terça-feira, 9 de agosto de 2022

Travessuras

Eu insisto em cantar

Diferente do que ouvi

Seja como for recomeçar

Nada mais há de vir


Me disseram que sonhar

Era ingênuo, e daí?

Nossa geração não quer sonhar

Pois que sonhe, a que há de vir


Eu preciso é te provar

Que ainda sou o mesmo menino

Que não dorme a planejar travessuras

E fez do som da tua risada um hino


Me disseram que sonhar

Era ingênuo, e daí?

Nossa geração não quer sonhar

Pois que sonhe, a que há de vir


Eu preciso é te provar

Que ainda sou o mesmo menino

Que não dorme a planejar travessuras

E fez do som da tua flauta um hino


Música de Oswaldo Montenegro gravada em seu então LP de 1990 lançado pela Gravadora Som Livre e relançado em CD posteriormente...

domingo, 7 de agosto de 2022

O Nascimento do Mundo

No início só havia Kore, a energia, vagando na escuridão do espaço infinito. Então veio a luz e surgiram Ranginui, o Pai Céu, e Papatuanuku, a Mãe Terra. Rangi e Papa tiveram muitos filhos: Tangaroa, deus das águas; Tane, deus das florestas; Tawhirmatea, deus dos ventos; Tumatauenga, deus da guerra, que deu origem aos seres humanos; e Uru, que não era deus de nada.

Rangi e Papa viviam num perpétuo abraço de amantes. Acontece que esse enlace apaixonado não deixava a luz penetrar entre seus corpos, onde ficavam os filhos. Obrigados a viver apertados e sempre no escuro, os jovens resolveram dar um basta na situação.

- Vamos matar Rangi e Papa e ficar livres deles! - disse Tumatauenga.

- Não! - disse Tane. - Vamos apenas separá-los, empurrando um para cima e deixando o outro embaixo. Assim sobrará espaço para nós e a luz vai poder entrar.

Todos acharam a ideia excelente.

Tane, que era o mais forte de todos, firmou bem os pés em Papa, encaixou os ombros no corpo de Rangi e o empurrou para cima com toda a força.

Os pais se separaram mas - oh, decepção! - só um pouco de luz chegou ao mundo dos filhos. Além disso, Rangi e Papa estavam nus e, longe um do outro, sentiam muito frio.

Comovido com a situação, Tane abrigou o pai com o negro manto da noite.

Para a mãe fez um vestido com as mais verdes e tenras folhas e as flores mais coloridas. Em torno dela fez ondular as águas azuis dos mares e rios de Tangaroa. Os ventos de Tawhirmatea sopravam suavemente seus cabelos. Os filhos de Tumatauenga já começavam a povoar o mundo recém-criado.

Olhando lá de cima os lindos trajes da mulher e sua participação no novo mundo. Ranginui ficou doente de inveja. Sua dor cobriu o mundo com uma névoa úmida e cinzenta.

Refugiado em uma dobra do manto paterno, Uru chorava e chorava por não ter sido útil em nada aos pais e aos irmãos. Para que ninguém percebesse suas lágrimas, escondia-as em cestas e mais cestas. Mas Tane tudo percebera:

- Uru, meu irmão, preciso de sua ajuda!

- Nada tenho para dar, você bem sabe!

- Ora, Uru, você tem tantas cestas...

Surpreso e com medo de ser descoberto em sua fraqueza, Uru abaixou a cabeça: - Não tem nada dentro delas, irmão.

Tane avançou e destampou uma das cestas. Dela voaram luzes faiscantes e risonhas para todos os lados. As lágrimas de Uru haviam se transformado em crianças-luz (para nós, estrelas)!

- Uru, será que você podia me ceder duas de suas cestas? Seus filhos poderiam enfeitar e iluminar a morada de nosso pai...

Uru concordou. As duas cestas foram passadas para Te Waka o Tamareriti, uma canoa muito especial. Tane conduziu a canoa até o céu, espalhando sobre o manto de Rangi milhares de estrelinhas que riam e piscavam umas para as outras o tempo todo.

