quinta-feira, 25 de junho de 2020

Natal na Barca

Não quero nem devo lembrar aqui por que me encontrava naquela barca. Só sei que em redor tudo era silêncio e treva. E me sentia bem naquela solidão. Na embarcação desconfortável, tosca, apenas quatro passageiros. Uma lanterna nos iluminava com sua luz vacilante: um velho, uma mulher com uma criança e eu.

O velho, um bêbado esfarrapado, deitara-se de comprido no banco, dirigira palavras amenas a um vizinho invisível e agora dormia. A mulher estava sentada entre nós, apertando nos braços a criança enrolada em panos. Era uma mulher jovem e pálida. O longo manto escuro que lhe cobria a cabeça dava-lhe o aspecto de uma figura antiga.

Pensei em falar-lhe assim que entrei na barca. Mas já devíamos estar quase no fim da viagem e até aquele instante não me ocorrera dizer-lhe qualquer palavra. Nem combinava mesmo com a barca tão despojada, tão sem artifícios, a ociosidade de um diálogo. Estávamos sós. E o melhor ainda era não fazer nada, não dizer nada, apenas olhar o sulco negro que a embarcação ia fazendo no rio.

Debrucei-me na grade de madeira carcomida. Acendi um cigarro. Ali estávamos os quatro, silenciosos como mortos num antigo barco de mortos deslizando na escuridão. Contudo, estávamos vivos. E era Natal.

A caixa de fósforos escapou-me das mãos e quase resvalou para o rio. Agachei-me para apanhá-la. Sentindo então alguns respingos no rosto, inclinei-me mais até mergulhar as pontas dos dedos na água.

- Tão gelada - estranhei, enxugando a mão.

- Mas de manhã é quente.

Voltei-me para a mulher que embalava a criança e me observava com um meio sorriso. Sentei-me no banco ao seu lado.  Tinha belos olhos claros, extraodinariamente brilhantes. Vi que suas roupas puídas tinham muito caráter, revestidas de uma certa dignidade.

- De manhã esse rio é quente - insistiu ela, me encarando.

- Quente?

- Quente e verde, tão verde que a primeira vez que lavei nele uma peça de roupa, pensei que a roupa fosse sair esverdeada. É a primeira vez que vem por estas bandas?

Desviei o olhar para o chão de largas tábuas gastas. E respondi com uma outra pergunta:

- Mas a senhora mora aqui por perto?

- Em Lucena. Já tomei esta barca não sei quantas vezes, mas não esperava que justamente hoje...

A criança agitou-se, choramingando. A mulher apertou-a mais contra o peito. Cobriu-lhe a cabeça com o xale e pôs-se a niná-la com um brando movimento de cadeira de balanço. Suas mãos destacavam-se exaltadas sobre o xale preto, mas o rosto era tranquilo.

- Seu filho?

- É. Está doente, vou ao especialista, o farmacêutico de Lucena achou que eu devia consultar um médico hoje mesmo. Ainda ontem estava bem, mas de repente piorou. Uma febre, só febre... - Levantou a cabeça com energia. O queixo agudo era altivo, mas o olhar tinha a expressão doce. - Só sei que Deus não vai me abandonar.

- É o caçula?

- É o único. O meu primeiro morreu o ano passado. Subiu no muro, estava brincando de mágico quando de repente avisou, vou voar! A queda não foi grande, o muro não era alto, mas caiu de tal jeito... Tinha pouco mais de quatro anos.

Atirei o cigarro na direção do rio, mas o toco bateu na grade e voltou, rolando aceso pelo chão. Alcancei-o com a ponta do sapato e fiquei a esfregá-lo devagar. Era preciso desviar o assunto para aquele filho que estava ali, doente, embora. Mas vivo.

- E esse? Que idade tem?

- Vai completar um ano. - E, noutro tom, inclinando a cabeça para o ombro: - Era um menino tão bonzinho, tão alegre. Tinha verdadeira mania com mágicas. Claro que não saía nada, mas era muito engraçado... Só a última mágica que fez foi perfeita, vou voar! - disse abrindo os braços. E voou.

