quarta-feira, 13 de julho de 2022

As Três Respostas

Na Inglaterra daquele tempo, vivia na corte do rei João um importante prelado, o abado de Canterbury, tão vaidoso que um dia chegou a se vangloriar de ser mais rico e de ter um palácio mais belo do que o próprio soberano. Quando essa notícia chegou aos ouvidos do monarca, este ficou muito irritado e mandou convocar o prelado à sua presença.

O abade apressou-se a comparecer perante o rei, sem desconfiar da surpresa que o aguardava. O rei João foi ríspido, dizendo que a gabolice do abade constituía crime de lesa-majestade, punido com a pena de morte e o confisco dos bens do réu. O abade tremeu de medo, jurando ser inocente e implorando o perdão real. E tanto suplicou que o rei João, fingindo compadecer-se dele, disse que o perdoaria, se ele respondesse às três perguntas que lhe faria em seguida.

- A primeira pergunta é a seguinte: assim como me vês, sentado no meu trono de ouro, com a minha coroa na cabeça e o cetro na mão, dize-me quanto eu valho em dinheiro. A segunda pergunta é: quanto tempo eu levaria a cavalo para fazer a volta ao mundo? E a terceira é: o que eu estou pensando aqui e agora?

Assustado, o abade de Canterbury pediu ao rei João que lhe concedesse três dias para pensar nas respostas. O rei, fazendo-se de generoso e certo de que o prelado jamais responderia às suas perguntas, concedeu-lhe esse prazo.

O abade saiu apressado, consultou doutores, sábios e feiticeiros, mas ninguém soube responder àquelas perguntas. Ao entardecer do terceiro dia, de volta ao seu palácio, cruzou com o pastor do seu rebanho de ovelhas. Reparando no aspecto abatido do amo, o pastor lhe perguntou qual a razão de tamanha tristeza. O abade, num desabafo, contou-lhe sua infeliz e perigosa situação. E muito se surpreendeu ao ouvir do pastor uma estranha proposta.

- Acho que sei a solução para o seu caso. Repare que nós dois temos a mesma altura e o mesmo porte. Se confiar em mim, eu me apresentarei amanhã em seu lugar perante o rei, disfarçado em traje de monge. Se Deus quiser, acharei as respostas às três perguntas.

Como não tinha nada a perder, o abade concordou com o plano. No dia seguinte, o pastor, encoberto pelo capuz do hábito do monge, apresentou-se ao rei João à espera das três perguntas, que o monarca lhe fez em seguida, sem reconhecê-lo.

- Então, abade atrevido, responde-me sem hesitar: assim como me vês, sentado no meu trono de ouro, com a minha coroa na cabeça e o cetro na mão, quanto eu valho em dinheiro?

- A resposta, disse o pastor disfarçado, é a seguinte. Nosso Salvador foi vendido por 30 moedas. Portanto, o vosso valor é 29 moedas, pois acho que Vossa Majestade concordará que vale uma moeda menos do que Nosso Senhor.

- Não pensei que eu valesse tão pouco, sorriu o rei. Mas dize-me agora em quanto tempo posso cavalgar em volta do mundo.

- Vossa Majestade, respondeu o falso abade, deve levantar-se ao nascer do dia e seguir cavalgando atrás do Sol até a manhã seguinte, quando o astro nascer outra vez. Assim, sem erro, terá dado a volta ao mundo em 24 horas.

- Nunca pensei, riu o rei, que a volta ao mundo pudesse ser feita tão depressa. Mas agora me diga, abade, o que estou pensando neste exato momento?

- Vossa Majestade, respondeu o esperto pastor, pensa que está falando com o abade de Canterbury. Mas a verdade é que não passo de um pobre pastor de ovelhas.

E, afastando do rosto o capuz de monge, concluiu:

- Estou aqui para pedir perdão para mim e para o meu amo, o abade.

Dessa vez, o rei João riu às gargalhadas e disse:

- Por teres alegrado o meu dia, eu te perdoo pelo atrevimento e mando te dar uma bolsa de dinheiro como recompensa. Vai em paz e dize ao teu patrão que te agradeça porque, graças a ti, eu o perdoo também. Mas ele que se guarde de novas gabolices!


Antiga balada adaptada por Tatiana Belinky. Retirada da Revista Nova Escola, Fundação Victor Civita, Editora Abril, Setembro de 1997.

domingo, 10 de julho de 2022

Ti, o pica-pau avisador

Antigamente, quando o senhor Santo Ildefonso andava por aqui fazendo os trabalhos de Deus na Terra, ficava temeroso de que acontecesse alguma coisa aos seus filhos quando estivesse longe. Por isso, encarregou o pica-pau Ti de ficar tomando conta deles e avisá-los dos perigos.

O passarinho passou a fazer isso muito bem. Por qualquer coisa, voava para junto dos meninos, pousava no ombro de um deles e cantava:

- Ti-ti-ti-ti...

Eles já sabiam. O passarinho não estava só dizendo seu nome. Estava era avisando de algum risco. Então, tomavam cuidado e se defendiam. Por isso, nunca tinham problemas.

Santo Idelfonso ficou muito satisfeito. Para recompensar o passarinho Ti, fez que ele tivesse uma plumagem bonita. E também o ajudou para que nunca lhe faltasse comida. Ensinou-o a bater com o bico na casca das árvores, cavando buraquinhos para poder pegar lagartas e outros insetos que se escondessem lá dentro.

Então, o passarinho passava os dias nas árvores apanhando comida para os filhotes:

- Toque-toque-toque...

Mas, quando era preciso avisar os filhos de Santo Ildefonso, já sabe. O pássaro Ti ia lá, pousava no ombro de um deles e cantava:

- Ti-ti-ti-ti...

E eles se preveniam contra os problemas.

O pica-pau fazia seu trabalho tão bem que o santo resolveu ser generoso e dividir os avisos de perigo com todo mundo. Disse ao passarinho:

- Ti, você agora fica encarregado de voar por perto das estrelas e veredas, avisando aos caminhantes quando houver algum perigo. Assim, eles podem se cuidar.

O pássaro Ti passou a fazer isso, sempre muito bem. Pousava no ombro de quem passava e cantava:

- Ti-ti-ti-ti...

Era só o caminhante tomar cuidado e não acontecia nada de mau.

Mas os filhos do senhor Santo Ildefonso não gostaram nada da novidade. Não queriam dividir com ninguém os avisos do pica-pau. Por isso, um dia, quando Ti chegou, os meninos cuspiram nele.

O passarinho voou até a casa onde estava Santo Ildefonso e contou:

- Senhor santo, veja só o que seus filhos me fizeram. Maltrataram-me e cuspiram em mim. E cuspe de gente deixa passarinho manchado. Olhe só como minhas penas ficaram todas salpicadas de saliva.

Santo Ildefonso olhou e disse:

- Não posso fazer nada para consertar sua plumagem. Mas vou castigar meus filhos. De hoje em diante, eles não vão mais se livrar de nenhum perigo e vão ter muitos problemas. E você pode cuidar só da sua vida e de seus filhotes. Nunca mais precisa avisar ninguém de nada.