Quando Tane ia pegar a segunda cesta, esta tombou e se abriu, deixando as estrelas se espalharem numa grande faixa chamada Ikaroa, que cruzou o céu de lado a lado (para nós, a Via Láctea). Tane deixou Ikaroa e Waka o Tamareriti (que é a cauda da nossa constelação do Escorpião) no espaço celeste, onde se tornaram os guardiães das estrelas.


Lenda Maori recontada por Maria de la Luz. Publicada na Revista Nova Escola, Fundação Victor Civita, Editora Abril.

O rei que virou vaca

    Certa vez, um rei convocou os nobres da corte e declarou que era um vaca. Os nobres ficaram assustados. O soberano disse mais: desejava ser morto e ter sua carne cortada e distribuída ao povo.

    Achando que o rei havia enlouquecido, os nobres convocaram os principais médicos do reino. Remédios e unguentos foram experimentados mas, infelizmente, sem nenhum resultado.

    Enquanto isso, o monarca piorava. Mugia o dia inteiro. Sujava o chão do palácio. Dez vez em quando, saía galopando, dando coices e cabeçadas.

    Passado um tempo, o rei chamou novamente seus principais nobres e ministros. Parecia contrariado. Esbravejou. Disse que, porque suas ordens não haviam sido cumpridas, a partir daquele dia não ia comer mais nada.

    Uma nuvem negra pousou no futuro do reino. O povo, angustiado, acompanhava o drama de seu querido rei, cada vez mais magro, fraco e abatido.

    Um dia, um famoso cientista apareceu no reino. Diziam que era um grande médico. Diziam que era um filósofo capaz de lidar com os mais intrincados segredos da alma humana.

    O sábio foi ao palácio examinar o rei. Deitado na cama, o monarca repetiu ao médico suas alucinações. Mugiu. Confirmou que era uma vaca. Confirmou que seu único desejo era ser morto, cortado e ter sua carne distribuída ao povo.

    Coçando a longa barba, o sábio declarou que o rei tinha razão. Ordens reais eram leis que precisavam ser cumpridas imediatamente. Em seguida, abrindo a porta, chamou o açougueiro.

    Um homem imenso, vestido de branco, entrou no quarto com uma faca na mão. Perguntou onde estava a tal vaca.

    - Estou aqui! - gemeu o soberano, exultante, com os olhos alegres de loucura.

    O açougueiro aproximou-se da cama. Levantou, cuidadoso, a perna fina e branca do monarca. Balançou a cabeça, decepcionado. Aquela vaca estava magra demais. De que adiantava matar um animal que era só pele e osso? Cortar o quê? Distribuir o quê?

    - Primeiro - aconselhou ele -, é necessário que essa vaca aprenda a se cuidar, a comer, dormir direito e caminhar pelas montanhas, até ficar forte, alegre e cheia de saúde.

    Dizendo que só voltaria quando a vaca estivesse no ponto certo, o açougueiro guardou a faca e foi embora.

    A partir desse dia, o rei decidiu alimentar-se de novo. Aos poucos, foi engordando, as cores voltaram a brilhar em seu rosto, ficou forte e acabou esquecendo de vez que um dia havia sido vaca.


Versão de um conto popular recontado por Ricardo Azevedo publicado na Revista Nova Escola, Fundação Victor Civita, Editora Abril, Outubro de 1999.

sábado, 6 de agosto de 2022

Cruz de Provações

    Anotas, angustiado, as ocorrências afligentes da existência e não podes sopitar as exclamações de pessimismo, considerando-te desditoso.

    Referes-te a enfermidades dilaceradoras que te alcançaram durante a existência física e arrolas os sofrimentos morais que te surpreenderam, inúmeras vezes, aturdindo-te e desencorajando-te.

    Registras soledade nos momentos ásperos, como se a tua vida não tivesse qualquer significado para aqueles que te cercam no grupo familial ou social no qual te demoras.

    Consideras as ingratidões que te feriram a alma, reiteradas vezes, partidas de pessoas às quais brindaste afeto, enriquecendo-lhes as horas de devotamento, de bondade e de alegria.

