sábado, 27 de abril de 2024

Na inútil transparência

Sem que nunca tivesse conhecido o mar, limpava peixes. Todos os dias a abundância das águas parecia depositar-se na sua bancada. Dourados encastoavam os vermelhos cor de rubi, pescadinhas amontoavam-se como pérolas, brilhavam as escamas das cavalas. E ele, qual Netuno empunhando faca, decapitava garoupas, rasgava o ventre rosado dos badejos, fazia em postas a carne sangrenta dos atuns, em filés a magreza dos linguados, e escamava, cortava, aparava, as mãos mergulhando espertas em guelras e vísceras sem que jamais espinhas lhe fizessem vingança.

Assim o longo dos anos, tendo juntado tão lenta e determinadamente o dinheiro que lhe permitiria realizar seu único desejo, o dia chegou em que, contando todos os seus guardados, ele soube que veria o mar.

Viajou, viajou. E mais longa pareceu-lhe a viagem quando, tendo finalmente o imenso azul diante de si, percebeu que desde menino caminhava para ele.

Ungido, atravessou a areia, subiu pela grande língua de pedra que avançava água adentro. E chegando na ponta mais alta, rodeada pelas ondas, sentou-se. Agora, afinal, veria a dança dos peixes entre os fluxos, o aquático mover-se de robalos e pampos e arraias e polvos e lagostas e sargos.

Mas a transparência azul não entregava presenças. Só a superfície parecia mover-se, coroada de espumas junto à pedra. Paciente, o homem esperou, vendo a luz percorrer o seu trajeto, embora nenhum luzir de escama ou ondear de corpo iluminasse aquela água.

Por fim, já escuro, fez-se de pé. Como nunca antes, pesava-lhe o coração. Vira o mar, é verdade. Mas sem peixes a habitá-lo, nem parecia-lhe o mar. Tão grande a ausência, como se em noite escura e límpida, levantando os olhos, visse o céu todo negro, igual, sem uma estrela.


Texto de Marina Colasanti retirado do livro Contos de Amor Rasgados, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1986.

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