Levantei-me. Eu queria ficar só naquela noite, sem lembranças, sem piedade. Mas os laços - os tais laços humanos - já ameaçavam me envolver. Conseguira evitá-los até aquele instante. Mas agora não tinha forças para rompê-los.

- Seu marido está à sua espera?

- Meu marido me abandonou.

Sentei-me novamente e tive vontade de rir. Era incrível. Fora uma loucura fazer a primeira pergunta, mas agora não podia mais parar.

- Há muito tempo?

- Faz uns seis meses. Imagine que nós vivíamos tão bem, mas tão bem! Quando ele encontrou por acaso com essa antiga namorada, falou comigo sobre ela, fez até uma brincadeira, a Duca enfeou, de nós dois fui eu que acabei ficando mais bonito... E não falou mais no assunto. Uma manhã ele se levantou como todas as manhã, tomou café, leu o jornal, brincou com o menino e foi trabalhar. Antes de sair ainda me acenou, eu estava na cozinha lavando a louça e ele me acenou através da tela de arame da porta, me lembro até que eu quis abrir a porta, não gosto de ver ninguém falar comigo com aquela tela de arame no meio... Mas eu estava com a mão molhada. Recebi a carta de tardinha, ele mandou uma carta. Fui morar com minha mãe numa casa que alugamos perto da minha escolinha. Sou professora.

Fixei-me nas nuvens tumultuadas que corriam na mesma direção do rio. incrível. Ia contando as sucessivas desgraças com tamanha calma, num tom de quem relata fatos sem ter participado deles realmente. Como se não bastasse a pobreza que espiava pelos remendos da sua roupa, perdera o filhinho, o marido, e ainda via pairar uma sombra sobre o segundo filho que ninava nos braços. E ali estava sem a menor revolta, confiante. Intocável. Apatia? Não, não podiam ser de uma apática aqueles olhos vivíssimos e aquelas mãos enérgicas. Inconsciência? Uma obscura irritação me fez sorrir.

- A senhora é conformada.

- Tenho fé, dona. Deus nunca me abandonou.

- Deus - repeti vagamente.

- A senhora não acredita em Deus?

- Acredito - murmurei. E, ao ouvir o som débil da minha afirmativa, sem saber por que, perturbei-me. Agora entendia. Aí estava o segredo daquela confiança, daquela calma. Era a tal fé que removia montanhas...

Ela mudou a posição da criança, passando-a do ombro direito para o esquerdo. E começou, com voz quente de paixão:

- Foi logo depois da morte do meu menino. Acordei uma noite tão desesperada que saí pela rua afora, enfiei um casaco e saí descalça e chorando feito louca, chamando por ele... Sentei num banco do jardim onde toda tarde ele ia brincar. E fiquei pedindo, pedindo com tamanha força, que ele, que gostava tanto de mágica, fizesse essa mágica de me aparecer só mais uma vez, não precisava ficar, só se mostrasse um instante, ao menos mais uma vez, só mais uma! Quando fiquei sem lágrimas, encostei a cabeça no banco e não sei como dormi. Então sonhei e no sonho Deus me apareceu, quer dizer, senti que ele pegava na minha mão com sua mão de luz. E vi o meu menino brincando com o Menino Jesus no jardim do Paraíso. Assim que ele me viu, parou de brincar e veio rindo ao meu encontro e me beijou tanto, tanto... Era tal sua alegria que acordei rindo também, com o sol batendo em mim.

Fiquei sem saber o que dizer. Esbocei um gesto em seguida, apenas para fazer alguma coisa, levantei a ponta do xale que cobria a cabeça da criança. Deixei cair o xale novamente e voltei o olhar para o chão. O menino estava morto. Entrelacei as mãos para dominar o tremor que me sacudiu. Estava morto. A mãe continuava a niná-lo, apertando-o contra o peito. Mas ele estava morto.

Debrucei-me na grade da barca e respirei penosamente: era como se estivesse mergulhada até o pescoço naquela água. Senti que a mulher se agitou atrás de mim.

- Estamos chegando - anunciou.

