sábado, 9 de novembro de 2024

7. Há línguas perfeitas

Um grande mito em relação às Línguas é que, em algum momento, teria havido Línguas perfeitas. Sua tradução quase diária é que teria havido, para cada Língua, uma época em que ela foi melhor, em que se falava mais corretamente. A forma mais comum deste mito (ou mentira), no dia a dia, é a tese da decadência da Língua (das Línguas). Os que defendem esta tese não sabem (ou fingem não saber) que ela é brandida desde sempre. Uma versão é o mito de babel, mas a tese repetida em Roma, Alexandria, na França, Inglaterra, é repetida nos EUA e, claro, no Brasil. Curiosamente, em cada época essa tese é defendida na Língua da época...


Texto de Sírio Possenti, professor titular do Departamento de Linguística da Unicamp e autor de Humor, Língua e Discurso.

Mitos Ideológicos, 100 Mitos retirado da revista Língua Portuguesa, Ano 9, número 100, Fevereiro de 2014, Editora Segmento, São Paulo.

Somente Assim (45)

 "Nisto é glorificado meu Pai, que deis muito fruto; e assim sereis meus discípulos." - Jesus. (JOÃO, 15:8)


Em nossas aflições, o Pai é invocado.

Nas alegrias, é adorado.

Na noite tempestuosa, é sempre esperado com ânsia.

No dia festivo, é reverenciado solenemente.

Louvado pelos filhos reconhecidos e olvidado pelo ingratos, o Pai dá sempre, espalhando as bênçãos de sua bondade infinita entre bons e maus, justos e injustos.

Ensina o verme a rastejar, o arbusto a desenvolver-se e o homem a raciocinar.

Ninguém duvide, porém, quanto à expectativa do Supremo Senhor a nosso respeito. De existência em existência, ajuda-nos a crescer e a servi-Lo, para que, um dia, nos integremos, vitoriosos, em seu divino amor e possamos glorificá-Lo.

Nunca chegaremos, contudo, a semelhante condição, simplesmente através dos mil modos de coloração brilhante dos nossos sentimentos e raciocínios.

Nossos ideais superiores são imprescindíveis, e no fundo assemelham-se às flores mais belas e perfumosas da árvore. Nossa cultura é, sem dúvida indispensável, e, em essência, constitui a robustez do tronco respeitável. Nossas aspirações elevadas são preciosas e necessárias, e representam as folhas vivas e promissoras.

Todos esses requisitos são imperativos da colheita.

Assim também ocorrer nos domínios da alma.

Somente é possível glorificar o Pai quando nos abrimos aos seus decretos de amor universal, produzindo para o bem eterno.

Por isso mesmo, o Mestre foi claro em sua afirmação.

Que nossa atividade, dentro da vida, produza muita fruto de paz e sabedoria, amor e esperança, fé e alegria, justiça e misericórdia, em trabalho pessoal digno e constante, porquanto, somente assim o Pai será por nós glorificado e só condição seremos discípulos do Mestre Crucificado e Redivivo.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

terça-feira, 5 de novembro de 2024

Cecília e a Crônica

Embora só tardiamente Cecília Meireles viesse a publicar em livro as primeiras crônicas, era longa sua prática do gênero. Por mais de trinta anos, com breves intervalos, escreveu prosa circunstancial, de glosa ao cotidiano, com tal versatilidade, que poucos de nossos escritores poderiam mostra, no gênero, igual desembaraço. Do jornalismo, que exerceu, pelos anos de 30 e 40, na constância do dia a dia, lhe adveio a tarimba necessária à pronta manipulação do assunto, a habilidade no recorte do insólito, o registro do grotesco ou a graça da matização irônica. Primeiro no Diário de Notícias, depois em A Nação e A Manhã, sua pena se afina pelo exercício permanente. A "Página de Educação" lhe recolhe, no primeiro jornal, a coluna cotidiana - "Comentário" -, onde, no entusiasmo pelas novas ideias pedagógicas, treina o estilo polêmico, defendendo a influência da arte na educação, pregando a laicização da escola, criticando indecisões da política do governo ou ironizando a incapacidade de ministros relutantes. E entre uma e outra invertida, entre alusões zombeteiras, o comentário às gentes, às coisas, às datas, numa exploração oportuna da matéria cotidiana.