Por isso, até hoje, o pica-pau Ti tem as penas bonitas, mas sarapintadas. E sabe muito bem procurar comida debaixo da casca das árvores

Por isso, também, as pessoas correm riscos e têm problemas. Mas, às vezes, o passarinho se lembra de seus tempos de avisador e canta, embora nunca mais tenha pousado no ombro de ninguém. E até hoje, pelas estradas de Chiapas, o caminhante atento e devoto toma cuidado quando ouve o pica-pau Ti no meio de uma viagem, pois sabe que pode ter contratempos pelo caminho.


Conto inspirado numa lenda do povo Tzeital, de Chiapas, no México, adaptado por Ana Maria Machado. Retirado da Revista Nova Escola, Agosto de 1997.Fundação Victor Civita, Editora Abril.

sábado, 9 de julho de 2022

Desejo, Gozo e Bem-Aventurança

    O homem tem necessidades reais e imaginárias.

    As primeiras são pertinentes ao processo da sua evolução.

    As outras são criadas pela sua mente, em artifícios para o gozo, o prazer.

    Não sabendo distingui-las ou não querendo compreendê-las, dá preferência, não raro, às secundárias, deixando de lado as essenciais.

    Concede caráter de primazia àquelas que dizem respeito aos sentidos imediatos, em detrimento daqueloutras que proporcionam as emoções duradouras.

    Os sentidos, quando satisfeitos, passam a anelar por novos prazeres, engendrando mecanismos para alcançar os gozos nos quais sedia os seus objetivos.

    Em consequência, o sofrimento resulta das satisfações não fruídas, bem como da necessidade de reviver aquelas que já foram experimentadas e ora jazem no solo da saudade.

    O desejo do prazer é responsável pelas mais diversas aflições humanas.

    Mesmo quando a dor decorre de enfermidades físicas ou mentais, a sua causa está no desejo da saúde, fenômeno compreensível, mas nem sempre justificável.

    Há uma tendência natural para o bem-estar, a satisfação dos desejos. No entanto, a existência física não pode ser reduzida à conquista de objetivos tão limitados e de tão efêmera duração.

    Para satisfazer os desejos, não cries necessidades falsas, que mais complicam o quadro das tuas aspirações.

    Intenta eliminá-las na sua origem, libertando-te da sua constrição.

    Cada paixão removida será uma menor carga a conduzir.

    O que desfrutes agora retornará com maior exigência, amargurando-te, se não for conseguido e deixando-te mais insatisfeito, se logrado, porque desejarás reter o tempo no prazer, e com isso não é possível, transitarás sempre de um gozo no rumo de uma nova, atraente sensação.

    O prazer é um artifício criado através da excitação da mente.

    Quanto mais coloques esperanças na satisfação de um desejo, mais te sentirás espicaçado por ele, passando a sofrer, enquanto não o desfrutas, ou a arrepender-te depois, quando constates que, afinal, não valeu o grande investimento que lhe concedeste.

    Se almejas, em realidade, a paz - pleno gozo da realização pessoal - libera a mente do desejo, e a consciência da excitação que diz respeito à necessidade falsa que foi criada.

    Não raro o desejo, ao invés de reduzir as necessidades imaginárias, mais as estimula, buscando artifícios e justificações.

    Deste modo, estarás sujeito a maior soma de sofrimento em razão de não poderes ficar adstrito às mesmas, já que, inevitavelmente, despertarás para a realidade e para aquelas que são fundamentais.

    Faze uma avaliação daquilo a que aspiras e, ante o sofrimento que o desejo proporciona, renuncia, mesmo que o experimentes agora, às necessidades de importância secundária, fixando-te no atendimento àquelas que dizem respeito à tua imortalidade e serão eternas como bem-aventuranças na tua vida.


Retirado do livro Momentos de Alegria; Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis; Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 4ª Edição, 2014.

quinta-feira, 7 de julho de 2022

Antes dos Orixás

Trazidos com escravos conhecidos como jejes, o culto aos voduns foi determinante na formação do candomblé da Bahia e do Tambor de Mina do Maranhão.


    Na Bahia do século XIX, o termo mais habitual para designar as divindades africanas era "vudum" ou "santo vudum" e não orixá, o termo equivalente iorubá. Os cultos aos voduns, originários da área gbe na África Ocidental (que corresponde à região dominada pelo antigo reino do Daomé, atual República do Benin), tiveram um papel determinante na formação de mina maranhense.

    Na Bahia e no Maranhão os escravos provenientes da área gbe foram conhecidos como jejes, enquanto os seus vizinhos de fala iorubá, originários de terras localizadas na atual Nigéria, como nagôs. Já na própria África, devido a uma longa história de contato cultural, havia grandes semelhanças entre os cultos aos orixás e os cultos aos voduns. No Brasil, Nina Rodrigues, notando a "íntima fusão" dessas tradições, qualificou as suas práticas religiosas como "jeje-nagô". Embora o termo "fusão" pareça excessivo, convém notar que muitos dos termos hoje usados nos candomblés nagôs, angolas e outros são de origem gbe, ou seja, próprios dos candomblés jejes.

    Por exemplo, os nomes dos noviços no grupo iniciático, "dofono" ou "fomo"; do altar ou santuário, "peji"; do quarto dos iniciados, "huncó" ou "runco"; da maceração de folhas com água, "amasi"; dos tambores, "rum", "rumpi" e "runle"; da vareta percursiva, "aguidavi"; do agogô sagrado, "gã"; e do cargo masculino "ogã", seriam todas palavras jejes. Esses termos referem-se a aspectos da "estrutura profunda" do ritual, como processos de iniciação, hierarquia do grupo, espaço sagrado e instrumentos, e revelam a importância que a tradição do culto aos voduns desempenhou no processo formativo das religiões afro-brasileiras.

    Além dessa significativa influência linguística, foram os cultos aos voduns que provavelmente forneceram no Brasil setecentista as primeiras referências para a organização do grupo religioso numa estrutura eclesial ou conventual. O tipo de devoção desenvolvida a partir da consagração de devotos às divindades através de processos de iniciação e da instalação de altares fixos em espaços sagrados estáveis contrastava com as práticas terapêuticas e oraculares de caráter mais individualizado, próprias da maioria dos calundus coloniais. Aliás, o culto de várias divindades num mesmo templo era prática comum nas tradições vodum africanas, desde pelo menos o século XVIII. Assim, a reunião e a celebração conjuntas de divindades de origens distintas nos terreiros afro-brasileiros, que alguns consideram uma "invenção" americana resultante do encontro multiétnico gerado pela escravidão, encontrariam também nos cultos aos voduns um modelo de organização que teria sido reproduzido por variados grupos africanos com suas divindades particulares.

    Apesar dessa notória influência histórica, na virada do século XIX as tradições jejes perderam visibilidade frente àquelas dos cultos aos orixás dos nagôs. O processo de "nagonização" do Candomblé iniciou-se, sobretudo, no período pós-abolição, coincidindo com o gradativo desaparecimento dos africanos entre a população negra do Brasil.