Apanhei depressa minha pasta. O importante agora era sair, fugir antes que ela descobrisse, era terrível demais, não queria ver. Diminuindo a marcha, a barca fazia uma larga curva antes de atracar. O bilheteiro apareceu e pôs-se a sacudir o velho que dormia:

- Chegamos! Ei! Chegamos!...

Aproximei-me, evitando encará-la.

- Acho melhor nos despedirmos aqui - disse atropeladamente, estendendo a mão.

Ela pareceu não notar meu gesto. Levantou-se e fez um movimento como se fosse pegar a sacola. Ajudei-a, mas ao invés de apanhar a sacola que lhe estendi, antes mesmo que eu pudesse impedi-lo, afastou o xale que cobria a cabeça do filho.

- Acordou o dorminhoco! E olha aí, deve estar agora sem nenhuma febre.

- Acordou?!

Ela teve um sorriso.

- Veja...

Inclinei-me. A criança abrira os olhos - aqueles olhos que eu vira cerrados tão definitivamente. E bocejava, esfregando a mãozinha na face de novo corada. Fiquei olhando sem conseguir falar.

- Então, bom Natal! - disse ela, enfiando a sacola no braço.

Encarei-a. Sob o manto preto, de pontas cruzadas e atiradas para trás, seu rosto resplandecia. Apertei-lhe a mão vigorosamente. E acompanhei-a com o olhar até que ela desapareceu na noite.

Conduzido pelo bilheteiro, o velho passou por mim reiniciando seu afetuoso diálogo com o vizinho invisível. Saí por último da barca. Duas vezes voltei-me ainda para ver o rio. E pude imaginá-lo como seria de manhã cedo: verde e quente. Verde e quente.

Texto de Lygia Fagundes Telles, do livro Venha Ver O Pôr-do-Sol e Outros Contos, da Editora Ática, publicado em 1988.

Escutatória

Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular.

Escutar é complicado e sutil. Diz o Alberto Caeiro que "não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma". Filosofia é um monte de ideias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. Aí a gente que não é cego abre os olhos. Diante de nós, fora da cabeça, nos campos e matas, estão as árvores e as flores. Ver é colocar dentro da cabeça aquilo que existe fora. O cego não vê porque as janelas dele estão fechadas. O que está fora não consegue entrar. A gente não é cego. As árvores e as flores entram. Mas - coitadinhas delas - entram e caem num mar de ideias. São misturadas nas palavras da filosofia que mora em nós. Perdem a sua simplicidade de existir. Ficam outras coisas. Então, o que vemos não são as árvores e as flores. Para se ver é preciso que a cabeça esteja vazia.

Faz muito tempo, nunca me esqueci. Eu ia de ônibus. Atrás, duas mulheres conversavam. Uma delas contava para a amiga os seus sofrimentos. (Contou-me uma amiga, nordestina, que o jogo que as mulheres do Nordeste gostam de fazer quando conversam umas com as outras é comparar sofrimentos. Quanto maior o sofrimento, mais bonitas são a mulher e a sua vida. Conversar é a arte de produzir-se literariamente como mulher de sofrimentos. Acho que foi lá que a ópera foi inventada. A alma é uma literatura. É nisso que se baseia a psicanálise...) Voltando ao ônibus. Falavam de sofrimentos. Uma delas contava do marido hospitalizado, dos médicos, dos exames complicados, das injeções na veia - a enfermeira nunca acertava -, dos vômitos e das urinas. Era um relato comovente de dor. Até que o relato chegou ao fim, esperando, evidentemente, o aplauso, a admiração, uma palavra de acolhimento na alma da outra que, supostamente, ouvia. Mas o que a sofredora ouviu foi o seguinte: "Mas isso não é nada..." A segunda iniciou, então, uma história de sofrimentos incomparavelmente mais terríveis e dignos de uma ópera que os sofrimentos da primeira.

Parafraseio o Alberto Caeiro: "Não é bastante ter ouvidos para se ouvir o que é dito. É preciso também que haja silêncio dentro da alma." Daí a dificuldade: a gente não aguenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer. Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor. No fundo somos todos iguais às duas mulheres do ônibus. Certo estava Lichtenberg - citado por Murilo Mendes: "Há quem não ouça até que lhe cortem as orelhas." Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil da nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos...

Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos, estimulado pela revolução de 64. Pastor protestante (não "evangélico"), foi trabalhar num programa educacional da Igreja Presbiteriana USA, voltado para as minorias. Contou-me de sua experiência com os índios. As reuniões são estranhas. Reunidos os participantes, ninguém fala. Há um longo, longo silêncio. (Os pianistas, antes de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em silêncio, como se estivessem orando. Não rezando. Reza é falatório para não ouvir. Orando. Abrindo vazios de silêncio. Expulsando todas as ideias estranhas. Também para se tocar piano é preciso não ter filosofia nenhuma). Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial. Aí, de repente, alguém fala. Curto. Todos ouvem. Terminada a fala, novo silêncio. Falar logo em seguida seria um grande desrespeito. Pois o outro falou os seus pensamentos, pensamentos que julgava essenciais. Sendo dele, os pensamentos não são meus. São-me estranhos. Comida que é preciso digerir. Digerir leva tempo. É preciso tempo para entender o que o outro falou. Se falo logo a seguir são duas as possibilidades. Primeira: "Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que você falou. Enquanto você falava eu pensava nas coisas que eu iria falar quando você terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não tivesse falado". Segunda: "Ouvi o que você falou. Mas isso que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo. É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou." Em ambos os casos estou chamando o outro de tolo. O que é pior que uma bofetada. O longo silêncio quer dizer: "Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou". E assim vai a reunião.

Há grupos religiosos cuja liturgia consiste de silêncio. Faz alguns anos passei uma semana num mosteiro na Suíça, Grand Champs. Eu e algumas pessoas ali estávamos para, juntos, escrever um livro. Era uma antiga fazenda. Velhas construções, não me esqueço da água no chafariz onde as pombas vinham beber. Havia uma disciplina de silêncio, não total, mas de uma fala mínima. O que me deu enorme prazer às refeições. Não tinha a obrigação de manter uma conversa com meus vizinhos de mesa. Podia comer pensando na comida. Também para comer é preciso não ter filosofia. Não ter obrigação de falar é uma felicidade. Mas logo fui informado de que parte da disciplina do mosteiro era participar da liturgia três vezes por dia: ás 7 da manhã, ao meio-dia e às 6 da tarde. Estremeci de medo. Mas obedeci. O lugar sagrado era um velho celeiro, todo de madeira, teto muito alto. Escuro. Haviam aberto buracos na madeira, ali colocando vidros de várias cores. Era uma atmosfera de luz mortiça, iluminado por algumas velas sobre o altar, uma mesa simples com um ícone oriental de Cristo. Uns poucos bancos arranjados em "U" definiam um amplo espaço vazio, no centro, onde quem quisesse podia se assentar numa almofada, sobre um tapete. Cheguei alguns minutos antes da hora marcada. Era um grande silêncio. Muito frio, nuvens escuras cobriam o céu e corriam, levadas por um vento impetuoso que descia dos Alpes. A força do vento era tanta que o velho celeiro torcia e rangia, como se fosse um navio de madeira num mar agitado. O vento batia nas macieiras nuas do pomar e o barulho era como o de ondas que se quebram. Estranhei. Os suíços são sempre pontuais. A liturgia não começava. E ninguém tomava providências. Todos continuavam do mesmo jeito, sem nada fazer. Ninguém que se levantasse para dizer: "Meus irmãos, vamos cantar o hino..." Cinco minutos, dez, quinze. Só depois de vinte minutos é que eu, estúpido, percebi que tudo já se iniciara vinte minutos antes. As pessoas estavam lá para se alimentar de silêncio. E eu comecei a me alimentar de silêncio também. Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia. Eu comecei a ouvir. Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras. É música, melodia que não havia e que quando ouvida nos faz chorar. A música acontece no silêncio. É preciso que todos os ruídos cessem. No silêncio, abrem-se as portas de um mundo encantado que mora em nós - como no poema de Mallarmé, A Catedral Submersa, que Debusssy musicou. A alma é uma catedral submersa. No fundo do mar - quem faz mergulho sabe - a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos. Me veio agora a ideia de que, talvez, essa seja a essência da experiência religiosa -  quando ficamos mudos, sem fala. Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia, que de tão linda nos faz chorar. Para mim Deus é isto: a beleza que se ouve no silêncio. Daí a importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também. Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto...