A partir de 1950, embora sem a obrigatoriedade do dia a dia que caracterizara seu trabalho naqueles jornais, é constante a presença de Cecília Meireles na imprensa brasileira. No Rio de Janeiro, é ainda o Diário de Notícias que lhe publica os comentários de viagens pelo mundo afora; em São Paulo, Minas Gerais e Sul do país, distribuem-se suas crônicas por numerosos periódicos, numa atividade que surpreende a quantos só venham a conhecer a Cecília cronista num primeiro livro tardio e publicado em coautoria. Por curiosa singularidade, as crônicas de Quadrante viriam não do jornal, em que Cecília iniciara um processo de comunicação mais ampla, mas do rádio, onde o processo termina.

Da colaboração escrita para programas radiofônicos nas emissoras Rádio Ministério da Educação e Cultura e Rádio Roquette Pinto nos primeiros anos de 60, se formou a bibliografia de Cecília Meireles como cronista: Quadrante (1962), Quadrante II, Escolha o seu sonho (1964), Vozes da cidade (1965) e Inéditos (1968). Os três primeiros títulos saíram ainda em vida da autora e a ela se deve a seleção das peças que publicou; os dois últimos são obras factícias, em parte (Vozes da cidade, pelo que toca a Cecília) e no todo (Inéditos, que, como os dois que o antecedem, inclui uma ou outra peça já publicada). O primeiro, o segundo e o quarto livros reúnem crônicas de diversos autores e reproduzem, na sua titulação, o nome dos programas radiofônicos em que se leram os respectivos textos. Só o título de Escolha o seu sonho foi dado pela autora.

A conveniência de que se reeditassem as crônicas de Inéditos favoreceu a reformulação do livro. Assim, juntaram-se-lhe os escritos incluídos em obras coletivas e desfez-se a imprecisão do título substituindo-se ele por Ilusões do Mundo, que, provindo de uma das crônicas, atende ao clima geral da obra e à concepção ceciliana do mundo como sonho, matéria de ilusão.

Registro do mundo circundante, a crônica de Cecília Meireles é também uma projeção de sua alma no universo das coisas. Alimenta-se da referencialidade, das coisas concretas, de fatos e situações que envolvem o ser humano em seu comércio diário, mas matiza subjetivamente tudo isso. No comentário da vida e suas situações risíveis ou pungentes, de entusiasmo ou revolta, tem sempre Cecília Meireles uma ironia sem travo ou uma ternura sem excesso, mas que sentimos morna e brotada de uma aceitação maior do mundo e seus desconcertos e do pobre ser humano que se esforça nos labirintos da vida.


Nota editorial escrita por Darcy Damasceno e retirada do livro Ilusões do Mundo, de Cecília Meireles, Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1976.

domingo, 3 de novembro de 2024

Conhecem?

Eu não sei que mania se meteu na nossa cabeça moderna de que todas as dificuldades da sociedade se podem obviar mediante a promulgação de um regulamento executado mais ou menos pela coação autoritária de representantes do governo.

Nesse caso de criados, o fato é por demais eloquente e pernicioso.

Por que regulamentar-se o exercício da profissão de criado? Por que obrigá-los a uma inscrição dolorosa nos registros oficiais, para tornar ainda mais dolorosa a sua situação dolorosa?

Por quê?

Porque pode acontecer que sejam metidos nas casas dos ricos ladrões ou ladras; porque pode acontecer que o criado, um dado dia, não queira mais fazer o serviço e se vá embora.

Não há outras justificativas senão estas, e são bem tolas.

Os criados sempre fizeram parte da família: é concepção e sentimento que passaram de Roma para a nobreza feudal e as suas relações com os patrões só podem ser reguladas entre eles.

A Revolução aniquilando a organização da família feudal, trouxe à tona essa questão da famulagem; mas mesmo assim, ela não rompeu o quadro familiar de modo a impedir que os seus chefes regulem a admissão de estranhos no lar.

