12 outubro 2025

Escrevendo

Não me lembro mais onde foi o começo, foi por assim dizer escrito todo ao mesmo tempo. Tudo estava ali, ou devia estar, como no espaço-temporal de um piano aberto, nas teclas simultâneas do piano. Escrevi procurando com muita atenção o que se estava organizando em mim e que só depois da quinta paciente cópia é que passei a perceber. Meu receio era de que, por impaciência com a lentidão que tenho em compreender, eu estivesse apressando antes da hora um sentido. Tinha a impressão de que, mais tempo eu me desse, e a história diria sem convulsão o que ela precisava dizer. Cada vez mais acho tudo uma questão de paciência, de amor criando paciência, de paciência criando amor. - Ele se levantou todo ao mesmo tempo, emergindo mais aqui do que ali. Eu interrompia uma frase no capítulo 10, digamos, para escrever o que era o capítulo 2, por sua vez interrompido durante meses porque escrevia o capítulo 18. Esta paciência eu tive, e com ela aprendia: a de suportar, sem nenhuma promessa, o grande incômodo da desordem. Mas também é verdade que a ordem constrange. - Como sempre, a dificuldade maior era a da espera. (Estou me sentindo mal, diria a mulher para o médico. É que a senhora vai ter um filho. E eu que pensava que estava morrendo, responderia a mulher. A alma deformada, crescendo, se avolumando, sem nem ao menos se saber que aquilo é espera. Às vezes, ao que nasce morto, sabe-se que se esperava.) - Além da espera difícil, a paciência de recompor paulatinamente a visão que foi instantânea. E como se isso não bastasse, infelizmente não sei "redigir", não consigo "relatar" uma ideia, não sei "vestir uma ideia com palavras". O que vem à tona já vem com ou através de palavras, ou não existe. - Ao escrevê-lo, de novo a certeza só aparentemente paradoxal de que o que atrapalha ao escrever é ter de usar palavras. É incômodo. Se eu pudesse escrever por intermédio de desenhar na madeira ou de alisar uma cabeça de menino ou de passear pelo campo, jamais teria entrado pelo caminho da palavra. Faria o que tanta gente que não escreve faz, e exatamente com a mesma alegria e o mesmo tormento de quem escreve, e com as mesmas profundas decepções inconsoláveis: não usaria palavras. O que pode vir a ser a minha solução. Se for, bem-vinda.


Crônica de Clarice Lispector retirada do livro Para Não Esquecer, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 2019.

11 outubro 2025

Demonstrações do Céu (92)

 "Disseram-lhe, pois: que sinal fazes tu para que o vejamos, e creiamos em ti? - (JOÃO, 6:30.)


Em todos os tempos, quando alguém na Terra se refere às coisas do Céu, verdadeira multidão de indagadores se adianta pedindo demonstrações objetivas das verdades anunciadas.

Assim é que os médiuns modernos são constantemente assediados pelas exigências de quantos se colocam à procura da vida espiritual.

Esse [e vidente e deve dar provas daquilo que identifica.

Aquele escreve em condições supranormais e é constrangido a fornecer testemunho das fontes de sua inspiração.

Aquele outro materializa os desencarnados e, por isso, é convocado ao teste público.

Todavia, muita gente se esquece de que todas as criaturas do Senhor exteriorizam os sinais que lhes dizem respeito.

O mineral é reconhecido pela utilidade.

A árvore é selecionada pelos frutos.

O firmamento espalha mensagens de luz.

A água dá notícias do seu trabalho incessante.

O ar esparge informações, sem palavras, do seu poder na manutenção da vida.

E entre os homens prevalecem os mesmos imperativos.

Cada irmão de luta é examinado pelas suas características.

O tolo dá-se a conhecer pelas puerilidades.

O entendido revela mostras de prudência.

O melhor demonstra as virtudes que lhe são peculiares.

Desse modo, o aprendiz do Evangelho, ao solicitar revelações do Céu para a jornada da Terra, não deve olvidar as necessidades de revelar-se firmemente disposto a caminhar para o Céu.

Houve dia em que a turba vulgar dirigiu-se ao próprio Salvador que a beneficiava, perguntando: - "que sinal fazes tu para que o vejamos, e creiamos em ti?"

Imagina, pois, que se ao Senhor da Vida foi dirigida semelhante interrogativa, que indagação não se fará do Alto a nós mesmos, toda vez que rogarmos sinais do Céu, a fim de atendermos ao nosso simples dever?


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

Donas do nosso lar

Empregadas domésticas são figuras folclóricas em qualquer lar. Imagina numa casa de bibas. Normalmente conservadoras, elas chegam desconfiadas. "Dois homens e uma cama! Há algo de esquisito nessa casa!" Para logo depois virarem grandes aliadas no espetáculo de vaudeville que, muitas vezes, se transforma o dia-a-dia de dois gays vivendo sob o mesmo teto.

O primeiro contato com essas rainhas dos nossos lares é o mais difícil. Como dizer para aquela senhora, com saia até o joelho, coque no cabelo, a maior pinta de evangélica radical, que ali moram você e seu namorado? Mais fácil contar pra mãe, né? Ela, ao menos, a gente conhece. Mas não adianta esconder, porque um dia os dois acabam pegos juntos no chuveiro. E aí a empregada vai embora revoltada e fazendo fofoca com o porteiro.