    Muitas vezes, foste surpreendido pela calúnia infeliz que te azucrinou as horas, recebendo a bofetada do descrédito que te não poupou os valores morais íntimos.

    Em outras ocasiões, foste surpreendido pela ironia de pessoas simpáticas em quem confiavas, relatando-lhes os limites e problemas, de que então se utilizaram para levar-te à praça da zombaria.

    Sentes cansaço; agora acalentas o tédio, a desconfiança, entregando-te à decepção.

    Reage e reflexiona com isenção de ânimo.

    Esta é a tua cruz de provações.

    Todas as criaturas transitam no mundo sob madeiros pesados, que lhes arrebentam as resistências, afligindo-as, amedrontando-as. Todavia, não é esta a finalidade deles, alguns invisíveis, portanto, mais dilaceradores.

    Ignoras as dores ocultas do teu próximo, que se encontra atirado sobre catres misérrimos ou imobilizado por paralisias insidiosas, irrecuperáveis.

    Não sabes das decepções que asfixiam os portadores do mal de Hansen, da Aids, da decomposição orgânica em vida, nem das macerações da alma, que empurraram para os pélagos da loucura verdadeiras multidões...

    A dor, na Terra, ainda é processo expurgador de mil delitos que não foram justiçados e de vícios hediondos que permaneceram ocultos.

    A Misericórdia de Deus faculta ao espírito calceta recuperar-se pelo sofrimento, depurar-se mediante a cruz das provações, em cujas traves reconsidera atitudes, programa atividades dignificantes, alça-se ao bem.

    Assim mesmo, não são poucos aqueles que, ao invés de retemperarem o ânimo na forja da agonia, deixam-se consumir pelas chamas da revolta, que somente piora e própria situação.

    Aberto à Vida está o amor. Todavia, ei-lo vilipendiado no chão da mesquinhez e na promiscuidade do primitivismo.

    Possuidor dos recursos de edificação, é posto nos desvãos de delinquência, permanecendo nos porões do vício...

    O amor, no entanto, é o hífen de ligação do homem com o seu irmão e com Deus, quando logra permear de vida aquele que se lhe permite penetrar.

    Deste modo, se te sentes atado à cruz das provações dolorosas, adorna-a com as flores do amor fraterno, transformando as tuas dores em fontes de esperança em relação ao futuro.

    Com resignação dinâmica, supera os momentos mais graves e alegra-te, tendo em mente que dos braços dessa cruz te alçaras mais rapidamente à elevadas esferas da libertação.


Retirado do livro Momentos de Felicidade; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis; Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 5ª Edição, 2014.

quinta-feira, 4 de agosto de 2022

Folhas Secas

    Eu estava dando uma aula de Matemática e todos os alunos acompanhavam atentamente. Todos?

    Quase: Carolina equilibrava o apontador na ponta da régua, Lucas recolhia as borrachas dos vizinhos e construía um prédio, Renata conferia as canetas e os lápis do seu estojo vermelhíssimo e Hélder olhava para o pátio.

    O pátio? O que acontecia no pátio?

    Após o recreio, dona Natália varria calmamente as folhas secas e amontoava e guardava tudo dentro de um enorme saco plástico azul. Terminando o varre-varre, dona Natália amarrou a boca do saco plástico e estacionou aquele bafuá de folhas secas perto do portão. Hélder observava atentamente. E eu observava a observação de Hélder - sem descuidar da minha aula de Matemática. De repente, Hélder foi arregalando os olhos e franzindo a testa.

    Qual o motivo do espanto?

    Hélder percebeu alguma coisa no meio das folhas movendo-se desesperadamente, com aflição, sufoco, falta de ar. Hélder buscava interpretações para a cena, analisava possibilidades, mas o perfil do passarinho já se delineava na transparência azul do plástico. Um pássaro novo tinha caído do ninho e, confundido-se com as folhas secas, foi varrido e agora lutava pela liberdade.

    - Ele tá preso!