A obrigação do dono ou dona de casa que procura um criado, que o põe debaixo do seu teto, é saber quem ele é; o resto não passa de opressão do governo sobre os humildes, para servir à comodidade burguesa.

Querem fazer das nossas vidas, dos indivíduos, das almas, uma gaveta de fichas. Cada um tem que ter a sua e, para obtê-la, pagar emolumentos, vencer a ronha burocrática, lidar com funcionário arrogantes e invisíveis, como em geral, são os da polícia.

Imagino-me amanhã na mais dura miséria, sem parentes, sem amigos. Sonho fazer-me esquivo e bato à primeira porta. Seria aceito, mas é preciso a ficha..

Vou buscar a ficha e a ficha custa vinte ou trinta mil-réis. Como arranjá-los?

Eis aí as raízes da regulamentação, desse exagero de legislar, que é o característico da nossa época.

Toda a gente sabe a que doloroso resultado tem chegado semelhante mania.

Inscrito um tipo nisto ou naquilo, ele está condenado a não sair dali, a ficar na casta ou na classe, sem remissão nem agravo.

Deixemos esse negócio entre patrões e criados, e não estejamos aqui a sobrecarregar a vida dos desgraçados com exigências e regulamentos que os condenarão toda a sua vida à sua lamentável desgraça.

Os senhores conhecem a regulamentação da prostituição em Paris? Os senhores conhecem o caso de Mme. Comte? Oh! meu Deus!


Vida Urbana, 15-1-1915. Conto de Lima Barreto retirado do livro Crônicas Escolhidas, Editora Ática, São Paulo, 1995.

Como é?

Noticiaram os jornais que a polícia prendeu dois vadios e, de acordo com as leis e o código, processou-os por vadiagem.

Até aí a coisa não tem grande importância. Em toda a sociedade, há de haver por força vadios.

Uns, por doença nativa; outros, por vício.

Tem havido até vadios bem notáveis.

Dante foi um pouco vagabundo; Camões, idem; Bocage também; e muitos outros que figuram nos dicionários biográficos e têm estátua na praça pública.

Não vem, tudo isto ao caso; mas uma ideia puxa outra...

O que há de curioso no caso de polícia de que vos falei, é que os tais vadios logo se prontificaram a prestar fiança de quinhentos-réis, cada um, para se defenderem soltos. Como é isto? Vagabundos possuidores de tão importante quantia? Há muito homem morigerado e trabalhador, por aí, que nunca viu tal dinheiro.

Deve haver engano, por força.

De resto, se não o há, sou de parecer que a tal lei está mal feita.

O legislador nunca devia admitir que vadios, homens que nada fazem, portanto, não ganham, pudessem dispor de dinheiro, e dinheiro grosso, para se afiançarem.

Ou eles o têm e obtiveram-no por meios e, portanto, não são vadios; ou, tendo-o e não trabalhando, são coisas muito diferentes de simples vadios.

Quem cabras não tem e cabritos vende...

Não sou, pois, bacharel, jurista, nem rábula e fico aqui.


Crônica de Lima Barreto retirada do livro Crônicas Escolhidas, Editora Ática, 1995. Sem data da publicação original.

sábado, 2 de novembro de 2024

6. O Português tem uma incrível unidade no Brasil

Unidade linguística é mito, embora tendamos a ver a Língua (e cada variedade dela - as de prestígio e as estigmatizadas) como um todo homogêneo. Fazer isso depende de admitir, de saída, a estabilidade e a coesão dos grupos que as adotam. Mas nunca há comunidade homogênea. O mito é de natureza autoritária: supõe que vivemos numa sociedade uniforme, dotada de poucos grupos étnicos, sem desequilíbrios hierárquicos e regionais de relevo, sem confrontos ou afetos. Mas a interação brasileira se realiza antes sob a sombra nem sempre perceptível das relações de hierarquia e da desigualdade social. Sendo híbridos, somos um país mestiço de relações sociais desiguais e um histórico de violência contra povos nativos e africanos.


