)

                               Fernando Pessoa

E assim sou, fútil e sensível, capaz de impulsos violentos e absorventes, maus e bons, nobres e vis, mas nunca de um sentimento que subsista, nunca de uma emoção que continue, e entre para a substância da alma. Tudo em mim é a tendência para ser a seguir outra coisa; uma impaciência da alma consigo mesma, como com uma criança inoportuna; um desassossego sempre crescente e sempre igual. Tudo me interessa e nada me prende. Atendo a tudo sonhando sempre; fixo os mínimos gestos faciais de com quem falo, recolho as entoações milimétricas dos seus dizeres expressos; mas ao ouvi-lo, não o escuto, estou pensando noutra coisa, e o que menos colhi da conversa foi a noção do que nela se disse, da minha parte ou da parte de com quem falei. Assim, muitas vezes, repito a alguém o que já lhe repeti, pergunto-lhe de novo aquilo a que ele já me respondeu; mas posso descrever, em quatro palavras fotográficas, o semblante muscular com que ele disse o que me não lembra, ou a inclinação de ouvir com os olhos com que recebeu a narrativa que me não recordava ter-lhe feito. Sou dois, e ambos têm a distância - irmãos siameses que não estão pegados.

sábado, 2 de junho de 2012

O Ron-Ron do Gatinho

                  Ferreira Gullar


O gato é uma maquininha
que a natureza inventou;
tem pelo, bigode, unhas
e dentro tem um motor.

Mas um motor diferente
desses que tem nos bonecos
porque o motor do gato
não é um motor elétrico.

É um motor afetivo
que bate em seu coração
por isso ele faz ron-ron
para mostrar gratidão.

No passado se dizia
que esse ron-ron tão doce
era causa de alegria
pra quem sofria de tosse.

Tudo bobagem, despeito,
calúnias contra o bichinho:
esse ron-ron em seu peito
não é doença - é carinho.

A Fala do Gato

             Ferreira Gullar


O gato siamês
tem uns vinte miados:
alguns são suaves,
outros exaltados;
há os miados graves
e há os engasgados.

É quase um idioma
que ainda não entendo
mas o gato bem sabe
o que está dizendo.

E até falou comigo
em linguagem de gente.
Disse: " meu amigo ",
assim de repente.

Então eu acordei
feliz e contente!
Era sonho, claro.
Mas, como se sabe,
é no sonho que ocorre
o que se deseja
e no mundo não cabe.

Gato Pensa?

                 Ferreira Gullar


Dizem que gato não pensa
mas é difícil de crer.
Já que ele também não fala
como é que se vai saber?

A verdade é que o Gatinho,
quando mija na almofada,
vai depressa se esconder:
sabe que fez coisa errada.

E se a comida está quente,
ele, antes de comer,
muito calculadamente,
toca com a pata pra ver.

Só quando a temperatura
da comida está normal,
vem ele e come afinal.

E você pode explicar
como é que ele sabia
que ela ia esfriar?

O Gatinho Curioso

                     Ferreira Gullar




Era uma vez era uma vez
um gato siamês.


Por ser muito engraçadinho,
é chamado de Gatinho.


Além de ser carinhoso,
ele é muito curioso.


Nada se pode fazer
que ele não deseje ver.


Se alguém mexe na estante,
está lá no mesmo instante.


Se vão consertar a pia,
está ele lá de vigia.


E o resultado é que quando
viu seu dono consertando


a tomada da parede,
meteu-se, com tanta sede,


a cheirar tudo que - nhoque!
levou um baita choque!


E pensa que ele aprendeu?
Mais fácil aprendia eu!


Mantém-se o mesmo abelhudo
que quer dar conta de tudo.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Meu Mundo E Nada Mais

                     Guilherme Arantes


Quando eu fui ferido
Vi tudo mudar
Das verdades que eu sabia
Só sobraram restos
E eu não me esqueci
Toda aquela paz que eu tinha


Eu que tinha tudo
Hoje estou mudo
Estou mudado à meia-noite
À meia luz sonhando
Daria tudo por um modo de esquecer


Eu queria tanto estar
No escuro do meu quarto
À meia-noite
À meia luz sonhando
Daria tudo por meu mundo
E nada mais


Não estou bem certo
Se ainda vou sorrir
Sem um travo de amargura
Como ser mais livre
Como ser capaz
De enfrentar um novo dia


Eu que tinha tudo
Hoje estou mudo
Estou mudado à meia-noite
À meia luz sonhando
Daria tudo por um modo de esquecer


Eu queria tanto estar
No escuro do meu quarto
À meia-noite
À meia luz sonhando
Daria tudo por meu mundo
E nada mais

Ouvindo Estrelas

             Chico Roque/Paulo Sérgio Valle 


Quando a gente está amando, pode ouvir estrelas
Pode ser poeta, pode andar sonhando
Adormecer na rua
E acordar na lua

Quando a gente é amada
Tudo mais é nada
Não é mais pecado
Certo ou errado
O corpo é só desejo
A boca só quer beijo

Quando estou com você
É pra valer
Muito demais
Quem é que sabe o que faz é a gente
Deixa o coração querer
Deixa tudo acontecer
No mundo não há bem nem mal
É tudo natural
E deixa a gente se atrair
Deixa o corpo desejar
Inútil querer resistir
Quando tem que ser, ninguém segura

De coração pra coração
Quero você
Não dá mais pra esconder

De coração pra coração
Só sei dizer
Te amo

Música do então LP de 1989 de Joanna intitulado Primaveras e Verões. Marcava os dez anos de carreira dela.

