terça-feira, 26 de novembro de 2024

O Receptivo

Uma vez Gil me disse que havia jogado o I Ching fazendo a seguinte pergunta: "O que eu sou, afinal?" A resposta do oráculo recaiu no hexagrama número dois, todo formado de linhas abertas - "O Receptivo", que tem como imagem "a terra" e como atributo "a devoção".

A nitidez daquilo me impressionou, por ser tão próximo da forma como o reconheço, como o reconhecem, como vários que ele próprio se reconhece. Talvez isso seja o que seja ser alguma coisa - o ponto onde todos esses olhares convergem.

Na verdade, a questão parecia se referir ao mais íntimo de seu íntimo. Mas em Gil isso não difere em nada da maneira como ele soa publicamente, de forma explícita, a cada canção, a cada verso de cada canção, a cada palavra de cada verso ou declaração; em cada palco, acorde, atitude.

Gil é o receptivo. Luz onde as sombras se assentam, e que lhes dá contorno. Clareza que abraça o mistério sem temor. O maleável. "Transcorrendo, transformando, tempo e espaço navegando todos os sentidos." A natureza, o princípio feminino ("a porção melhor que trago em mim agora"), o que recebe.

É assim que as palavras se articulam nos encadeamentos rítmicos, melódicos, semânticos de suas canções. O "abacateiro" que atrai "acataremos"; "bárbara bela que se torna "barbarela", ali onde Jeca Total vê Gabriela; o vermelho da rosa no sorvete; o sonho e o fim do sonho ao mesmo tempo dissolvendo a noite e a pílula, da "boca do dia" à "barriga de Maria"; a "dura caminhada" na "cama de tatame"; o "baú de prata" porque "prata é a luz do luar"; o "adeus" se dirigindo à "deusa", com o deslocamento cinematográfico do "a"; o tempo que vai e onde vai dar, menina, do perpétuo socorrei.

Tudo parece fazer sentido na medida em que deixa o sentido se fazer. O casual aberto ao intencional aberto ao casual, como círculos concêntricos se expandindo a partir da pedra, atirada com mira sobre a água sem alvo. Água cristalina não porque reflete, mas porque corre. Onde a limpidez do sentido vem de sua adequação ao ritmo, à linha melódica; clareza vindo da fluência. Cadência.

Como a letra de "Batmacumba" (parceria com Caetano), que condensa tantos significados enquanto parece estar apenas traduzindo onomatopaicamente a batida do tambor. Ali onde fala da tribo também faz dançar.

Gil deixa que as palavras se digam, se liguem umas às outras, imantadas pela música, para dizer o que ele tem a dizer.

Que baixe o santo, que a musa cante, que o vento sopre, que desça a inspiração, que se creia na ideia de inspiração. Que se cumpra o pedido da "deusa música", e se deixe "derramar o bálsamo, fazer o canto, cantar o cantar". Que o destino e a vontade, ação e inação, coincidam, colidam no mesmo gesto. "Mesmo porque tudo sempre acaba sendo o que era de se esperar." Que haja fé, sem esforço, pois nenhum esforço possível pode gerar a fé. Que a raiz seja a antena e o cesto a parabólica. Que descobrir seja inventar e que a meta dessa "metade do infinito" seja "simplesmente metáfora".

Essa entrega, esse espírito aberto ao mundo, essa leitura pessoal da exigência de cada circunstância e sua transformação em autoexigência, como traço da personalidade de Gil, acabaram se traduzindo, sem paradoxo, em intervenção radical, convicta, afirmativa das questões que foram compondo seu ideário. Gil teve sempre a coragem de dizer as coisas em que acreditava nos momentos precisos. Seja ao cantar "miserere nobis", ou "o melhor lugar do mundo é aqui e agora", ou "manda descer para ver Filhos de Gandhi"; ou "quanto mais purpurina, melhor"; ou ainda "sou um punk da periferia", assim na primeira pessoa - tocando pontos nevrálgicos de contextos muitas vezes adversos, aos quais  respondeu com integridade e paciência. "Eu não sou essa quietude, eu sou a minha quietude, não a deles", afirmava ele em 1979, em entrevista ao Folhetim.

Sua quietude inquieta deu conta de abordar e abraçar, com lucidez visionária, questões tão diversas como a contracultura, o sincretismo religioso, a negritude, a valorização da informação cultural africana e oriental entre nós, a ecologia, a política, a tecnologia, o carnaval, a macrobiótica, a cultura pop, a ciência, a meditação, as relações familiares, as relações de amor e amizade, as relações sociais, as relações de trabalho, a ancestralidade, o mundo moderno e a consciência primitiva - em formas que transitam livremente entre o baião, o funk, o rock, o afoxé, o samba, o reggae etc. e ao mesmo tempo sem ser nada disso; cumprindo apenas o sotaque particularíssimo de seu violão.

É assim que Gil foi construindo seu nicho de linguagem. Seria pouco apontar o quanto a moderna música popular do Brasil deve a ele tudo que conquistou em termos de construção, acabamento, atitude. Melhor notar o quanto nele se aprofundou a afinidade com a natureza da própria música. Pois não há como não pensar que essa reverência é uma condição dela; que a relação de qualquer um com a música é a de um ser receptivo. E por isso Gil é esse banho, essa aula, essa tradição viva; não pelo que fez, mas pelo que faz. Pela capacidade de manter potente sua linguagem, atualizando fisicamente o passado, a cada nova onda que ele espraia de seu convés, até banhar nossos pés, na praia.


Texto de Arnaldo Antunes retirado do livro Gilberto Gil Todas as Letras, organização de Carlos Rennó, Companhia das Letras, São Paulo, 2003.

Nenhum comentário:

Postar um comentário