Mitos Ideológicos, 100 Mitos, texto de John Robert Schmitz retirado da revista Língua Portuguesa, Ano 9, número 100, Fevereiro de 2014, Editora Segmento, São Paulo. O autor é norte-americano radicado no Brasil. É professor do Departamento de Linguística Aplicada, no Instituto de Estudos da Linguagem na Unicamp.

5. O Brasil tem uma só Língua

Fora as Línguas de fronteira, as quilombolas e as variantes de estrangeiras, como o alemão e o italiano, o Brasil tem ao menos 180 Línguas Indígenas, entre 225 etnias. Pouco, em relação ao passado. Estima-se que, em 1500, falavam-se 1078 Línguas no país. Boa parte dos idiomas sobreviventes está ameaçada - mais da metade (110) é falada por menos de 500 pessoas.


Mitos Ideológicos, 100 Mitos, texto de John Robert Schmitz retirado da revista Língua Portuguesa, Ano 9, número 100, Fevereiro de 2014, Editora Segmento, São Paulo. O autor é norte-americano radicado no Brasil. É professor do Departamento de Linguística Aplicada, no Instituto de Estudos da Linguagem na Unicamp.

Tenhamos Fé (44)

 "... vou preparar-vos lugar." - Jesus. (JOÃO, 14:2.)


Sabia o mestre que, até à construção do Reino Divino na Terra, quantos o acompanhassem viveriam na condição de desajustados, trabalhando no progresso de todas as criaturas, todavia, "sem lugar" adequado aos sublimes ideais que entesouram.

Efetivamente, o cristão leal, em toda parte, raramente recebe o respeito que lhe é devido:

Por destoar, quase sempre, da coletividade, ainda não completamente cristianizada, sofre a descaridosa opinião de muitos.

Se exercita a humildade, é tido à conta de covarde.

Se adota a vida simples, é acusado pelo delito de relaxamento.

Se busca ser bondoso, é categorizado por tolo.

Se administra dignamente, é julgado orgulhoso.

Se obedece quanto é justo, é considerado servil.

Se usa a tolerância, é visto por incompreensível.

Se mobiliza a energia, é conhecido por cruel.

Se trabalha, devotado, é interpretado por vaidoso.

Se procura melhorar-se, assumindo responsabilidade no esforço intensivo nas boas obras ou das preleções consoladoras, é indicado por fingido.

Se tenta ajudar ao próximo, abeirando-se da multidão, muitas vezes é tachado de personalista e oportunista, atento aos interesse próprios.

Apesar de semelhantes conflitos, porém, prossigamos agindo e servindo, em nome do Senhor.

Reconhecendo que o domicílio de seus seguidores não se ergue sobre o chão do mundo, prometeu Jesus que lhes prepararia lugar no vida mais alta.

Continuemos, pois, trabalhando com duplicado fervor na sementeira do bem, à maneira de servidores provisoriamente distanciados do verdadeiro lar.

"Há muitas moradas na Casa do Pai."

E o Cristo segue servindo, adiante de nós.

Tenhamos fé.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Afrodite e Adônis

 O mito de Adônis tem origem oriental e deriva de "Adonai", denominação bíblica do velho testamento que designa Deus. Afrodite zangou-se com uma jovem virgem chamada Mirra, filha do rei da Assíria, Téias, que não lhe rendia culto, e resolveu vingar-se. Inspirou-lhe então uma paixão irresistível pelo próprio pai, e Mirra, graças à cumplicidade de sua ama, pôde durante doze noites satisfazer seu incesto. Mas quando seu pai descobriu que involuntariamente deitou com a própria filha, desembainhou a espada para matá-la. Esta, suplicando aos deuses, pediu que a fizessem desaparecer. Ela foi então metamorfoseada em uma árvore, que tem até hoje o nome de mirra.