    No entanto, embora em número reduzido, uma série de congregações religiosas tem perpetuado o culto de certos voduns originários da área gbe. No Maranhão é famosa a Casa das Minas, e na Bahia são conhecidos, entre outros, os terreiros Bogum - de Salvador - e o Seja Hundé - de Cachoeira -, ambos fundados no século XIX. Essas casas ainda em atividade são emblemas contemporâneos de uma presença muito mais significativa no passado. Foi precisamente a partir da especificidade do culto aos voduns praticado nesses terreiros, em contraste com o culto às divindades iorubás e angolas ( orixás e inquices, respectivamente), que no contexto religioso construiu-se o conceito de "nação jeje" para designar um culto ou rito diferenciado.

    A Casa das Minas, em São Luís do Maranhão, também conhecida como Querebentã Zomadonu, foi fundada por volta de 1840 sob a liderança de Maria Jesuína, africana consagrada ao vodum Zomadonu, dono espiritual da Casa. Pesquisas realizadas por Pierre Verger sugerem que a fundadora desse templo teria sido a rainha Nã Agontimé, viúva do rei Angolano (1789-1797) do Daomé, vendida como escrava pelo rei Adandozan (1797-1818), que governou após o falecimento do pai, destronado pelo meio irmão Guezo (1818-1858), filho de Nã Agontimé. Guezo organizou uma embaixada às Américas para procurar a sua mãe. Independentemente de ser Maria Jesuína a mesma Na Agontimé, o que parece claro é que na constituição do terreiro maranhense participaram especialistas religiosos associados à família real daomeana, e isso porque lá se preservam, como em nenhum outro tempo no Brasil e provavelmente nas Américas, fortes traços do culto aos antigos reis e príncipes do Daomé, ancestrais divinizados que no Benin são conhecidos como Nesuhue.

    O vodun Zomadonu, por exemplo, é tido no Benim como filho do rei Acabá e como chefe dos tohosus ou "reis das águas", categoria dos Nesuhue que inclui os espíritos dos filhos reais nascidos com alguma anormalidade ou deformidade física. O panteão da Casa maranhense se organiza em três grupos principais: a família de Dambirá, a família de Quevioçô e a família real ou de Davice que, além de Zomadonu, inclui os voduns dos reis Daco-Donu, Acabá (Koisi-Acabá) e Agajá (Doçu-Agajá). O rei Agonglo (Agongono), o último membro da dinastia daomeana conhecido no Brasil, pertence à família de Savaluno, um dos grupos hóspedes das três famílias principais.

    O paralelismo entre o culto da Casa das Minas e o culto aos ancestrais Nesuhue se evidencia também em vários aspectos da atividade ritual, como a estrutura da iniciação das vodúnsis (devotas do vodum) que, em ambos os casos, dividia-se em dois estágios. O primeiro consistia numa iniciação "simples", na qual a vodúnsi adquiria o grau de vodunsihe. Porém, era no segundo estágio da iniciação, celebrado só a cada vários anos, que a vodúnsi virava vodúnsi gonjaí (ou vodunsi hunjayi nos Nesuhue), o status mais alto só alcançado pelas devotas de mais experiência e idade. Só as vodúnsi gonjaí podiam receber, além do seu vodum, uma segunda entidade espiritual, a chamada tobosi, uma princesa menina, e só a vodunsi gonjaí podia assumir a função de noché ou chefe da casa.

    A última iniciação para "graduar" novas vodunsi gonjaí na Casa das Minas foi celebrada em 1914 com 18 vodúnsis, mas com a morte dessas mulheres e a partir de 1960, as tobosi deixaram de manifestar-se. Essa interrupção crítica da iniciação das gonjaí, atribuída, entre outras razões, à falta de recursos econômicos e a erros rituais, tem comprometido seriamente a continuidade da Casa que, na atualidade, conta com um reduzido número de vodúnsis em idade bastante avançada. Contudo, a Casa das Minas tem exercido uma notável influência nos terreiros de Tambor de Mina e deve ser considerada uma das matrizes dessa instituição religiosa. Por exemplo, as tobosas, moças ou princesas seguem manifestando-se em muitas das casas de fundação mais recente. Como emblema da resistência da cultura negra e em reconhecimento da sua importância histórica e religiosa a Casa das Minas foi tombada pelo IPHAN em 2002.

    Já na Bahia, embora os voduns jejes possam encontrar correspondências com os orixás nagôs, eles constituem uma categoria de entidades espirituais diferenciada. No rito jeje-mahi dos terreiros de Salvador e Cachoeira, além de voduns como Aizan (associado aos ancestrais) ou Aziri Tobosi (associada às águas), há três grandes  panteões: a família de Kaviono ou Heviosô (associada ao trovão e ao fogo), a família de Azonsu ou Sakpata (associada à terra e a varíola) e a família de Dan (associada à cobra e ao arco-íris). As famílias baianas de Heviosô e de Azonsu correspondem grosso modo às famílias maranhenses de Quevioçô e de Dambirá, respectivamente. Porém, no rito jeje da Bahia destacam os voduns associados às cobras - que são, entre outros, Bessem, Dangbe, e Toquem, apenas conhecidos no Maranhão -, enquanto a Casa das Minas, como vimos, distinguem-se pela proeminência da família real de Davice, um panteão desconhecido na Bahia.

    Uma comparação entre o culto jeje-mahi da Bahia e o mina-jeje do Maranhão revelaria que diferenças nos panteões e outros aspectos litúrgicos derivam não apenas da dinâmica sócio-histórica de cada contexto regional, mas também da especificidade étnica dos especialistas religiosos responsáveis pela transferência atlântica dos cultos. Os jejes provinham de várias províncias ou "terras" e pertenciam a etnias distintas - mahi, savalu, fon, mudibi -, cada uma com devoção por grupos de divindades específicos. Por exemplo, o aristocrático culto aos Nesuhue era exclusivo dos fons, enquanto os cultos a voduns como Hevioso, Sakpata ou Dan eram "públicos" e transétnicos. Esses panteões, que já na África funcionavam como cultos de múltiplas divindades, foram agregados ou justapostos no Brasil em cultos cada vez mais plurais e abrangentes.

    Apesar das diferenças regionais, a identidade das divindades enquanto voduns e a língua ritual - inscrita nos cantos, preces, saudações, benções e terminologia religiosa - constituem as principais características da nação ou rito jeje. Outras especificidades aparecem nos ritmos de tambor, nas danças, nos emblemas das divindades, no vestuário, e também nos processos de iniciação. Todavia o fator diferencial jeje aparece nos rituais. A nação jejemahi da Bahia, por exemplo, caracteriza-se pela festa do boita - uma das obrigações mais importantes e concorridas do calendário anual, na qual os voduns desfilam em volta dos atinsa ou árvores sagradas -, e pela cerimônia do zandro que consiste na invocação das divindades para anunciar-lhes a celebração das oferendas animais no dia seguinte. O rito jeje-mahi também se caracteriza por compartilhar com os angolas certos rituais iniciáticos que não são praticados no rito nagô-ketu, como o gra - uma prova realizada no mato - ou a quitanda das iaôs - a venda de frutas realizada pelas noviças no fim da sua iniciação.