Texto de Rubem Alves, do livro O amor que acende a lua, da Editora Papirus, 13ª Edição, 2008.


quarta-feira, 24 de junho de 2020

A Carroça dos Cachorros

Quando de manhã cedo, saio da  minha casa, triste e saudoso da minha mocidade que se foi infecunda, na rua eu vejo o espetáculo mais engraçado desta vida.

Amo os animais e todos eles me enchem do prazer da natureza.

Sozinho, mais ou menos esbodegado, eu, pela manhã, desço a rua e vejo.

O espetáculo mais curioso é o da carroça dos cachorros. Ela me lembra a antiga caleça dos ministros de Estado, no tempo do império, quando eram seguidas por duas praças de cavalaria de polícia.

Era no tempo da minha meninice e eu me lembro disso com as maiores saudades.

- Lá vem a carrocinha! - dizem.

E todos os homens, mulheres e crianças se agitam e  tratam de avisar os outros.

Diz Dona Marocas e Dona Eugênia:

- Vizinha! Lá vem a carrocinha! Prenda o Jupi!

E toda a "avenida" se agita e os cachorrinhos vão presos e escondidos.

Esse espetáculo tão curioso e especial mostra bem de que forma profunda nós homens nos ligamos aos animais.

Nada de útil, na verdade, o cão nos dá; entretanto, nós o amamos e nós o queremos.

Quem os ama mais, não somos nós os homens; mas são as mulheres e as mulheres pobres, depositárias por excelência daquilo que faz a felicidade e infelicidade da humanidade - o Amor.

São elas que defendem os cachorros dos praças de polícia e dos guardas municipais; são elas que amam os cães sem dono, os tristes e desgraçados cães que andam por aí à toa.

Todas as manhãs, quando vejo semelhante espetáculo, eu bendigo a humanidade em nome daquelas pobres mulheres que se apiedam pelos cães.

A lei, com a sua cavalaria e guardas municipais, está no seu direito em persegui-los; elas, porém, estão no seu dever em açoitá-los.

Conto A Carroça de Cachorros, de Lima Barreto, escrito em 20.09.1919, do livro Crônicas Escolhidas.

A Professora de Desenho

Falando a verdade, escola é uma chatice. Pelo menos a minha era uma chatice. Essa história de aprender tabuada, fazer prova, lição de casa... Eu não gostava. Ficava feliz quando aparecia uma gripe. Existe coisa melhor? Eu juntava todos os brinquedos em cima da cama. Traziam revistinhas. Chocolates. Televisão no quarto. Era ótimo.

Disse que a escola era muito chata, mas esqueci de uma coisa: as aulas de desenho. Eram legais.

Toda sexta-feira, depois do recreio, a Dona Marisa (naquele tempo a gente não chamava a professora de "tia", nem usava só o nome dela, sem nada, assim: "Marisa"; tinha de ser "dona Marisa") - enfim, a dona Marisa saía da sala, e entrava a professora de desenho. A dona Andréia.

A dona Marisa era meio gorducha, usava coque no cabelo, e se pintava feito uma louca. Batom. Sombra azul nos olhos. Meio perua. Eu não gostava da dona Marisa.

Mas aí entrava a professora de desenho. A dona Andréia era mocinha. Tinha cabelos castanhos. Lisos e compridos.

A aula de desenho era uma farra. A gente abria os cadernos, que não tinham linhas, só folhas de papel em branco, para a gente fazer o que quisesse. Podia. Dona Andréia deixava.

Ela era linda.

Um dia, ela se atrasou. O tempo ia passando, e ela não chegava. Todo mundo estava louco para ter a aula de desenho.

Por que será que ela estava atrasada?

Nessa idade, a gente sabe muito pouco da vida dos adultos. Talvez tivesse brigado com o namorado. Pode ser que o diretor da escola estivesse dando uma bronca nela. Vai ver que tinha alguém doente na família.

Mas a gente não queria saber de nada. Só queria ter aula de desenho.