    O grito de Hélder interrompeu o final da multiplicação de 15 por 127. Todos os alunos olhavam para o pátio. E todos nós concordamos, sem palavras: o bico do passarinho tentava romper aquela estranha pele azul. Hélder saiu da sala e nós fomos atrás. E antes que eu pudesse pronunciar a primeira sílaba da palavra "calma", o saco plástico simplesmente explodiu, as folhas voaram e as crianças pularam de alegria.

    Alguns alunos dizem que havia dois passarinhos presos. Outros viram três passarinhos voando felizes e agradecidos. Lucas diz que era um beija-flor. Renata insiste que era uma cigarra. Eu, sinceramente, só vi folhas secas voando.

    E, para concluir esta inesquecível aula de Matemática, pegamos vassouras, pás e sacos plásticos e fomos varrer novamente o pátio.


Conto de Francisco Marques (Chico dos Bonecos) publicado na Revista Nova Escola, Fundação Victor Civita, Editora Abril, Novembro de 1999.

Anunciação

Na bruma leve das paixões que vem de dentro

Tu vens chegando pra brincar no meu quintal

No teu cavalo peito nu cabelo ao vento

E o sol quarando nossas roupas no varal

Tu vens tu vens

Eu já escuto os teus sinais

A voz do anjo sussurrou no meu ouvido

E eu não duvido já escuto os teus sinais

Que tu virias numa manhã de domingo

Eu te anuncio nos sinos da catedral


Música de Alceu Valença que faz parte do então LP Anjo Avesso, gravado em 1983 e lançado pelo Gravadora Ariola. Relançado, posteriormente em CD em uma caixinha com três títulos: os discos de 1981 (Cinco Sentidos), 1983 (Anjo Avesso) e 1984 (Mágico). Os outros LPs desse época foram relançados de forma avulsa...

quarta-feira, 3 de agosto de 2022

A dança do arco-íris

    Há muito tempo, vivia sobre uma planície de nuvens uma tribo muito feliz. Como não havia solo para plantar, só um emaranhado de fios branquinhos e fofos como algodão-doce, as pessoas se alimentavam da carne de aves abatidas com flechas, que faziam amarrando em feixe uma porção dos fios que formavam o chão. De vez em quando, o chão dava uma sacudidelas, a planície inteira corcoveava e diminuía de tamanho, como se alguém abocanhasse parte dela.

    Certa vez, tentando alvejar uma ave, um caçador errou a pontaria e a flecha se cravou no chão. Ao arrancá-la, ele viu que se abrira uma fenda, através da qual pôde ver que lá embaixo havia outro mundo.

    Espantado, o caçador tampou o buraco e foi embora. Não contou sua descoberta a ninguém.

    Na manhã seguinte, voltou ao local da passagem, trançou uma longa corda com os fios do chão e desceu até o outro mundo. Foi parar no meio de uma aldeia onde uma linda índia lhe deu as boas-vindas, tão surpresa em vê-lo descer do céu quanto ele de encontrar criatura tão bela e amável. Conversaram longo tempo e o caçador soube que a região onde ele vivia era conhecida por ela e seu povo como "o mundo das nuvens", formado pelas águas que evaporavam dos rios, lagos e oceanos da terra. As águas caíam de volta como uma cortina líquida, que eles chamavam de chuva.

    "Vai ver, é por isso que o chão lá de cima treme e encolhe", ele pensou. Ao fim da tarde, o caçador despediu-se da moça, agarrou-se à corda e subiu de volta para casa. Dali em diante, todos os dias ele escapava para encontrar-se com a jovem. Ela descreveu para ele os animais ferozes que havia lá embaixo. Ele disse a ela que lá no alto as coisas materiais não tinham valor nenhum.

    Um dia, a jovem deu ao caçador um cristal que havia achado perto de uma cachoeira. E pediu para visitar o mundo dele. O rapaz a ajudou a subir pela corda. Mal tinham chegado lá nas alturas, descobriram que haviam sido seguidos pelos parentes dela, curiosos para ver como se vivia tão perto do céu.