Via Láctea

              Olavo Bilac

" Ora (direis) ouvir estrelas! certo
Perdeste o senso! " Eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...

E conversamos toda a noite, enquanto
A via láctea, como um pálido aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: " Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo? "

E eu vos direi: " Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas. "

Trem Fantasma

                   Moacyr Scliar

Afinal se confirmou: era leucemia mesmo, a doença de Matias, e a mãe dele mandou me chamar. Chorando, disse-me que o maior desejo de Matias sempre fora passear de Trem Fantasma; ela queria satisfazê-lo agora, e contava comigo. Matias tinha nove anos. Eu, dez. Cocei a cabeça.

Não se poderia levá-lo ao parque onde funcionava o Trem Fantasma. Teríamos de fazer uma improvisação na própria casa, um antigo palacete nos Moinhos de Vento, de móveis escuros e cortinas de veludo cor de vinho. A mãe de Matias deu-me dinheiro; fui ao parque e andei de Trem Fantasma. Várias vezes. E escrevi tudo num papel, tal como escrevo agora. Fiz também um esquema. De posse destes dados, organizamos o Trem Fantasma.

A sessão teve lugar a três de julho de 1956, às vinte e uma horas. O minuano assobiava entre as árvores, mas a casa estava silenciosa. Acordamos o Matias. Tremia de frio. A mãe o envolveu em cobertores. Com todo cuidado colocamo-lo num carrinho de bebê. Cabia de tão mirrado estava. Levei-o até o vestíbulo da entrada e ali ficamos, sobre o piso de mármore, à espera.

As luzes se apagaram. Era o sinal. Empurrando o carrinho, precipitei-me a toda velocidade pelo longo corredor. A porta do salão se abriu; entrei por ela. Ali estava a mãe de Matias, disfarçada de bruxa (grossa maquilagem vermelha. Olhos pintados, arregalados. Vestes negras. Sobre o ombro uma coruja empalhada. Invocava deuses malignos).

Dei duas voltas pelo salão, perseguido pela mulher. Matias gritava de susto e prazer. Voltei ao corredor.

Outra porta se abriu - a do banheiro, um velho banheiro com vasos de samambaias e torneiras de bronze polido. Suspenso no chuveiro estava o pai de Matias, enforcado, língua de fora, rosto arroxeado. Saindo dali entrei num quarto de dormir onde estava o irmão de Matias, como esqueleto (sobre o tórax magro, costelas pintadas com tintas fosforescentes; nas mãos, uma corrente enferrujada). Já o gabinete nos revelou as duas irmãs de Matias, apunhaladas (facas enterradas nos peitos; rostos lambuzados de sangue de galinha. Uma estertorava).

Assim era o Trem Fantasma, em 1956.

Matias estava exausto. O irmão tirou-o do carrinho e, com todo o cuidado, colocou-o na cama.

Os pais choravam baixinho. A mãe quis me dar dinheiro. Não aceitei. Corri para casa.

Matias morreu algumas semanas depois. Não me lembro de ter andado de Trem Fantasma desde então.

Eco e Narciso

Eco era o nome de uma ninfa muito tagarela, que conversava muito e sem pensar. Não conseguia ouvir em silêncio quando alguém estava falando. Sempre se intrometia e interrompia, nem que fosse para concordar e repetir o que o  outro dizia. Um dia, fez isso com a ciumenta deusa Juno (Hera), quando ela andava pelos bosques furiosa, procurando o marido Júpiter (Zeus), que brincava com as ninfas. A tagarelice de Eco atrasou a poderosa Juno (Hera), que resolveu:

- De agora em diante, sua língua só vai servir para o mínimo possível.

E a partir desse dia, a coitada da Eco só podia mesmo repetir as últimas palavras do que alguém dissesse. Sua voz deixou de expressar suas próprias palavras.

Por isso, algum tempo depois, quando ela viu um rapaz belíssimo e se apaixonou por ele, tratou de ir atrás sem dizer  nada, em silêncio. Esse rapaz se chamava Narciso e dizem que foi o homem mais bonito e deslumbrante que já existiu. Todo mundo se enamorava dele, que nem ligava.

