sábado, 17 de maio de 2025

Rio Condutor de Oferendas

Às divindades dos rios, dos lagos e das fontes foram destinadas as primeiras oblações diretas, jogadas na água, moedas, miniaturas que são possíveis ex-votos, armas, utensílios domésticos, paradas nos depósitos pré-históricos. Ainda é comum na Europa e na América Latina sacudir a moeda no rio, diante de uma capela que se ergue na margem ou suposta igreja existente no fundo das águas. Tradicional é o presente de Iemanjá - flores, perfumes, tecidos finos, joias baratas, animais vivos, cartas rogatórias -, posto ao lume da água e que submerge. No culto ao Bom Jesus da Lapa, Bahia, o rio São Francisco encarrega-se de conduzir a satisfação das promessas e encalhá-las nas ribas do penhasco onde está a imagem dominadora de toda a região. Em cabaças decoradas e típicas, contendo velas, fitas, cabelos, dinheiro, cartas, as promessas são confiadas ao rio, que as conduz lentamente, até Pirapora, seja qual for a distância e a topografia desconcertante de curvas, enseadas e barrancos. M. Cavalcanti Proença informa: "Também os caboclos que não podem ir até Bom Jesus da Lapa colocam as suas oferendas em cabaças que largam de rio abaixo e estas vão ter ao seu destino, tendo ficado célebre uma enviada por um italiano com uma carta e sete mil e seiscentos em dinheiro e que, numa violação geográfica, foi posta no rio Sapucaí, da bacia do Paraná. Pois andou de mão em mão até ser lançada no São Francisco e foi descendo, descendo, quando, ao passar em frente ao templo, derivou pelo braço que vai ao pé do santuário, sendo apanhada".  O mesmo diz Wilson Lins: "... os beiradeiros do Alto São Francisco, quando não podem, por qualquer motivo, fazer romaria, botam os seus presentes no rio e a correnteza leva diretamente para os pés do morro-santuário. Encostado ao morro passa um braço do rio e é por ele que os presentes vindos de longe vão ter ao Bom Jesus. De mais longe que venha um presente, ninguém ousa desviá-lo do seu roteiro. Esses presentes geralmente viajam dentro de cabaças enfeitadas, e são, em sua maioria, velas, tostões e cachos de cabelos". (O Médio São Francisco, Bahia, 1952.) Noraldino Lima escrevera no mesmo sentido: "Os fazendeiros urucuianos e outros, não podendo cumprir pessoalmente as promessas, fazem-no por intermédio dos afluentes do São Francisco. Para isso preparam uma caixinha, dentro da qual depositam o dinheiro prometido e uma vela. O rio leva a mensagem da fé, água abaixo, léguas e léguas, até o porto da Lapa, onde qualquer pescador, qualquer lapense, colhe a caixa e o conteúdo, levando este à gruta do Bom Jesus. Se no sertão ninguém rouba ao homem, quanto mais ao santo. A caixinha do sertanejo desce tranquilamente o rio: é vista por centenas de olhos; todos que conhecem o São Francisco e seus costumes sabem que ali vai dinheiro, e às vezes, dinheiro grosso; entretanto, ninguém toma essa caixinha senão para desembaraçá-la de algum ramo, que porventura esteja estorvando-a no seu destino, rumo da Lapa, onde há um santo que protege o sertão".


Retirado do livro Dicionário do Folclore Brasileiro (revisto, atualizado e ilustrado), de Luís da Câmara Cascudo, Global Editora, 10ª Edição, São Paulo, 2001.

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