Passados dez meses, a árvore entreabriu-se e dela nasceu um menino. Sua fulgurante beleza cativou Afrodite que, para subtraí-lo da vista de todos, encerrou-o num baú que confiou à juíza infernal, Perséfone. Deu-lhe a recomendação de que o guardasse no mundo subterrâneo do Hades até que crescesse, quando então retornaria para buscá-lo. No entanto, à medida que o menino crescia, sua beleza mais e mais aumentava, a tal ponto que a própria Perséfone enamorou-se dele. Quando Afrodite foi buscá-lo, Perséfone não quis devolvê-lo, criando-se uma disputa entre as duas deusas pelo belo Adônis. Resolveram então chamar seu próprio pai, o grande Zeus, para resolver a contenda. Segundo Apolodoro de Atenas, o senhor do Olimpo resolveu dividir o ano em três partes e disse: "Uma parte será de Perséfone, a outra de Afrodite e a última será de livre uso de Adônis". Mas o belo jovem decidiu então presentear essa parte que lhe cabia  para a deusa Afrodite. E aqui vemos um mito cujo significado é completamente oposto do mito de Narciso, pois aqui a beleza não só é entregue, como também a parte que poderia ficar livre e sem destino é entregue à deusa do amor. Assim, Adônis não apenas obedece, mas consagra a lei de Afrodite que reza: "O belo foi feito para ser dado, como também o amor; aquele que os guarda para si, considerarei traidor". A  mensagem aplica-se tanto ontem como hoje, uma vez que podemos dizer que o narcisismo (o excessivo amor por si mesmo) é um dos males de nossa era, que se alia ao individualismo, provocando os estragos nas relações humanas que tão bem conhecemos. 

Voltando ao mito, o belo efebo apaixonou-se também pela caça e, apesar das advertências de Afrodite, não desistia de seus perigos. O deus Ares, que também amava Afrodite, sentiu-se enciumado com a atenção que o jovem recebia da bela deusa e decidiu vingar-se. Um dia, quando caçava na floresta, Adônis deparou-se com um enfurecido javali, que não era senão o próprio deus Ares disfarçado. Inadvertidamente, tentou enfrentar o animal e foi mortalmente atingido por ele. Os pássaros da floresta presenciaram o ataque fatal e correram a alertar Afrodite do que acontecera. Ela imediatamente acudiu em socorro de Adônis, mas na pressa esqueceu de calçar as sandálias e feriu os pés nos espinhos de uma roseira. Imediatamente elas se tingiram com o sangue de Afrodite, tornando-se para sempre vermelhas, e não mais brancas, como eram originalmente. A deus ainda teve tempo de colher algumas para levá-las ao belo Adônis, mas quando chegou, ele já agonizava. Dizem ainda que das lágrimas de Afrodite sobre o corpo de Adônis nasceram as anêmonas. Vemos aí a  razão por que, desde tempos imemoriais, as rosas vermelhas são o símbolo da paixão ardente, sendo que na antiguidade só era permitido ofertá-las a alguém intensamente amado.

Adônis tornou-se, na antiguidade, objeto de grande culto e em sua honra eram celebradas pelas mulheres grandes festas e jogos que ficaram conhecidos como "As Adonias". Plutarco conta que nessa ocasião "as mulheres atenienses expunham em público simulacros dos mortos que enterravam, batiam no peito e, imitando os funerais, acompanhavam essas cerimônias com canto fúnebre". A seguir, tinha lugar a festa da ressurreição de Adônis. Teócrito conta, em seu décimo quinto idílio, como a festa era organizada em honra a Adônis, em Alexandria, por Arsinoe, mulher de Ptolomeu Filadelfo, rei do Egito nessa ocasião. Eisa transcrição de pequeno trecho: "Aqui em torno de Adônis temos reunidos os mais belos frutos, os mais belos vasos adornados e os mais perfumados óleos da Síria. Tudo para a glória e ressurreição de Adônis".

O significado dessas festas e dos jogos consagrados a esse belo jovem pelas mulheres tinha a intenção de reviver o amor de Afrodite pelo belo e ensinar que todos deveríamos imitá-la. Sua ressurreição simbolizava que o amor e o belo nunca morrem, mas que é de nossa responsabilidade mantê-los vivos, mesmo que isso seja (e é) um risco.