    Podemos concluir, portanto, que particularidades dos cultos aos voduns originários da área gbe determinaram em grande parte a singularidade da nação jeje, mas tal identidade étnico-religiosa também foi resultado de um diálogo com outras tradições afro-brasileiras concorrentes. Nesse sentido, embora silenciada pelos estudos afro-brasileiros, a contribuição dos cultos voduns à formação das religiões afro-brasileiras parece ter sido mais influente do que é normalmente reconhecido.


Texto de Luis Nicolau Parés. Professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional, Ano 1, nº 6, Dezembro de 2005.

sábado, 25 de junho de 2022

Resguarda-te na Paz

    Anotas, entristecido, que parece haver uma conspiração infeliz contra os teus propósitos elevados de realização interior.

    Observas, surpreso, que ao estabeleceres propósitos de dignificação moral, surgem impedimentos soezes que, não poucas vezes, te arrojam a situações lamentáveis.

    Concluis, desencantado, que os teus labores idealistas, que te servem de base para mais altos voos, são torpedeados, vilmente, por amigos, empurrando-te para situações conflitantes entre e a que aspiras e o que realizas.

    Constatas, dorido, que a redenção pessoal e as conquistas libertadoras custam alto preço de renúncia e esforço, não bastassem os convites à vulgaridade e às permissões para o delito, que se multiplicam, assustadoramente.

    O homem empenhou-se em conquistar as alturas, e saiu da Terra; em penetrar nas águas abissais dos oceanos, e ora resgata os tesouros que ali dormem sono secular, descobrindo, também, a flora e a fauna multimilenárias, que jaziam desconhecidas; em decifrar o milagre da organização celular, e penetrou nas moléculas que a constituem; em ligar ilhas a continentes, e aterrou as regiões que as separavam; em combater as moléstias, e logrou detectar considerável número de bactérias, vírus e micróbios adversários dos organismos saudáveis; em equilibrar o relacionamento social, e pôde estabelecer leis, nem sempre respeitadas; em comunicar-se com os demais indivíduos em pontos diferentes do globo, e aperfeiçoou o sistema da informática; em transformar a face do Planeta, e ei-lo modificando a ecologia, alternado a paisagem nos desertos que se convertem em pomares, nas florestas que se tornam regiões desérticas, nos rios e mares que morrem lentamente...

    Todavia, são poucos os que se empenham em descobrir-se a si mesmos e lutar em favor da plena realização.

    Esta é a tarefa superior, à qual todos nos devemos dedicar com o maior empenho, a fim de fruir de paz, passo inicial para a aquisição da felicidade.

    Não te permeies com os fluidos deletérios dos enfermos psíquicos, ingratos e perniciosos, que vivem contigo e te buscam perturbar.

    Tem-nos na conta em que se encontram e exercita paciência para com eles.

    Não te aflijas em face das acusações insensatas e despeitadas que outros te fazem, ante a impossibilidade de alcançarem-te e caminharem ao teu lado.

    A tua vitória não pode ser perturbada pelas insignificâncias do caminho.

    Não revides as agressões mentais com que investem contra ti.

    Permanece em calma e amortece o dardo que dispararam, fazendo-o desagregar-se ao atingir ao atingir o algodão da tua sensibilidade.

    Não reivindiques compreensão nunca.

    Quem alcança as alturas vê melhor e tem o dever de desculpar aqueles que ainda estão no vale em sombras.

    A tua paz é de relevância, e para mantê-la investe os teus valores mais altos.

    Paz é conquista interior.

    Paz é iluminação interna.

    Paz é presença divina no indivíduo.

    Resguarda-te, pois, em paz e deixa o tempo transcorrer, porquanto ele conseguirá fazer amanhã o que hoje te parece impossível conseguir.

    Jesus, na montanha das Bem-aventuranças, ou no Getsêmani, ou no Gólgota, manteve a mesma paz, em razão da certeza de saber que Deus estava com Ele e, por consequência, Ele estava com Deus.

    Paz é Deus na mente e no coração.


Retirado do livro Momentos de Meditação; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis; Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 3ª Edição, 2014.

quinta-feira, 23 de junho de 2022

O Arsenal da Macumba

Os objetos de feitiçaria recolhidos pela polícia ao longo do século XX formaram grandes coleções de magia e mostram como a sociedade se relaciona com as suas crenças.


    " Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar de talismãs e cartomancias para despertar sentimentos de ódio ou amor, inculcar cura de moléstias curáveis e ou incuráveis, enfim para fascinar e subjugar a credulidade pública ", como diz o artigo 157 do Código Penal de 1890, eram atos condenados pela lei e pela própria crença da sociedade no Brasil republicano.

    Desde a promulgação desse Código Penal, e ao longo do século XX, inúmeros acusados de serem maus espíritas, macumbeiros ou pais e mães-de-santo foram levados à prisão em quase todos os estados da federação. No Rio de Janeiro não foi diferente. Mas quem eram os praticantes do espiritismo, da magia e de seus sortilégios perseguidos pela polícia em uma cidade cuja crença em espíritos e feitiçarias ocorria entre pessoas de todas as classes? Como eram descobertos? Uma coisa é certa: se há crença na feitiçaria, há o combate aos feiticeiros. Portanto, os processos criminais nos quais muitas pessoas foram acusadas de praticar o crime previsto no artigo 157 pressupõem que a sociedade brasileira acreditava na feitiçaria. O primeiro passo para combater o uso de poderes sobrenaturais era, portanto, a acusação daqueles que supostamente usavam esses poderes para produzir malefícios, que "praticavam a magia e seus sortilégios". Os processos criminais constituíam-se formas institucionais criadas para disciplinar as acusações, julgar se o indivíduo era um feiticeiro ou charlatão e conferir a devida pena ao culpado ou a merecida liberdade ao inocente.

    A denúncia era o primeiro passo desses processos, comuns a partir do fim do século XIX. A acusação de fato é o ponto fundamental para que ele fosse instaurado. O código de 1890 estimulou de maneira decisiva o ato de delatar associações religiosas "quando elas serviam para fins ilícitos". Sem denúncia não havia processo.

    Os processos de maneira geral revelaram a participação de toda a organização jurídica, juízes, advogados, delegados e promotores nos assuntos da magia, criando uma perícia especializada que examinava os fetiches, feitiços e sortilégios e os distinguia da magia benéfica. Essa perícia era feita por policiais que, como oráculos, diziam se o réu era feiticeiro perigoso ou legítimo pai-de-santo.

    Nas colônias inglesas da África era diferente. Uma análise do sistema de condenação e regulação de acusações nos processos de lá revela que o objetivo central da lei de Supressão à Feitiçaria da antiga colônia britânica Rodésia, atual Zimbábue, era combater a própria crença na feitiçaria. Em seu artigo três, a lei da Rodésia - contemporânea ao nosso código penal de 1890 - considerava culpado de ofensa quem apontasse outra pessoa como feiticeiro ou imputasse a ela o uso de meios não-naturais para causar mal ou dano a pessoa, animal ou propriedade. O castigo ia de multa até 100 libras esterlinas, prisão até três anos, ou castigos corporais não superiores a vinte chibatadas.