Foi quando a dona Andréia apareceu. Todos nós ficamos contentes.

Não foi só ficar contente. Foi uma espécie de alegria total, de gritaria, de explosão.

Ele entrou na classe.

Alguém gritou:

- É a Andréia!!

Não era o jeito certo de falar. Tinha de dizer "dona Andréia". Mas àquela altura ninguém estava ligando.

Todo mundo começou a gritar:

- É a Andréia! É a Andréia!!

O berreiro foi ganhando um ritmo. Como se fosse torcida de futebol.

- An-dré-ia! An-dré-ia!

Parecia um jogador entrando em campo. Ou um cantor de rock.

- An-dré-ia! An-dré-ia!

Ela começou a ficar alegre com a zoeira. Deu um sorriso. O sorriso dela era lindo.

- An-dré-ia!

Depois, ela ficou um pouco assustada. Não estava entendendo a bagunça.

- An-dré-ia!

Foi então que eu vi. Ela começou a chorar.

E saiu da sala.

Na hora, eu não entendi.

Fiquei pensando.

Quem sabe ela se assustou muito. Talvez não imaginasse que a gente gostava tanto dela. E, às vezes, muito amor assusta as pessoas.

Pode ser que ela tivesse ficado brava. Tínhamos de dizer "dona Andréia", e não dissemos. Era meio chocante só dizer "Andréia", como se ela fosse irmã da gente, ou apresentadora de televisão, ou empregada.

Ela também pode ter chorado por outro motivo qualquer. Estava triste com o namorado, ou com alguma doença na família, e toda aquela alegria da gente atrapalhou os sentimentos dela.

A Andréia nunca mais voltou.

As aulas de desenho acabaram.

Comecei a perceber uma coisa.

É que às vezes, quando a gente gosta demais de uma pessoa, não dá certo. Dá uma bobeira na gente. A gente começa a gritar:

- Andréia! Andréia!

E a Andréia fica sem jeito. Não sabe o que fazer. Se assusta. Se enche.

Ouça este conselho.

Se você gosta muito de alguém, tome cuidado antes de fazer escândalo. Não fique gritando "Andréia! Andréia!". Finja que você só está achando a pessoa legal, nada mais. Senão a Andréia sai correndo.

Quando a gente gosta de alguém, tem de fazer como sorvete. Dá uma mordidinha. Mas não enfia o nariz e a boca na massa de morango. Senão, vão achar que a gente é idiota.

As pessoas da minha classe gostavam tanto da Andréia, que ela foi embora. Se a gente fosse mais esperto, fingia que não gostava tanto.

Conto "A Professora de Desenho", do livro A Professora de Desenho e Outros Contos de Marcelo Coelho, Editora Companhia das Letrinhas, de 1995.

Amor de Longo Alcance

Durante anos, separados pelo destino, amaram-se a distância. Sem que um soubesse o paradeiro do outro, procuravam-se através dos continentes, cruzavam pontes e oceanos, vasculhavam vielas, indagavam. Bússola da longa busca, levavam a lembrança de um rosto sempre mutante, em que o desejo, incessantemente, redesenhava os traços apagados pelo tempo.

Já quase nada havia em comum entre aqueles rostos e a realidade, quando, enfim, numa praça se encontraram. Juntos, podiam agora viver a vida com que sempre haviam sonhado.

Porém cedo descobriram que a força do seu passado amor era insuperável. Depois de tantos anos de afastamento, não podiam viver senão separados, apaixonadamente desejando-se. E, entre risos e lágrimas, despediram-se, indo morar em cidades distantes

Conto de Marina Colasanti, do livro "Contos de Amor Rasgados", lançado em 1986 pela Editora Rocco.

Prata de Pirata

Gosto que me enrosco
Eu tô com ele
Tô no barato dele
No meu baralho ele é o rei

Gosto do seu brinco na orelha
Fui eu que dei pra ele
Fui eu que dei

Prata de pirata, lataria
Mas brilha mais
Do que um dia azul de sol

Brilha como a luz
Nos olhos de quem
Ama e se derrama
Eternamente por alguém

Ou eternamente
Por um dia só
Que faz que não termina
Nunca mais
Que faz que não termina
Nunca mais

Sabe, 
Esse amor não tem dó
Toma tudo e bate só
No meu peito assim
Feito um coração
Por ele e nele,
Aquele que me quer
Por ele e nele
Doa a quem doer

Música de Michi Ruzitschka e Clima, gravada por Giana Viscardi, no CD Orum, lançado em 2013.