Só não passa por essa dificuldade quem faz a linha Act up e diz logo de cara: "Antônia, aqui também mora o Pedro e nós somos bichas. Você entendeu?" Assim mesmo, com esse vocabulário, porque se sofisticar com somos gays, homossexuais, transviados, pederastas... Ela vai perguntar em seguida: "São o quê, patrão?" Então, você terá que explicar de qualquer maneira: "Bichas, Antônia! Nós somos bichas. Entendeu agora?"

A alternativa pra não enfrentar a conversa é ter a sorte de contratar uma empregada enrustida, como a Dulce. Ela trabalha para duas bibas empresários faz 17 anos. Eles são muito gays e completamente assumidos. Mas não há santo que faça Dulce reconhecer isso. Quando tem festa no apartamento da dupla, a empregada enrustida vira atração, pobrezinha:

- Dulce, preciso lhe contar. Marcelo e Sérgio estão juntos todos esses anos. Casados, feito homem e mulher, fazem sexo e tudo. Só você ainda não sabe.

- Não levanta esse falso, seu Henrique.

- Verdade, você não vê? Eles dormem até na mesma cama.

- Imagina, seu Marcelo e seu Sérgio, que não podem ver mulher de saia.

Inexplicavelmente, ela duvida. E ainda testemunha contra a calúnia, mesmo sendo a única mulher a dormir naquela casa.

Outro estilo clássico de empregada de gays é a de fachada. Ela dá a maior força, mas não aprova que os patrões deem muita pinta. Acha necessário disfarçar e sempre dá um jeito de falar de noitadas com mulheres com as visitas, que naturalmente pensam que ela é louca. A Francisca, por exemplo, chega ao requinte de mentir ao telefone, sempre que pega uma ligação dos pais do seu patrão biba. "Deixa eu vê se ele já saiu do quarto. Você conhece o danado do seu filho. Chegou com uma mulher e tá trancado na maior safadeza."

Pouco importa pra elas que você não esconda sua homossexualidade. Generosas como mães zelosas, querem nos proteger a todo custo. Mas, às vezes, atrapalham. Vera Lúcia, por exemplo, sempre deixa de saia justa os paqueras de uma biba dom Juan. Bem-sucedido com homens, na cama dele não faltam belos jovens. Mas Vera Lúcia, muito simpática, num esforço de memória, sempre chama o rapaz pelo nome do visitante de outra noite qualquer. "Olha, seu Eduardo, fiz vitamina de abacate como o senhor gosta." A biba que já alertou mil vezes - "Vera Lúcia quando você vir homem aqui não abra a boca, sua anta!" - quase morre de vergonha, ou de medo de ser tomado por promíscuo, e fala desolado para a lesada: "Fofa, esse é o Marcos." Quem, no entanto, consegue manter empregada despachada de boca calada? "Gente, nem reconheci. E o seu Marcos gosta de quê mesmo no café?"

Para os enrustidos, ter empregada aliada é gênero de primeira necessidade. Um conhecido, filho de família rica e tradicional do Rio Grande do Sul, tem uma ótima para os seus propósitos. Esperta passista do Salgueiro, Cleonice é treinada para sumir com tudo gay do apartamento em 23 minutos. Basta um parente qualquer ligar, mesmo do aeroporto, já no Rio de Janeiro, dizendo que vai pra lá e ela dispara feito um raio. Em tempo cronometrado, escamoteia porta-retratos, livros, revistas, bilhetes, deixa calcinha lavada esquecida no box, até o quadro do Vitor Arruda desaparece da parede. Cleonice é tão pós-graduada nas paranoias do patrão que, em época de visita, troca invariavelmente os nomes das bibas que ligam pra ele. Nem a gente escapou dessa.

- Seu Patrick, dona Nelsa da Revista Playboy lá no telefone.

Foi indisfarçável o espanto dos parentes diante de nome tão improvável. Restou à biba esforçada um sorriso amarelo e a saída de emergência.

- Família excêntrica, a da gatinha.


Editorial de Nelson Feitosa para a hoje extinta revista Sui Generis, ano 3, número 24, SG Press Editora, Rio de Janeiro, 1997.

04 outubro 2025

Problemas do Amor (91)

"... que vosso amor cresça cada vez mais no pleno conhecimento e em todo discernimento." - Paulo (FILIPENSES. 1:9.)


O amor é a força divina do Universo.

É imprescindível, porém, muita vigilância para que não a desviemos na justa aplicação.

Quando um homem se devota, de maneira absoluta, aos seus cofres perecíveis, essa energia, no coração dele, denomina-se "avareza"; quando se atormenta, de modo exclusivo, pela defesa do que possui, julgando-se o centro da vida, no lugar em que se encontra, essa mesma força converte-se nele em "egoísmo"; quando só vê motivos para louvar o que representa, o que sente e o que faz, com manifesto desrespeito pelos valores alheios, o sentimento que predomina em sua órbita chama-se "inveja".

Paulo, escrevendo a amorosa comunidade filipense, formula indicação de elevado alcance. Assegura que "o amor deve crescer, cada vez mais, no conhecimento e no discernimento, a fim de que o aprendiz possa aprovar as coisas que são excelente".

Instruamo-nos, pois, para conhecer.

Eduquemo-nos para discernir.

Cultura intelectual e aprimoramento moral são imperativos da vida, possibilitando-nos a manifestação do amor, no império da sublimação que nos aproxima de Deus.

Atendamos ao conselho apostólico e cresçamos em valores espirituais para a eternidade, porque muitas vezes, o nosso amor é simplesmente querer e tão-somente com o "querer" é possível desfigurar, impensadamente, os mais belos quadros da vida.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.