Finalmente, vale notar que o fato de seu nome derivar da palavra "deus" em acadiano (idioma em que a Bíblia foi originalmente escrita) revela seu significado arcaico, ou seja, "paixão". É que, antes do massacre, que a tradição judaico-cristã-islâmica perpetrou com seu falso moralismo, deus, amor e paixão significavam a mesma coisa.


Retirado do livro Mitologia Viva - Aprendendo com os deuses a arte de viver e amar, de Viktor D. Salis, Editora Nova Alexandria, São Paulo, 2003.

terça-feira, 29 de outubro de 2024

Trechos da Introdução ao Mito dos Heróis

A etimologia, a origem e a estrutura ontológica de herói ainda não estão muito claras. Talvez se possa falar com certa desenvoltura acerca de "suas funções" e, assim mesmo, tomando-se como ponto de partida sobretudo a Grécia. É claro que todas as culturas primitivas e modernas tiveram e têm seus heróis, mas foi particularmente na Hélade que a "estrutura", as funções e o prestígio religioso do herói ficaram bem definidos e, como acentua Mircea Eliade, "apenas na Grécia os heróis desfrutaram um prestígio religioso considerável, alimentaram a imaginação e a reflexão, suscitaram a criatividade literária e artística".

Etimologicamente, heros talvez se pudesse aproximar do indo-europeu servã, da raiz ser-, de que provém o avéstico haurvaiti, "ele guarda" e o latim seruãre, "conservar, defender, guardar, velar sobre, ser útil", donde herói seria o "guardião, o defensor, o que nasceu para servir".

(...)

Em sua obra clássica sobre os heróis, Gli Eroi Greci, já por nós citada mais de uma vez, Angelo Brelich, após observar que, numa religião tão plástica como a grega, embora exista uma diferença muito grande entre um herói e outro, o que se deve ao "princípio informador de uma religião politeísta que tende a diferenciar e a fixar em formas plásticas suas múltiplas experiências e exigências", chega à conclusão de que é possível, mutatis mutandis, traçar um retrato do herói grego. Para o pesquisador italiano assim poderia ser descrita a estrutura morfológica dos heróis: "virtualmente, todo herói é uma personagem, cuja morte apresenta um relevo particular e que tem relações estreitas com o combate, com a agonística, a arte divinatória e a medicina, com a iniciação da puberdade e os mistérios; é fundador de cidades e seu culto possui um caráter cívico; o herói é, além do mais, ancestral de grupos consanguíneos e representante prototípico de certas atividades humanas fundamentais e primordiais. Todas essas características demonstram sua natureza sobre-humana, enquanto, de outro lado, a personagem pode aparecer como um ser monstruoso, como gigante ou anão, teriomorfo ou andrógino, fálico, sexualmente anormal ou impotente, voltado para a violência sanguinária, a loucura, a astúcia, o furto, o sacrilégio e para a transgressão dos limites e medidas que os deuses não permitem sejam ultrapassadas pelos mortais. E, embora o herói possua uma descendência privilegiada e sobre-humana, se bem que marcada pelo signo da ilegalidade, sua carreira, por isso mesmo, desde o início, é ameaçada por situações críticas. Assim, após alcançar o vértice do triunfo com a superação de provas extraordinárias, após núpcias e conquistas memoráveis, em razão mesmo de suas imperfeições congênitas e descomedimentos, o herói está condenado ao fracasso e a um fim trágico.

Mircea Eliade remata o magnífico retrato do herói, traçado por Brelich, com as seguintes palavras: "Utilizando uma fórmula sumária, poderíamos dizer que os heróis gregos compartilham uma modalidade existencial sui generis (sobre-humana, mas não divina) e atuam numa época primordial, precisamente aquela que acompanha a cosmogonia e o triunfo de Zeus. A sua atividade se desenrola depois do aparecimento dos homens, mas num período dos 'começos', quando as estruturas não estavam definitivamente fixadas e as normas ainda não tinham sido suficientemente estabelecidas. O seu próprio modo de ser revela o caráter inacabado e contraditório do tempo das 'origens'..."