    Para os povos dominados pelos britânicos, a lei era considerada totalmente estranha uma vez que, para eles, a feitiçaria era vista como tão natural e verdadeira quanto o cair da chuva no verão.

    Se os shona, grupo étnico habitante da então Rodésia, não podiam aceitar essa lei inglesa, nossos magistrados, promotores e testemunhas, sem falar nos próprios acusados, tampouco teriam podido concebê-la. Como os shona, todos os envolvidos em nossos processos criminais acreditavam na magia e consideravam um dever coibir os abusos. Se os colonizadores ingleses visaram suprimir a crença na feitiçaria, a elite brasileira, nela emaranhada, procurava administrá-la satisfatoriamente.

    Os litígios criminais que foram instaurados com base no artigo 157 do Código Penal de 1890 revelaram o fascínio que essa crença exercia em toda a nossa sociedade. Uma das demonstrações desse fascínio, verdadeiro "vício" na acepção de João do Rio (1906), são as inúmeras coleções de "apetrechos" apreendidos pela polícia e que se encontram em museus brasileiros. Especialmente a coleção Perseverança, hoje sob a guarda do Instituto Histórico Geográfico de Alagoas, tem uma característica particular, pois revela a participação de grupos ligados à política local no combate aos "feiticeiros".

    Euclides Malta, que governou com mãos de ferro o estado de Alagoas, foi acusado de pertencer aos xangôs, tradição religiosa africana preservada especialmente nesse estado e em Pernambuco. Os terreiros por ele frequentados foram violentamente atacados em 1912 numa ação popular: o povo, farto das manipulações do governador, invadiu esses terrenos, quebrando os atabaques e até ferindo e matando uma das mães-de-santo.

    No Rio de Janeiro, peritos da polícia eram chamados a opinar sobre os materiais apreendidos e os classificavam como de "magia negra", parte do "arsenal dos bruxos", "objetos próprios para a exploração do falso espiritismo", "objetos de bruxaria", "coisas necessárias à mise-en-scène da macumba e candomblé", "objetos próprios para fazer o mal, ebó (embó)".

    Os artefatos recolhidos pela polícia em "casas de fazer macumba", em terreiros e centros  espíritas como "antros de bruxaria" foram expostos no Museu da Polícia Civil do Rio de Janeiro e constituíam a prova material de que o feitiço existia. O Museu da Polícia contava a história da repressão àqueles que praticavam a bruxaria, usando poderes sobrenaturais para produzir o mal. A bruxaria, na versão do nosso sistema de explicação do infortúnio, era plenamente aceita.

    A coleção classificada como " coleção afro-Brasileira, jogos, entorpecentes, atividades subversivas, falsificações de notas e moedas, mistificação" está registrada sob inscrição nº 1, de 5 de maio de 1938, no Livro Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico do antigo Instituto do Patrimônio Artístico Nacional (IPHAN). As peças antes de seu tombamento em 1938 encontravam-se na Seção de Tóxicos, Entorpecentes e Mistificação da 1ª Delegacia Auxiliar no "Museu de Magia Negra". A delegacia que reprimia e perseguia os feiticeiros era a guardião daquilo que os peritos da polícia definiam como objetos de bruxaria. Essa materialização da bruxaria ainda é vista com desconfiança - não faltaram pessoas para dizer que aquelas coisas eram perigosas, estavam "carregadas", "pesadas" e era arriscado desvendar sua origem.

    Depois de tombados, os objetos passaram a fazer parte, em 1945, do Museu de Criminologia, um museu científico e de arte popular que faz parte do Conselho Internacional de Museus, registrado como Museu Científico de Departamento de Segurança Pública. O museu tem uma coleção de armas, bandeiras nazistas, pertences de presos políticos. A "coleção de magia negra" foi organizada pelo primeiro diretor da casa que, para tanto, utilizou-se de bibliografia sobre o tema das religiões afro-brasileiras sobretudo Artur Ramos, Roger Bastide e Edson Carneiro.

    Em 1979, os objetos da bruxaria no Museu da Polícia estavam dispostos como em um terreiro, com as imagens dos exus separadas das dos outros orixás, os atabaques separados das imagens e os "trabalhos para fechar caminhos" em estante separada dos "trabalhos para abrir caminhos". Afinal, se estivessem dispostos de outra maneira perderiam seu sentido de artefatos de magia maléfica, pois é a ordenação mágica que determina sua função de produzir o mal ou o bem. Naquela altura as pessoas iam ao museu fazer a sua "fezinha" e depositavam moedas e flores ao pé das imagens. Para os visitantes do Museu aquelas imagens e itens rituais como velas, vestimentas e capacetes ganhavam ainda mais poder e força por ter pertencido a poderosos feiticeiros.

    Hoje, a "coleção de magia negra" está fechada à visitação pública. A coleção do Museu da Polícia parece ter sido danificada durante um incêndio, tendo sido colocada na reserva técnica, onde o acesso a ela era proibido. O que significa o desaparecimento da coleção dos olhos de público? Arrisco duas hipóteses. A primeira é que houve nos anos 1970 uma demanda por parte de alguns movimentos políticos para  devolver as peças para seus donos originais. Essa demanda foi dificultada porque aqueles itens expostos no museu eram a prova viva de que a feitiçaria existia e estavam "carregados". Mas quem sabe elas não teriam assim mesmo sido encaminhadas à alguma instituição religiosa? Também é possível especular que o sumiço da coleção do Museu da Polícia tenha algo a ver com a força crescente das religiões evangélicas no Rio de Janeiro, inimigas mortais da feitiçaria, que têm crentes em todas as esferas da sociedade, até na policial. A mais forte hipótese, no entanto, talvez  seja o fato de estarmos vivendo uma mudança no modo de pensar dos brasileiros. Será que o feitiço não está mais no centro da sua maneira de pensar contemporânea como teria estado há muitos anos?


Texto de Yvonne Maggie. Professora titular do Departamento de Antropologia Cultural do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional, Ano 1, nº 6, Dezembro 2005.

domingo, 19 de junho de 2022

Axé Carioca

Misto de conquistador, curandeiro e pai-de-santo, o líder negro Juca Rosa criou um ritual próprio, atraindo uma legião de seguidores no Rio de Janeiro do século XIX.


    José Sebastião da Rosa, mais conhecido como Juca Rosa, foi um dos mais importantes e afamados líderes religiosos negros que o Rio de Janeiro conheceu. Nascido em 1833, filho de mãe africana, trabalhou como alfaiate e cocheiro antes de se tornar o grande Pai Quilombo, como também era chamado. Na década de 1860, vivendo no centro da Corte, na rua Senhor dos Passos, quase esquina com a rua do Núncio, Rosa liderava uma misteriosa seita, que agregava diversos adeptos. Além dos negros, dos trabalhadores escravos, livres e libertos e dos capoeiras, figuravam também, entre seus seguidores, políticos, ricos comerciantes, membros das elites econômicas brancas e letradas. Graças ao prestígio que adquiriu, Rosa estabeleceu relações com pessoas importantes da sociedade e suas cerimônias reuniam membros das mais diferentes origens sociais, que se deslocavam até sua casa em busca de seus preciosos - e caros - conselhos e prodigiosas curas. Por caminhos muito particulares, Juca Rosa tornou-se figura notória na sociedade carioca do período.

