quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Estranha Viagem

              Maria Maura Fadel

Tudo começou naquela manhã gelada, quando viu o marido saindo para ir à padaria com o pescoço desprotegido. Pediu que ele esperasse e pegasse o seu ... o seu ... como era mesmo que chamava? A palavra simplesmente desapareceu de sua cabeça. E só mais tarde se deu conta de que era como se no lugar da lembrança houvesse apenas vazio. Ela se embrenhou pelo corredor que levava ao quarto, em busco do ... (como era mesmo o nome, santo Deus?) enquanto o companheiro de mais de três décadas resmungava, alegando que " nem estava tão frio assim ", sem perceber a angústia da mulher. Minutos depois, na porta do apartamento, enquanto ele ainda protestava e ela ajeitava a peça de lã xadrez por dentro do agasalho, poderia ter comentado que a palavra sumira, mas algo a fez ficar calada - uma espécie de constrangimento, um desconforto ao qual procurou, em vão, não se ater.

Sozinha, percebeu sua respiração acelerada. Afastou a lembrança da mãe, que sofrera tanto tempo de demência na última década de vida. Fora triste demais vê-la perder-se de si mesmo. Mas a história não tinha de se repetir. Que tolice, disse baixinho, tentando rir de si mesma. A cabeça falhava às vezes, ninguém estava livre de pequenos esquecimentos. Mas o que acontecia que a palavra não vinha? Aquilo que se enrola ao redor do pescoço... " Calma, vou lembrar ", dizia para si mesma. " Esqueci e pronto, e daí? " Só precisava descansar.

Estava tomada por pensamentos quando o marido retornou. O cheiro bom dos pães ainda mornos sempre a alegrava, despertava lembranças da adolescência, o café da manhã ao redor da mesa redonda, em companhia dos pais e dos irmãos (amores que já haviam partido); anos mais tarde, já casada, o mesmo cheirinho bom: suas crianças (agora dois adultos) se arrumando para ir à escola; adorava os cheiros e os sons familiares que marcavam o começo de um novo dia. Mas o que chegou até ela naquele momento e lhe trouxe o alívio pelo qual tanto ansiava não foi o aroma do pão e sim os resmungos do marido: " Esse cachecol me sufoca ". Cachecol, ela quase gritou. Cachecol, repetiu como se precisasse decorar a palavra.

Ao longo do dia tentou esquecer o lapso. Porém, a pergunta era inevitável: o que está acontecendo comigo? A resposta veio imediatamente: " Não está acontecendo nada, foi só um esquecimento, pare de se atormentar. " Por alguns dias quase se convenceu. O reconforto, porém, não se manteve até o fim da semana. Quando desceu à garagem para mudar o carro de lugar se deu conta de repente que não havia levado as chaves. Tentou não dar importância. Afinal, era praticamente dia de festa. A filha, o genro e os netos viriam para o almoço e já haviam pedido que fizesse aquele bolo de ameixa e maçã que todos adoravam. Receita antiga, aprendera com a avó.

Esmerou-se na apresentação do prato. Fazia de conta que não se importava com os elogios, mas pelo menos para si mesma precisava confessar: adorava ouvi-los. Uma avalanche deles vinha depois que a primeira garfada era levada à boca. Seguia-se o momento das brincadeiras, o genro e as crianças vinham lhe dar beijos estalados na bochecha. A filha dizia que não tinha o mesmo dom para cozinhar, as duas trocavam um sorriso cúmplice, a moça abanava a cabeça e a mãe sempre garantia que era fácil fazer o doce, não tinha segredo. Mas sabia que não era bem assim: era preciso deixar as ameixas de molho no rum uma hora antes, as farinhas tinham de ser peneiradas três vezes e as maçãs não podiam ser grandes demais. Preparava tudo com cuidado, sempre atenta aos detalhes.

Quando o " hummm..." uníssono não ecoou depois de todos terem se servido, algo se agitou dentro dela. " Mamãe, o bolo está salgado! ", gritou a filha. Como assim? Em mais de 60 anos nunca, jamais errara a receita. Todos riam e falavam ao mesmo tempo enquanto seu rosto corava. Tentou ensaiar um sorriso quando a voz esganiçada do neto pré-adolescente destacou-se: " Parece que está com Alzheimer, Vó ". Era para ser engraçado. Não foi. Doeu. Repreendido, o garoto se defendeu: " Eu estou brincando! ". Disfarçando os olhos marejados, ela correu para a cozinha para se livrar da sobremesa salgada e buscar sorvete.

A tarde transcorreu tranquila, todos comentaram que enganos aconteciam o tempo todo. Naquela noite ela acordou duas horas depois de se deitar. Levantou-se em silêncio e caminhou até o banheiro. Segurando-se à pia olhou fundo nos olhos da desconhecida que a fitava do outro lado do espelho. Um fio de gelo percorreu seu corpo. " A viagem havia começado ", murmurou.

Matéria publicada na edição especial 4 " Doenças do Cérebro - Alzheimer e Parkinson " da revista Mente Cérebro da Duetto Editorial.

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