Poder

Pode ser loucura, pode ser razão
Pode ser sim, pode ser não
Pode ser Maria, pode ser João
Pode ser carro, pode ser avião
Pode ser saúde, pode ser educação
Pode ser porta, pode ser portão
Pode ser amor, pode ser prisão
Pode ser drama, Pode ser pastelão
Pode ser laranja, pode ser limão
Pode ser bíblia, pode ser alcorão
Pode ser inverno, pode ser verão
Pode ser pé, pode ser mão
Pode ser nevoeiro, pode ser poluição
Pode ser samba, pode ser baião
Pode ser São Jorge, pode ser dragão
Pode ser circo, pode ser pão

Só não sei por que
Eu e você
Não pode não

Pode ser purê, pode ser pirão
Pode ser rei, pode ser peão
Pode ser chapeuzinho, pode ser lobão
Pode ser raio, pode ser trovão
Pode ser sujeira, pode ser sabão
Pode ser seda, pode ser algodão
Pode ser bermuda, pode ser calção
Pode ser beijo, pode ser chupão
Pode ser reforma, pode ser revolução
Pode ser creme, pode ser loção
Pode ser conselho, pode ser lição
Pode ser gato, pode ser cão
Pode ser fila, pode ser procissão
Pode ser Eva, pode ser Adão
Pode ser madeira, pode ser carvão
Pode ser antes, pode ser então

Só não sei por que
Eu e você 
Não pode não

Pode ser guitarra, pode ser violão
Pode ser brocha, pode ser garanhão
Pode ser trepada, pode ser masturbação
Pode ser cama, pode ser chão
Pode ser visita, pode ser invasão
Pode ser regra, pode ser exceção
Pode ser tristeza, pode ser preocupação
Pode ser Marte, pode ser Plutão
Pode ser xadrez, pode ser gamão
Pode ser sério, pode ser gozação
Pode ser solteiro, pode ser sultão
Pode ser papo, pode ser discussão
Pode ser progresso, pode ser recessão
Pode ser bolsa, pode ser pregão
Pode ser favela, pode ser mansão
Pode ser fim, pode ser introdução

Só não sei por que
Eu e você
Não pode não

Pode ser cinema, pode ser televisão
Pode ser cara, pode ser coração
Pode ser mentira, pode ser plantão
Pode ser hobby, pode ser profissão
Pode ser país, pode ser nação
Pode ser Santos, pode ser Cubatão
Pode ser palpite, pode ser dedução
Pode ser cópia, pode ser invenção
Pode ser cagaço, pode ser precaução
Pode ser frango, pode ser faisão
Pode ser arroz, pode ser feijão
Pode ser juros, pode ser inflação
Pode ser incompetência, pode ser distração
Pode ser águia, pode ser gavião
Pode ser mocinho, pode ser vilão
Pode ser um, pode ser milhão

Só não sei por que
Eu e você
Não pode não

Pode ser problema, pode ser solução
Pode ser pobre, pode ser barão
Pode ser biriba, pode ser balão
Pode ser bela, pode ser canhão
Pode ser anágua, pode ser combinação
Pode ser bagre, pode ser salmão
Pode ser geladeira, pode ser fogão
Pode ser pai, pode ser patrão
Pode ser acaso, pode ser intenção
Pode ser pico, pode ser injeção
Pode ser hotel, pode ser pensão
Pode ser arte, pode ser borrão
Pode ser doente, pode ser são
Pode ser áries, pode ser escorpião
Pode ser inteiro, pode ser fração
Pode ser tudo, pode ser tão

Só não sei por que
 Eu e você
Não pode não

Música de Arnaldo Antunes e Tadeu Jungle, que faz parte do CD O Silêncio, lançado em 1997.