    Não se tratava de um mero feiticeiro ou rezador, apenas mais um entre tantos e tão variados praticantes de diferentes religiões e artes de cura que habitavam  a Corte, concorrendo com os médicos científicos na disputa por pacientes. Afinal, no Rio de Janeiro do final do século XIX, assim como em todo o país, as mais diversas artes de cura conviviam lado a lado com a medicina oficial do Império. Embora proibidas por lei e arduamente combatidas por grupos de médicos e por setores da imprensa, as práticas ilegais de medicina estavam presentes com bastante força no cotidiano dos mais distintos setores sociais. Mas Juca Rosa, que concentrava as atividades de líder religioso e curandeiro, era um caso especial: seu nome tornou-se sinônimo de líder religioso afro-brasileiro, ou "feiticeiro negro", como diziam as publicações da época, e associado a práticas supersticiosas de pessoas ignorantes.

    Entretanto, uma denúncia anônima que o acusava de envolvimento sexual com várias mulheres, dirigida ao segundo delegado de polícia da Corte, interrompeu suas atividades, levando-o à prisão. Quando o julgamento de Rosa foi iniciado, em 5 de julho de 1871, ele já estava preso havia quase oito meses, sendo processado pelo crime de estelionato. Em seguida, passou a figurar nos periódicos tradicionais e nos pequenos jornais humorísticos, em publicações avulsas, e até mesmo em uma peça de teatro; virou notícia até em jornais de outras capitais, como Belém e Salvador. Todos eles enfatizavam o escândalo de seu envolvimento não apenas com prostitutas, costureiras, mulheres pobres e negras, mas também com senhoras brancas e casadas, provenientes de famílias influentes na vida política da Corte - uma de suas amantes seria, segundo especulações da imprensa, a esposa de um importante político, possivelmente o autor da denúncia. Tudo isso contribuía para a caracterização de Rosa como um monstro imoral e cruel. No entanto, as senhoras, que eram a maioria de seus seguidores, reconheciam o líder como um "homem de atrativos", sempre bem vestido, usando correntes, anéis e outras joias.

    Os jornais estampavam notícias dizendo que Rosa cometia "práticas sacrílegas", apelando ora para a religião, ora para "ridículas e estúpidas feitiçarias"; que teria "uma posição importante em um círculo de mulheres", pobres vítimas, que o buscavam para "conservar fiel algum amante ou o próprio marido, ou fazê-lo voltar a antigos sentimentos amorosos", ou mesmo quando desejavam " fortuna para qualquer empresa ou fim, ou mal de um inimigo". Eram poucos os noticiários da época que defendiam o líder negro. Mas o periódico ilustrado O Lobisomem, com humor peculiar, imaginou uma conversa entre mãe e filha:

    - Mamãe, que história é essa que se vende a dois vinténs? Dizem que é lição aos pais do mau exemplo das mães!

    - São cães que ladram à lua, são invejosos, que queres! Já chamam malvado a um homem que era amigo das mulheres.

    Várias das filiadas, ou "filhas" de Juca Rosa, compareceram para prestar depoimentos durante o processo, e forneceram diversas informações sobre a associação religiosa do Pai Quilombo. De acordo com os depoimentos, as "filhas" o procuravam por livre e espontânea vontade, na maioria das vezes para resolverem problemas amorosos. Várias testemunhas confirmaram sua crença no poderio de Rosa, acreditando que ele conseguiria da sorte tudo o que desejasse. As seguidoras filiavam-se à sua associação ou "mesa" por meio de um cerimonial que envolvia diversos rituais, música e dança, e um juramento de fidelidade ao "chefe das macumbas" do Rio de Janeiro. A macumba em questão não era mais um instrumento musical de pau riscado (algo semelhante ao reco-reco), tocado por Juca em noites de festa. As filiadas também reconheciam que, após o juramento, Rosa passava a ser o senhor de suas almas e corpos. Além de curas e conselhos, era capaz de conseguir para elas amantes ricos, assim como poderia também castigar os homens que as tratassem mal - muitos dos quais participavam dos rituais conduzidos pelo Pai. Esses castigos viriam em diferentes formas: desde "bolos na cabeça" (um murro com os dedos em nó), ruína financeira ou perda da virilidade, fazendo com que "não prestassem para mulher alguma", até a morte.

    Pai Quilombo foi julgado por estelionato, e não por exercer a feitiçaria, já que no Código Criminal do Império não havia nenhuma lei proibindo essa atividade. As depoentes do processo confirmaram que pagavam uma mensalidade a Juca Rosa. Além disso, para trabalhos ou serviços extras, Rosa cobrava à parte. Uma consulta podia custar até 60 mil réis na década de 1860, preço bastante elevado para a época - equivalente a uma consulta a um médico de renome. Várias das filiadas, em sua maioria pobres, residindo em áreas de prostituição, enfrentavam dificuldades para sobreviver e se sacrificavam para manter em dia as contas com o Pai: faziam dívidas, vendiam objetos que não lhes pertenciam e vários outros malabarismos para dar dinheiro a Rosa.

    Emília Carolina Mascarenhas, por exemplo, costureira de 28 anos, disse que procurou Rosa pela primeira vez porque queria conservar a estima de um homem com quem então vivia; e ouvira dizer "que Rosa tinha tanto poder como Deus". Pagou 50 mil réis para que ele iniciasse o "trabalho necessário para o fim que ela tinha em vista". Já Leopoldina Fernandes Cabral, 23 anos, declarou que foi em busca de Juca para "conservar a estima de um moço" por quem tinha "profunda afeição", pois soube que Rosa "tinha meios e poder para conseguir tudo que a ele se pedia". Acabou se filiando à associação, pagando uma mensalidade de 60 mil réis e aceitando Rosa como "senhor de seu corpo e espírito".

    Denunciava-se também a proteção que Rosa auferia de poderosos figurões da cidade, com os quais teria ligações. Em uma sociedade organizada com base na escravidão e na inviolabilidade da vontade dos senhores brancos, o debate surgido em torno do julgamento de um líder religioso afrodescendente, que adquiriu fama e prestígio em plena capital do Império, tomou grandes dimensões por ter ocorrido em um momento político decisivo: os anos 1870 e 1871, em que fervilhavam as discussões em torno da futura Lei do Ventre Livre, e os destinos que se dariam ao país após o fim do trabalho escravo. Esses debates deixavam evidente o que se pensava em relação aos negros nos meios intelectualizados do Brasil. A raça negra era, nesse contexto, considerada inferior, ignorante e supersticiosa, embrutecida e muitas vezes perigosa; discutia-se muito o perigo moral que os negros representariam junto a famílias brancas, como também os danos que a herança africana causaria na formação da nação.