    Foram todos recebidos com uma grande festa, que selou a amizade entre as duas nações. A partir de então, começou um grande sobe-e-desce entre céu e terra. A corda não resistiu a tanto trânsito e se partiu. Uma larga escada foi então construída e o movimento se tornou ainda mais intenso. O povo lá de baixo, indo a toda a hora divertir-se nas nuvens, deixou de lavrar a terra e de cuidar do gado. Os habitantes lá de cima pararam de caçar pássaros e começaram a se apegar às coisas que as pessoas de baixo lhes levavam de presente ou que eles mesmos desciam para buscar.

    Vendo a desarmonia instalar-se entre sua gente, o caçador destruiu a escada e fechou a passagem entre os dois mundos. Aos poucos, as coisas foram voltando ao normal, tanto na terra como nas nuvens. Mas a jovem índia, que ficara lá em cima com seu amado, tinha saudade de sua família e de seu mundo. Sem poder vê-los, começou a ficar cada vez mais triste. Aborrecido, o caçador fazia tudo para alegrá-la. Só não concordava em reabrir a comunicação entre os dois mundos: o sobre-e-desce recomeçaria e a sobrevivência de todos estaria ameaçada.

    Certa tarde, o caçador brincava com o cristal que ganhara da mulher. As nuvens começaram a sacudir sob seus pés, sinal de que lá embaixo estava chovendo. De repente, um raio de sol passou pelo seu cristal e se abriu num maravilhoso arco-íris que ligava o céu e a terra. Trocando o cristal de uma mão para outra, o rapaz viu que o arco-íris mudava de lugar.

    - Iuupii! - gritou ele. - Descobri a solução para meus problemas!

    Daquele dia em diante, quando aparecia o sol depois da chuva, sua jovem mulher escorregava pelo arco-íris abaixo e ia matar a saudade de sua gente. Se alguém lá de baixo se metia a querer visitar o mundo das nuvens, o caçador mudava a posição do cristal e o arco-íris saltava para outro lado. Até hoje, ele só permite a subida de sua amada. Que sempre volta, feliz, para seus braços.


Lenda indígena recontada por João Anzanello Carrascoza retirada da Revista Nova Escola, Fundação Victor Civita, Editora Abril, dezembro de 1999.

Homem invisível no mundo invisível

 Vejo o mundo inteiro

Numa espécie tosca de carrossel

Cada lugar um bicho

Corrida maluca pra pagar o aluguel


Nesse consumismo

Plastificado o rosto, amor, religião

Carregando status

Num mundo invisível angustiado cidadão


Parem esse mundo que eu quero descer

Tudo é dinheiro e o amor pra onde vai

Quero um abraço dos meus bons amigos, pois

Nenhum dinheiro compra um verdadeiro

Mestre de luz, saúde e proteção

Seus pensamentos são a sua condição

Se você não acredita no mundo invisível

Como é que explica se te toca a minha voz

Se a minha voz te toca


Quando se está cansado

Repare que tudo acontece pra te testar

Sua dignidade

Mantenha sua inteligência, caráter, persistência

Mestres de luz conduzindo cada um de nós

Dessa nossa vida levaremos apenas nossa poesia


Parem esse mundo que eu quero descer...


Música de Vanessa da Mata que faz parte do seu CD Segue o Som, lançado pela Gravadora Sony Music em parceria com o selo dela intitulado Jabuticaba no ano de 2014.

domingo, 31 de julho de 2022

Andarilhos

Andava pela estrada, sozinho. Um sol de rachar e os dois andando, sem parar. E andando, resolvidos, iam os três desenxabidos.

Os quatro não andavam à toa: buscavam uma terra boa.

Com os pés doendo de tanto andar, os cinco pararam para descansar.

E os seis se deitaram, dormiram, sonharam...

No meio da noite, os sete acordaram e se arrepiaram.

Dezesseis olhos arregalados, brilhando, viram o rio iluminado, o chão iluminado.

Cavando a terra, dezoito mãos traziam com a respiração ofegante, dezenas de pedrinhas brilhantes.

Depois de muito cavar, contar e reunir, os dez começaram a discutir.

O centro da discussão era este: onze andarilhos podem suportar tantos brilhos?

Uma dúzia de ideias diferentes, uma ou outra interessante, mas nenhuma ideia brilhante.