Como se pode observar, tanto Angelo Brelich quanto Mircea Eliade traçam apenas a "estrutura morfológica" do herói, mas evitam opinar claramente sobre a origem do mesmo. E como estávamos falando exatamente acerca de sua gênese, é necessário, para concluir, voltar a ela.

(...)

Não seria mais simples dizer que o herói, seja ele de procedência mítica ou histórica, seja ele de ontem ou de hoje, é simplesmente um arquétipo que "nasceu" para suprir muitas de nossas deficiências psíquicas? De outra maneira, como se poderia explicar a similitude estrutural de heróis de tantas culturas primitivas que, comprovadamente, nenhum contato mútuo e direto mantiveram entre si? Da Babilônia às tribos africanas; dos índios norte-americanos aos gregos; dos gauleses aos incas peruanos, todos os heróis, descontados fatores locais, sociais e culturais, têm um mesmo perfil e se encaixam num modelo exemplar.

Otto Rank tentou mesmo formular um esquema do que ele denominou a lenda-padrão do herói. Vamos imitá-lo ou até mesmo transcrevê-lo, fazendo-lhe, no entanto, algumas achegas ou podando-o naquilo que nos parece supérfluo. Consoante Rank, o herói descende de ancestrais famosos ou de pais da mais alta nobreza: habitualmente é filho de um rei. Seu nascimento é precedido por muita dificuldades, tais como a continência ou a esterilidade prolongada, o coito secreto dos pais, devido à proibição ou ameaça de um Oráculo, ou ainda por outros obstáculos, como o castigo que pesa sobre a família. Durante a gravidez ou mesmo anterior à mesma, surge uma profecia, sob forma de sonho ou de oráculo, que adverte acerca do perigo do nascimento da criança, uma vez que esta põe em perigo a vida do pai ou de seu representante. Via de regra, o menino é exposto num monte ou num "recipiente", cesto, pote, urna, barco, é abandonado nas águas, as mais das vezes, do mar. É recolhido e salvo por pessoas humildes: pastor, pescador, ou por animais e é amamentado por uma fêmea de algum animal, ursa, loba, cabra... ou ainda por uma mulher de condição modesta. Transcorrida a infância, durante a qual o adolescente, não raro, dá mostras de sua condição e natureza superiores, o "futuro herói" acaba descobrindo, e aqui as circunstâncias variam muito, sua origem nobre. Retorna à sua tribo ou a seu reino, após façanhas memoráveis, vinga-se do pai, do tio ou do avô, casa-se com uma princesa e consegue o reconhecimento de seus méritos, alcançando, finalmente, o posto e as honras a que tem direito. Mas, após tantas lutas, o fim do herói é comumente trágico. A grande glória lhe será reservada post mortem. Diga-se, de caminho, que, para Rank, o mito do herói é uma projeção da "novela familiar": a neurose infantil "estancada", a luta do menino contra o pai e suas tentativas de libertar-se de seus genitores: "Na medida em que dispomos dos elementos mencionados acima, passa a ter fundamento nossa analogia do 'eu' do menino com o herói do mito, em virtude das tendências coincidentes entre as novelas familiares e os mitos heroicos, uma vez que o mito revela, ao longo de todo o seu desenvolvimento, um esforço por libertar-se dos pais e esse mesmo desejo se depreende das fantasias individuais do menino, quando busca sua emancipação. Nesse sentido o 'eu' do menino se comporta como o herói do mito e, na realidade, o herói deve ser interpretado sempre como um 'eu' coletivo, dotado de todas as excelências". E mais adiante, remata o estudioso austríaco: "Na realidade, os mitos dos heróis equivalem, em função de muitas de suas características essenciais, às ideias delirantes de alguns psicólogos, que sofrem de delírios de perseguição e grandeza, isto é, os paranoicos. Seu sistema está construído de forma muito semelhante ao mito do herói, revelando assim os mesmos temas psicológicos que a novela familiar do neurótico.

Em todo caso, as portas da pesquisa e das conclusões continuam abertas, até mesmo para os heróis...


Texto de Junito de Souza Brandão retirado do Volume 3 da Mitologia Grega, 13ª Edição, Editora Vozes, Petrópolis, 2005.