    Para muitos, Juca Rosa fazia parte dessa "escória". Para outros, era considerado feiticeiro poderoso, podendo curar males do espírito e do corpo. Fabricava e vendia breves, um tipo de bolsa de mandinga ou patuá feito para evitar feitiços ou proteger contra malefícios, usado junto ao corpo, num colar ao pescoço. Serviam para proteção contra "qualquer outro feiticeiro que lhe fizesse qualquer mal", e também para "dar felicidade", "dar fortuna" e "livrar de quebranto", como afirmou um seguidor seu.

    Mas grande parte da clientela de Pai Quilombo o procurava em busca de curas. Juca afirmou em seu depoimento que embora "não fosse deus", tinha respostas para males físicos, como dores e ossos quebrados. A forma como tratava as moléstias unia procedimentos rituais, manipulação de forças sobrenaturais e também remédios feitos de erva, juntamente com rezas e velas acesas para "Senhora Santa Ana" e "Senhor do Bonfim", santos que cultuava. Quanto à acusação de receber dinheiro de diversas mulheres, Rosa declarou que elas o faziam por serem extremamente generosas. Reconheceu que teve muitas vezes relações com as filiadas, negando apenas que as tivesse deflorado. Quando perguntado sobre os objetos encontrados em sua casa, como vidros de medicamento, raízes, pandeiros e até tranças de cabelos, explicou: "num caso de enfermidade ou de dificuldade no decorrer da vida, sobre eles derrama o sangue de um galo; esse ato, na sua crença, agradava aos espíritos ou às almas e era praticado por ele em auxílio a qualquer de seus amigos que por enfermo infeliz a ele recorriam.

    Sem dúvida, as atividades de Juca Rosa se assemelhavam a várias práticas religiosas afro-brasileiras. Mas não é possível explicar tais rituais como mera continuidade de atividades religiosas de regiões da África, nem do candomblé que florescia na Bahia, na mesma época, e para onde Juca Rosa fazia várias viagens com o objetivo de "se limpar". Certamente, em terras baianas, Rosa consultava mestres e pais-de-santo, com o intuito de aprender a realizar algumas de suas práticas.

    Da mesma maneira, a associação de Rosa também não pode ser classificada como algo idêntico ao candomblé ou a umbanda que se conhece hoje ainda que se possa identificar algumas íntimas semelhanças, como o sacrifício de animais ou cerimônias envolvendo canto, dança e transe espiritual. Estavam ali, na associação de Juca Rosa, alguns dos primórdios do que seria o candomblé carioca. Porém, a maioria de suas atividades era peculiaridade sua, especialmente seu relacionamento com diversas mulheres.

    Os rituais de Rosa e seus seguidores devem ser encarados, assim, como próprios do Rio de Janeiro nas últimas décadas da escravidão. Uma religião que tinha elementos católicos e elementos de diferentes culturas africanas, sem ser nem católica nem africana: era carioca, marcadamente negra, embora cultuada também por brancos, pobres e ricos. Relacionava-se a objetivos imediatos, de sobrevivência em um ambiente racista e hostil. No entanto, esse não era seu único propósito, pois as pessoas também frequentavam a casa de Rosa em busca de mulheres bonitas, homens gentis e cheios de contos de réis, de preferência; de companheiros e amigos entre pares; de curas para doenças ou infortúnios, ou simplesmente por fé encarnada na figura carismática de José Sebastião Rosa.

    Juca Rosa foi condenado a seis anos de prisão, apesar de ter contratado um famoso advogado para defendê-lo, que fez diversas apelações, até mesmo ao imperador d. Pedro II. Ficou na casa de correção da Corte até 1877. Quando saiu, teria se tornado "guarda da municipalidade", segundo relatos de memorialistas. Seu nome continuou aparecendo na imprensa e em diversas publicações por muitos anos, ora como memória de grandes personagens da história do Rio, ora como sinônimo de feiticeiro negro e grande conquistador, cada vez que um "novo Juca Rosa" aparecia e sacudia a cidade.  


Texto de Gabriela dos Reis Sampaio. Professora de História da Universidade Federal da Bahia (UFBA). É doutora em História Social pela Unicamp, com a tese "A história do feiticeiro Juca Rosa: cultura e relações sociais no Rio de janeiro Imperial". Publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional, Ano 1, nº 6, Dezembro de 2005.

sábado, 18 de junho de 2022

Ante a Insatisfação

    A insatisfação prepondera no organismo social da Terra, fazendo vítimas que se estiolam em processo de decomposição interior. 

    As pessoas que sofrem dificuldade econômica rebelam-se ou se entregam à prostração do desinteresse, em lamentável estado de agonia lenta.

    As outras, que buscam segurança e dispõem de haveres, projeção e poder na comunidade, experimentam carência afetiva, entregando-se, não raro, a excessos que terminam por entediar, conduzindo-as aos mais sórdidos abusos de desrespeito por si mesmas e pelos outros, exaurindo-se nos alcoólicos, na usança do sexo alucinado, nos tóxicos. O suicídio, direto ou não, é o próximo passo na correria desenfreada. 

    A insatisfação resulta do desconhecimento das finalidades reais da existência terrestre.

    A teimosa negação do homem integral - Espírito, perispírito e matéria - a favor da forma física em que se apresenta é a grande responsável pelo desenfreio que se observa em toda parte.

    Como efeito imediato, a insatisfação arquiteta gozos sempre novos, fugas da realidade, cada vez mais espetaculares, não impedindo, entretanto, que as suas vítimas se reencontrem mais cansadas, mais inquietas, menos saciadas.

    A atual liberação dos instintos e dos conflitos, como terapêutica da autoafirmação do homem, mais o torna ansioso quão mais insatisfeito.

    O processo de amadurecimento psicológico portador de serenidade para o indivíduo, no entanto, é diferente dos cômodos métodos de aparente solução imediata.

    Primeiro, é necessário disciplinar a vontade, após descobrir que se encontra em um estádio da vida, a caminho de nova etapa a conquistar.

    Logo depois, buscar as motivações próprias para a luta que deve travar no seu mundo íntimo, a fim de encontrar-se, equipando-se de equilíbrio, de discernimento para os confrontos inevitáveis do futuro.

    Não ter pressa na colheita de resultados, mas evitar o postergamento das ações.

    Uma vida plena é rica de criatividade, de experiências, de informações e de belezas.

    Em todas as situações, afirmar-se como aprendiz, valorizar o ensejo e adquirir o controle sobre elas.

    Nunca desistir do programa iluminativo.

    Observa as pessoas a tua volta: os saciados, os insatisfeitos, os felizes, os atormentados. Não se detêm em uma análise que lhes resulte benéfica. Transferem-se de uma para outra situação, automaticamente, apressadas, sem que digiram as experiências vivenciadas ou programem as porvindouras.

    Não amadurecem os sentimentos, porquanto as sensações e as emoções perturbadoras têm predomínio em suas vidas.

    Algumas são invejadas, porque prepotentes ou famosas; no entanto, vivem insatisfeitas com a situação que desfrutam, distantes da realização interior.

