Eu não sei que mania se meteu na nossa cabeça moderna de que todas as dificuldades da sociedade se podem obviar mediante a promulgação de um regulamento executado mais ou menos pela coação autoritária de representantes do governo.
Nesse caso de criados, o fato é por demais eloquente e pernicioso.
Por que regulamentar-se o exercício da profissão de criado? Por que obrigá-los a uma inscrição dolorosa nos registros oficiais, para tornar ainda mais dolorosa a sua situação dolorosa?
Por quê?
Porque pode acontecer que sejam metidos nas casas dos ricos ladrões ou ladras; porque pode acontecer que o criado, um dado dia, não queira mais fazer o serviço e se vá embora.
Não há outras justificativas senão estas, e são bem tolas.
Os criados sempre fizeram parte da família: é concepção e sentimento que passaram de Roma para a nobreza feudal e as suas relações com os patrões só podem ser reguladas entre eles.
A Revolução aniquilando a organização da família feudal, trouxe à tona essa questão da famulagem; mas mesmo assim, ela não rompeu o quadro familiar de modo a impedir que os seus chefes regulem a admissão de estranhos no lar.
A obrigação do dono ou dona de casa que procura um criado, que o põe debaixo do seu teto, é saber quem ele é; o resto não passa de opressão do governo sobre os humildes, para servir à comodidade burguesa.
Querem fazer das nossas vidas, dos indivíduos, das almas, uma gaveta de fichas. Cada um tem que ter a sua e, para obtê-la, pagar emolumentos, vencer a ronha burocrática, lidar com funcionário arrogantes e invisíveis, como em geral, são os da polícia.
Imagino-me amanhã na mais dura miséria, sem parentes, sem amigos. Sonho fazer-me esquivo e bato à primeira porta. Seria aceito, mas é preciso a ficha..
Vou buscar a ficha e a ficha custa vinte ou trinta mil-réis. Como arranjá-los?
Eis aí as raízes da regulamentação, desse exagero de legislar, que é o característico da nossa época.
Toda a gente sabe a que doloroso resultado tem chegado semelhante mania.
Inscrito um tipo nisto ou naquilo, ele está condenado a não sair dali, a ficar na casta ou na classe, sem remissão nem agravo.
Deixemos esse negócio entre patrões e criados, e não estejamos aqui a sobrecarregar a vida dos desgraçados com exigências e regulamentos que os condenarão toda a sua vida à sua lamentável desgraça.
Os senhores conhecem a regulamentação da prostituição em Paris? Os senhores conhecem o caso de Mme. Comte? Oh! meu Deus!
Vida Urbana, 15-1-1915. Conto de Lima Barreto retirado do livro Crônicas Escolhidas, Editora Ática, São Paulo, 1995.
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