terça-feira, 23 de junho de 2020

Trecho 152

Pasmo sempre quando acabo qualquer coisa. Pasmo e desolo-me. O meu instinto de perfeição deveria inibir-me de acabar; deveria inibir-me até de dar começo. Mas distraio-me e faço. O que consigo é um produto,  em mi, não de uma aplicação de vontade, mas de uma cedência dela. Começo porque não tenho força para pensar; acabo porque não tenho alma para suspender. Este livro é a minha covardia.
A razão por que tantas vezes interrompo um pensamento com um trecho de paisagem, que de algum modo se integra no esquema, real ou suposto, das minhas impressões, é que essa paisagem é uma porta por onde fujo ao conhecimento da minha impotência criadora. Tenho a necessidade, em meio das conversas comigo que formam as palavras deste livro, de falar de repente com outra pessoa, e dirijo-me à luz que paira, como agora, sobre os telhados das casas, que parecem molhados de tê-la de lado; ao agitar brando das árvores altas na encosta citadina, que parecem perto, numa possibilidade de desabamento mudo; aos cartazes sobrepostos das casas ingremadas, com janelas por letras onde o sol morto doira goma húmida.
Por que escrevo, se não escrevo melhor? Mas que seria de mim se não escrevesse o que consigo escrever, por inferior a mim mesmo que nisso seja? Sou um plebeu da aspiração, porque tento realizar; não ouso o silêncio como quem receia um quarto escuro. Sou como os que prezam a medalha mais que o esforço, e gozam a glória na peliça.
Para mim, escrever é desprezar-me; mas não posso deixar de escrever. Escrever é como a droga que repugno e tomo, o vício que desprezo e em que  vivo. Há venenos necessários, e há-os sutilíssimos, compostos de ingredientes da alma, ervas colhidas nos recantos das ruínas dos sonhos, papoulas negras achadas ao pé das sepulturas dos propósitos, folhas longas de árvores obscenas que agitam os ramos nas margens ouvidas dos rios infernais da alma.
Escrever, sim, é perder-me, mas todos se perdem, porque tudo é perda. Porém eu perco-me sem alegria, não como o rio na foz para que nasceu incógnito, mas como o lago feito na praia pela maré alta, e cuja água sumida nunca mais regressa ao mar.

segunda-feira, 22 de junho de 2020

Carpinteiro do Universo

Carpinteiro do universo eu sou
Carpinteiro do universo eu sou

Não sei porque nasci pra querer ajudar
A querer consertar o que não pode ser
Não sei pois nasci para isso e aquilo
E o enguiço de tanto querer

Carpinteiro do universo inteiro eu sou
Carpinteiro do universo inteiro eu sou

Estou sempre pensando em aparar o cabelo de alguém
E sempre tentando mudar a direção do trem
A noite a luz do meu quarto eu não quero apagar
Pra que você não tropece na escada quando chegar

Carpinteiro do universo inteiro eu sou
Carpinteiro do universo inteiro eu sou

O meu egoísmo é tão egoísta
Que o auge do meu egoísmo é querer ajudar

Carpinteiro do universo inteiro eu sou
Carpinteiro do universo inteiro eu sou
Carpinteiro do universo inteiro eu sou assim
No final, carpinteiro de mim

Música do CD Panela do Diabo, de Raul Seixas e Marcelo Nova, lançado em 1989. Composição dos dois.

Mar É

Não é risco
Nem pavor
Não se dá no medo
Ou na dor
Quem quiser ir além-mar
Vai se deixar levar no mar
Pro seu lugar

É no rumo
Do puxar
E é na corrente de voltar
O que é teu é no além-mar
Não é preciso nem remar
Já vai chegar

Vai ser
Bem, bem melhor que você pensou
Continente é de maré
Essa maré que traz o amor
E molha o pé
(Você nem viu, já chegou)

Teu percurso é no mar
Chegar feito onda e quebrar
Se te parte a pedra em mil
Logo retorna ao anil
Refeito ao mar

Vento sopra e empurra o mar
Sopra e empurra o que é de mim

Música que fecha o CD Vista Pro Mar, do Silva, lançado em 2014. Composição dele e do irmão Lucas Silva.