    Várias afirmam que acreditam na imortalidade da alma. Todavia, a sua não é uma crença consciente, trabalhada pela razão, vívida. É uma chama bruxuleante, que não emite quase claridade, nem aquece os sentimentos, a caminho da extinção sob os ventos contínuos do inconformismo.

    Se a dor tenta convidá-las à reflexão, ao aprofundamento da crença, reagem, sentindo-se defraudadas por Deus e pela vida, que parecem não as poupar do sofrimento, como se fossem especiais, credoras de todas as alegrias sem esforço.

    Não lamentes, não as imites.

    Elas aprenderão com o tempo, este mestre invencível, silencioso e eficaz, que a tudo e a todos transforma.

    A insatisfação de Anás e de Caifás gerou neles a inveja e o ódio contra Jesus.

    A insatisfação de Judas fê-lo vender o Amigo.

    A insatisfação de Pilatos, entediado, manteve-o indiferente, lavando as mãos quanto ao destino do Justo.

    A insatisfação de Pedro tornou-o pusilânime e negador. Porém, despertando do letargo, reassumiu a consciência do amor e do dever, entregando-se-Lhe em regime de totalidade até a morte.

    Lembra-te deles e não te permitas a insatisfação, seja qual for o motivo com que ela te busque apoio.


Retirado do livro Momentos de Iluminação; Divaldo Franco pelo Espírito Joana de Ângelis; Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 4ª Edição, 2015.

sábado, 11 de junho de 2022

Vítimas da Loucura

    Sim, são hoje obsessores, catalogados como seres impenitentes, vingadores implacáveis, destituídos de sentimentos de piedade ou compreensão.

    É certo que se deixaram enlouquecer que se deixaram enlouquecer e perseveram na monoideia do desforço, elaborando planos de crueldade e preparando armadilhas para surpreender aqueles contra os quais se movimentam.

    Difíceis ao diálogo e armados de ferocidade, quanto de insensibilidade ao sofrimento alheio, prosseguem cegos pelo rancor.

    Certamente chegam a provocar revolta, e a resposta à sua constante sanha perseguidora é o desespero, quando não o ressentimento profundo com sinais de rebeldia.

    Obsessores, que se tornaram, são sinônimos de inimigos insolventes.

    Não os detestes, porém, por mais lhes sofras os acúleos da perversidade.

    Eles são teus irmãos doentes, em último grau de desequilíbrio. De alguma forma, sem que o percebam, são, também, teus benfeitores.

    Graças ao seu tresvario, despertam-te para a realidade transcendente, a fim de que atentes para os deveres legítimos.

    Não eram obsessores; tornaram-se. Os seus perseguidos empurram as suas esperanças para o abismo da desesperação.

    Confiaram e tiveram os seus ideais traídos.

    Amaram e se tornaram vítimas da infidelidade.

    Doaram os seus sentimentos, que foram atirados ao paul do crime e da indiferença.

    Sonharam com a felicidade, que tiveram transformada em pesadelos de sofrimentos inenarráveis.

    Distenderam a ternura e recolheram a ingratidão.

    Viram enregelar-se as emoções enobrecedoras.

    Desequipados de fé e coragem, caíram na cegueira do ódio; deixaram-se arrastar pela correnteza da desdita e agora, atormentados, não sabem o que fazem.

    Não há razão que lhes justifique a sandice. No entanto, considera se esses infaustos acontecimentos fossem contigo, como agora te apresentarias... Isso te auxiliará a entendê-los e até a amá-los.

    Eles necessitam de tuas vibrações afetuosas.

    Faze o bem renova-te, iluminando-te. Graças a tuas conquistas eles se esclarecerão e voltarão à normalidade, preparando-se para refazer o caminho, recomeçar, tentando seguir contigo em paz.

    Jesus, que é o Senhor dos Espíritos, sempre usou para com eles de imensa misericórdia, afastando-os dos seus hospedeiros, com o objetivo de que não agravassem mais as suas responsabilidades, ao mesmo tempo, ensejando-lhes a aprendizagem da Sua palavra, motivadora de renovação e de liberdade.

    Reflexiona em torno dos teus sentimentos, e, considerando os teus irmãos ainda obsessores, tem cuidado, evitando piorar a tua e a situação deles, por negligência ou irresponsabilidade de tua parte.


Retirado do livro Momentos de Harmonia; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis; Livraria Espírita Alvorada Editora; Salvador, 3ª edição, 2014.

sábado, 4 de junho de 2022

Janelas na Alma

    O sentimento e a emoção normalmente se transformam em lentes que coam os acontecimentos, dando-lhes cor e conotação próprias.

    De acordo com a estrutura e o momento psicológico, os fatos passam a ter a significação que nem sempre corresponde à realidade.

    Quem se utiliza de óculos escuros, mesmo diante da claridade solar, passa a ver o dia com menor intensidade de luz.

    Variando a cor das lentes, com tonalidade correspondente desfilarão diante dos olhos as cenas.

    Na área do relacionamento humano, também, as ocorrências assumem contornos de acordo com o estado de alma das pessoas envolvidas.

    É urgente, portanto, a necessidade de conduzir os sentimentos, de modo a equilibrar os fatos em relação com eles.

    Uma atitude sensata é um abrir de janelas na alma, a fim de bem observar os sucessos da vilegiatura humana.

    De acordo com a dimensão e o tipo de abertura, será possível observar a vida e vivê-la de forma agradável, mesmo nos momentos mais difíceis.

    Há quem abra janelas na alma para deixar que se externem as impressões negativas, facultando a usança de lentes escuras, que a tudo sombreiam com o toque pessimista de censura e de reclamação.

    Coloca, nas tuas janelas, o amor, a bondade, a compaixão, a ternura, a fim de acompanhares o mundo e o seu séquito de ocorrências.

    O amor te facultará ampliar o círculo de afetividade, abençoando os teus amigos com a cortesia, os estímulos encorajadores e a tranquilidade.

    A bondade irrigará de esperança os corações ressequidos pelos sofrimentos e as emoções despedaçadas pela aflição que se te acerquem.

    O perdão constituirá a tua força revigoradora colocada a benefício de delinquente, do mau, do alucinado, que te busquem.

    A ternura espraiará o perfume reconfortante da tua afabilidade, levantando os caídos e segurando os trôpegos, de modo a impedir-lhes a queda, quando próximos de ti.

    As janelas da alma são espaços felizes para que se espraie a luz, e se realize a comunhão com o bem.

    Colocando os santos óleos da afabilidade na engrenagens da tua alma, descerrarás as janelas fechadas dos teus sentimentos, e a tua abençoada emoção se alongará, afagando todos aqueles que se aproximem de ti, proporcionando-lhes a amizade pura que se converterá em amor, rico de bondade e de perdão, a proclamarem chegada a hora de ternura entre os homens da Terra.


Retirado do livro Momentos de Felicidade; Divaldo Franco pelos Espírito Joanna de Ângelis; Livraria Espírita Alvorada Editora; Salvador, 5ª edição, 2014.