Com as palavras doendo de tanto falar, os treze resolveram si-len-ci-ar.

Deitados, silenciosos, os quatorze buscavam uma nova rima, quando olharam para cima...

Boquiabertos, ao som de quinze admirações, descobriram estrelas cadentes em grandes porções e proporções.

E aquelas dezesseis imaginações tropeçaram nas mesmas conclusões...

"As pedras são farelos de estrelas", dezessete vezes pensaram e dezessete vozes exclamaram.

E declararam os dezoito andarilhos, acostumados a vagar de déu em déu: "Essa terra tem parentesco com o céu."

E dezenove caminheiros decidiram fincar pé e se estabelecer: "De agora em diante, aqui vamos morar, aqui vamos viver."

Vinte vezes festejavam. Quando uma voz  desfestejou: "Continuarei caminhando. Adeus. Já vou."

E este que se foi, ligeirinho!, posso dizer apenas que ele...

Andava pela estrada, sozinho.


Conto de Francisco Marques (Chico Bonecos) publicado na Revista Nova Escola, Fundação Victor Civita, Editora Abril, Março de 2000.


O amigo de Juliana

    A Juliana tinha um amigo chamado Fungo. Ele morava na casa de bonecas e conseguia até ajeitar-se bem nas pequenas cadeiras e na caminha azul, apesar de ser mais gordo que elas.

    Fungo era talentoso. Escrevia poemas, histórias e desejava ser um grande escritor, porém sentia falta de um mestre. Juliana, definitivamente não podia ser esse mestre, pois aprendera a escrever havia pouco tempo. Além do mais, ultimamente a amizade deles andava estremecida, porque Juliana dava mais atenção às bonecas que a ele. Fungo não entendia qual era a graça que ela via naquelas bonecas mudas, sem cultura e sem sentimentos. Fungo suspeitava que fossem mesmo burras, principalmente aquele boneco Tob, que parecia uma montanha de músculos inúteis, pois nem se trocar sozinho ele sabia. Era uma dependência total, um vexame, e Juliana é que precisava trocá-lo toda vez.

    Numa certa madrugada, em que Fungo estava sem sono, viu jogado no chão o caderno de Juliana com uma redação assim:


Minha familha

Minha familha é legal. Meu pai

chama Alfredo e minha mãe

chama Denize. Eu tenho 6 ano.


    Fungo leu e achou pobre, mal escrito, com cinco erros de português, além da falta de estilo. Num ato de ousadia arrancou a página e reescreveu a redação do jeito que ele achava que ficava melhor:


Minha Família

Minha família, com muito orgulho, é a mais linda que existe.

Meu pai, de nome Alfungo, é bonito, forte, tem orelhas pontudas, dentes enormes, belíssimos cabelos verdes e faz um lindo par com minha mãe, Fenize, que apesar do rabo curto, é tão incrivelmente peluda, que tem pelos até nos cotovelos e na ponta do nariz. Eu ainda sou jovem, tenho apenas 190 anos.


    Fungo foi dormir orgulhosíssimo de sua redação, feliz com a chance de receber comentários da professora de Português de Juliana, essa sim, uma verdadeira mestra.

    No dia seguinte, a amiga voltou furiosa da escola e proibiu Fungo de escrever uma linha que fosse em seus cadernos, pois os colegas da classe tinham achado que ela estava maluca por escrever tais bobagens. Chateado, Fungo recolheu-se à sua casinha e esperou anoitecer.

    Quando Juliana finalmente adormeceu, ele foi silenciosamente até a mochila, apanhou o caderno da menina e leu o comentário da professora:

    "Redação muito criativa, cheia de imaginação e bem escrita, precisa apenas caprichar mais na letra. Nota dez."

    Fungo adorou, achou o máximo e pensou até em entrar para a escola. Claro, só quando a Juliana se acalmasse. Talvez pudesse ficar na classe dentro da mochila, já que os adultos com certeza não iriam entender um monstro culto como ele querendo assistir aula.


Conto de Eva Furnari publicado na Revista Nova Escola, Fundação Victor Civita, Editora Abril, Maio de 2000.