Eco ficou louca por Narciso e o seguiu por toda parte. Bem que tinha vontade de se aproximar e confessar seu amor, mas não tinha mais sua própria fala, não podia enunciar seus pensamentos e sentimentos... Só lhe restava ficar escondida, por perto, esperando que ele dissesse alguma coisa que ela pudesse repetir.

Um dia, o belo Narciso estava passeando no bosque com uns amigos, mas se perdeu do grupo e não conseguiu encontrá-los. Começou a chamar:

- Tem alguém aqui?

Era a chance da ninfa! E ela logo respondeu, ainda escondida:

- Aqui! Aqui!

Espantado, Narciso olhou em volta e não viu ninguém.

Chamou:

- Vem cá!

Ela repetiu:

- Vem cá! Vem cá!

Não vendo ninguém, ele perguntou:

- Por que me evita?

- Por que me evita? - foi a única resposta que ouviu.

O rapaz não desistiu:

- Vamos nos encontrar...

Toda feliz, Eco saiu do meio das árvores e correu para abraçá-lo, repetindo:

- Vamos nos encontrar...

Mas ele fugiu dela, gritando:

- Pare com isso! Prefiro morrer a deixar que você me toque!

A pobre Eco só podia repetir:

- Que você me toque... que você me toque...

E saiu correndo, triste e envergonhada, para se esconder no fundo de uma caverna. Sofreu tanto com essa dor de amor, que foi emagrecendo, definhando, até perder o corpo, desaparecer por completo e ficar reduzida apenas a uma voz, repetindo as palavras dos outros - isso que nós chamamos de eco.

Narciso continuou sua vida, sempre da mesma maneira. Sem ligar para ninguém, nunca se importando com os outros, brincando com o sentimento alheio. Até que alguém, que ele fez sofrer muito, rezou para Nêmesis, a deusa do Destino, e pediu:

- Que ele possa amar alguém tanto como nós o amamos! E que também seja impossível que ele conquiste seu amor!

Nêmesis ouviu essa oração. Achou que era justa e resolveu atender ao pedido.

Havia no fundo do bosque um laguinho de águas cristalinas e tranquilas, onde nunca vinha um animal beber água e não caíam folhas ou galhos secos - um verdadeiro espelho. Era cercado por uma grama verdinha e macia. Um lugar muito fresco e gostosíssimo. Um dia, no meio de uma caçada, Narciso passou por ali. Com sede, resolveu tomar um pouco d'água. Deitado na margem, com a cabeça debruçada sobre o lago, ficou encantado pelo belíssimo reflexo que via. Nunca tinha se visto num espelho e não sabia que era a sua própria imagem. Mas imediatamente se apaixonou, maravilhado por tanta beleza. Ficou ali parado, contemplando aquele rosto mais bonito do que o de qualquer estátua de mármore que jamais vira. Suspirava, extasiado diante daqueles olhos brilhantes como estrelas. Admirava o pescoço elegante, o rosto adorável, os cachos abundantes do cabelo, emoldurando um rosto de proporções perfeitas e feições incomparáveis. Nem mesmo um deus poderia ser tão belo!

Os amigos apareceram para procurá-lo, mas ele não deu atenção. Chamaram-no para ir embora, mas ele ficou. Olhando o reflexo no lago.

Quando sorria, aquela criatura divina lhe sorria ao mesmo tempo. Quando aproximava os lábios da superfície, via que o outro rosto também chegava mais perto, preparando um beijo. Mas, ao se tocarem, o outro sumia e só ficava a água. Mergulhou os braços na água, tentando puxar para si aquele pescoço, trazer aquele corpo para seu abraço. Mas tudo se dissolvia.

Muito tempo Narciso ficou ali, sem comer nem dormir, admirando aquele ser por quem estava tão apaixonado. Chorou - e suas lágrimas caíram sobre a imagem, que chorava com ele, e ficou turva.

- Ai de mim! - gemia ele.

A única resposta que tinha era de Eco, sempre escondida:

- Ai de mim!

Consumindo-se de amor, sem conseguir sair dali, Narciso ficou desesperado, rasgou as vestes, se arranhou todo, puxou os próprios cabelos, Na água, a imagem fazia o mesmo. Mas ele não podia agarrá-la. Nem tinha forças para prestar atenção em mais nada que não fosse aquele rosto refletido no lago.

Desinteressado de tudo, cada vez mais fascinado por si mesmo, foi definhando. Ao perceber que ia morrer, suspirou:

- Adeus!

Fechou os olhos, deixou cair a cabeça sobre a grama. Na água, o rosto sumiu. Só Eco respondeu:

- Adeus!

Mais tarde, os amigos voltaram. Mas já o encontraram morto. Prepararam tudo para o funeral, e, quando vieram pegar o corpo, ele não estava mais lá. Em seu lugar nascera uma flor perfumada e linda, com uma estrela de pétalas brancas em volta de um miolo amarelo. Para sempre chamada de narciso.

do livro Clássicos da Verdade: Mitos e lendas greco-romanos.