quarta-feira, 20 de novembro de 2024

O Capitão-Mor

O capitão-mor, mestre-de-campo, tinha desaparecido, misteriosamente, da cidade. Ninguém sabia dele, nem para onde tinha ido, era o zunzum das ruas. Foi visto pela última vez atravessando a ponte do Carmo...

Corria qualquer coisa... Visitas fora de hora a uma casada, de marido fero que sempre andava por longe, mineirando seu ouro, recoveiro, com suas bestas carregando ouro alheio.

Tinha seguido em diligência para os fortes de Mato Grosso - diziam. O Quartel achou mais prudente aquietar com o caso. Família ele não tinha aqui, nem mesmo parente ou aderente. Falavam que sua gente era da Bahia, mas ele mesmo tinha vindo foi de Cuiabá.

Desapareceu inesperadamente, metido na sua farda. Algum crime?... Alguma vingança?... Alguma emboscada?... Coisas difíceis de apurar naquele tempo, com a cidade rodeada de bugres e quilombos negros por toda parte. Algum índio mancomunado com um escravo devia ter tramado a perdição dele. Fuga... Seria impossível. Suicídio... Sempre se acharia o corpo. Monte violenta? Deixaria um rastro, uma pista.

Passado o tempo regimental da espera, dentro e fora de Vila Boa, foi dada no livro competente de Folhas e Baixas do Quartel-Mor da Cavalaria Real a seguinte nota:

"Obs: capitão-mor, mestre-de-campo: Aleixino Teotônio Tordovil Durado - Desapareceu deste Regimento, no dia 29 de julho de 1789, vestido com seu fardamento de 1º uniforme. Inculcas infrutuosas".

Com pouco mais o caso estava esquecido e o quartel mesmo punha pedra em cima. Era melhor que ninguém mais falasse naquilo. E ninguém mais falou.

O capitão passou para muitos ter voltado para Cuiabá. Pessoa vinda dali afirmara mesmo ter estado com ele em Coxim.

Não houve pai nem mãe, nem mulher, filho, irmão, amigo ou parente que procurasse por ele, que pedisse notícias. Os anos se passaram. A corporação militar a que ele pertencia passou por reformas várias e acabou desaparecendo. E o quartel mesmo teve outro destino. As gerações que vieram depois nunca mais ouviram falar do capitão sumido. Quando, por acaso, se tocava no assunto, este era tido como lenda, contada pelos antigos e se concluía por sua volta para Cuiabá, numa missão secreta de alçada. Mensagens ásperas trocadas entre altos magistrados, a propósito de doze arrobas de ouro que a Casa da Fundição de Vila Boa devia entregar anualmente, por Carta Régia, para o Provedor das Casas dos Quintos daquela cidade, atendendo a deficiência de suas  residas. Era sempre o capitão-mor a pessoas indicada para portar essas epístolas, pesadas de obreias e nem sempre amistosas, onde turravam cheios de reverências, à moda antiga, e a propósito de arrobas de ouro, o senhor Ouvidor das minas de Vila Boa e o seu colega, o ouvidor das minas de Cuiabá.

Um século mais tarde, na Cidade de Goiás, na antiga Rua Joaquim Rodrigues, depois 13 de Maio, atualmente Joaquim de Bastos, quando foram desmanchar a parede interna de uma casa velha para suprimir uma alcova escura e alargar uma sala pequena, acharam, dentro do paredão demolido, numa estacada de aroeira, duas tíbias, ligadas a um torno com pedaços de correntes com os braços algemados para trás e uma mordaça de ferro metida entre os maxilares quebrados, um esqueleto de homem, ainda com pedaços de farda, restos de galão e dragonas de canutão. Do antigo oficial-mor, graduado.


Crônica de Cora Coralina, pseudônimo de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, retirado do livro O Tesouro da Casa Velha, Global Editora, São Paulo, 1989.

Nenhum comentário:

Postar um comentário