06 novembro 2025

Introdução (do livro Sob a Sombra de Saturno)

Este livro se baseia na explanação apresentada no Centro Jung da Filadélfia, em abril de 1992. Explanação que já não era sem tempo. Evitara pessoalmente o tema durante toda uma década, embora o sofrimento, as aspirações e a cura dos homens ocupassem pouco a pouco meu tempo como analista junguiano.

Doze anos atrás, a proporção dos meus clientes era de nove mulheres para cada homem. Atualmente, a maioria dos meus clientes é do sexo masculino e a proporção é de seis homens para quatro mulheres. Acredito que a mudança também tenha ocorrido no consultório de outros terapeutas, e as razões para isso contribuíram igualmente à ascensão do movimento masculino. Evitara o tema porque muita coisa parecia em andamento. Na melhor das hipóteses, via o trabalho maciço de purificação acadêmica e emocional, e na pior, uma fenômeno pop-psíquico que eu considerava repugnante.

Preocupo-me muito com a cura e a transformação das pessoas, trabalho este em geral tão intenso, tão profundamente pessoal, que amiúde é fácil esquecer o mundo mais amplo e os grandes problemas sociais dos quais todos participamos e pelos quais somos todos feridos. Tornou-se, porém, cada vez mais claro para mim que as histórias de cada homem coincidiam de fato e apresentavam temas constantes. À semelhança do que as mulheres aprenderam antes de nós, comecei a perceber que a experiência coletiva dos homens é também parte inevitável da sua história pessoal. A trama e urdidura da história privada e da mitologia pública incorpora-se à formação do caráter individual.

Hoje, é claro, já existem muitos livros excelentes a respeito de vários aspectos do dilema dos homens modernos. Recorrerei de vez em quando a eles neste livro, diretamente, conscientemente, e com gratidão.

Todos participamos da luta rumo à comunidade, e cada uma das nossas vozes tem timbre diferente. Não me proponho oferecer contribuição original à erudição masculina, mas, sim, tomar questões complexas e destilar, integrar e expressá-las através de termos que sejam compreendidos por muitos. Também recorro à experiência clínica dos homens da terapia. A eles sou igualmente grato por me permitirem o uso de seus casos.

O objetivo de Sob a sombra de Saturno, portanto, é oferecer uma visão sinótica das feridas e da cura dos homens, e ainda examinar a situação existente nesta última década do século.

Mas, sobretudo, devo uma confissão: evitei falar do assunto por anos e anos, não apenas porque as questões me pareciam em contínua transição, mas porque também eu tenho sofrido por viver sob a sombra de Saturno e nem sempre estou certo com relação à minha posição no relacionamento com minha natureza masculina. O destino quis que eu nascesse homem. Durante anos simplesmente tomei como certo esse acidente e suas consequências, achando mais assustador do que libertador a tentativa de um passo para fora dessa sombra.

Nas páginas que seguem, citarei de vez em quando exemplos autobiográficos, não para agradar a mim próprio e sim porque os considero típicos e representativos. Como observou o pintor Tony Berlant: "Quanto mais pessoal e introspectiva a obra de arte, mais universal se torna".

Ao focalizar as questões masculinas, não tenho a intenção de minimizar as feridas das mulheres. Nós, do sexo masculino, temos grande dívida de gratidão para com as mulheres, que se manifestaram, não apenas para expressar a própria dor dentro da nossa cultura sexista, mas também para tornar os homens mais livres para serem mais plenamente eles mesmos. Seu cri de couer ajudou os homens a examinar com mais consciência as próprias feridas, e em decorrência disso todos ficamos mais bem servidos. O exemplo das mulheres lutando para se libertar das sombras do coletivo confere coragem e torna necessário que os homens realizem o mesmo. A não ser que os homens consigam emergir das trevas, continuaremos a ferir tanto as mulheres quanto a nós próprios, e o mundo jamais será lugar seguro ou saudável. Este trabalho, portanto, não é apenas para nós, mas também para os que nos rodeiam.

Em meados do século passado, o teólogo dinamarquês Sören Kierkegaard observou que não podemos salvar nossa era, senão expressar a convicção de que ela está perecendo. As forças inconscientes, as instituições públicas e as ideologias que nos orientam a vida possuem um momento de inércia tal que não esperaríamos ocasionar rápida mudança na sociedade e no papel desempenhado pelos sexos. Não obstante, o primeiro requisito é que os homens se tornem conscientes do fato de se apresentarem cruelmente feridos. A inconsciência do trauma deles faz com que firam vezes a fio tanto a si próprios quanto às mulheres. Sempre pergunto que restaria às mulheres senão passar a odiarem os homens que as oprimem, e aos homens quase analogamente, odiarem e temerem-se uns os outros.

Este livro, portanto, recorre ao trabalho de muitas pessoas, a fim de conduzir cada homem a maior consciência e incentivar o diálogo que precisa desabrochar para a cura. Se as imagens que governam consciente e inconscientemente nossa vida só podem ser analisadas e resolvidas com o sofrimento particular e individual, a crescente capacidade dos homens de confessarem sua dor e sua raiva, de conversarem cada vez mais uns com os outros, também, ajudará a curar as feridas do mundo.

Convido o leitor, ou leitora, a se ver na jornada aqui descrita. No caso das mulheres, a descrição da luta com o complexo materno, por exemplo, será útil na compreensão da estranha ambivalência que parece afligir os homens em suas vidas. A jornada masculina tem muitas passagens, muitos perigos. Os rigores e as tarefas que identificamos são os mais prováveis de vivenciarmos. É falsa a ideia de que aquilo que desconhecemos não nos magoaria; na verdade, o que não conhecemos nos fere fundo, e à semelhança de Sansão conseguiríamos, então, deitar cegamente o templo por sobre nossas próprias cabeças.

Para que cada qual passe a ter mais consciência das transições e dos tormentos masculinos, sou obrigado a contar segredos masculinos. Revelo-os para que as mulheres entendam melhor o assunto. Alguns desses segredos talvez sejam novos para os próprios homens, embora duvide seriamente de que um único leitor do sexo masculino deste livro vá discordar de que aponte as feridas que ele tem carregado no seu coração solitário e assustado. Que não encerremos a ferida e o medo, ao menos acabemos com a solidão.

O título deste livro alude ao fato de tantos os homens quanto as mulheres padecerem sempre sob a pesada sombra das ideologias, umas conscientes, algumas herdadas da família e do grupo étnico, e outras ainda como parte da estrutura da história da nação e de seu chão mítico. Essa sombra representa o peso opressivo sobre a alma. Os homens padecem sob ela, com o espírito oprimido e definhado. A experiência dessa sombra opressiva é saturnina. As definições do que significa ser homem - os papéis e as expectativas masculinas, a competição e a animosidade, a humilhação e a desvalorização de muitas das melhores qualidades e capacidades dos homens - conduzem à esmagadora opressão. Esse fardo sempre esteve presente, porém hoje em dia os homens de coragem estão começando a questionar a necessidade de viver sob esse jugo.

Saturno era o deus romano da agricultura. Por um lado, na qualidade de deus da geração, ajudou a criar a antiga civilização romana; por outro, vinha associado a uma multidão de histórias obscuras e sangrentas. Sua encarnação grega primeva, Crono, nasceu  do princípio masculino Urano e do princípio Geia ou Gaia. Urano odiava os filhos por temer o potencial deles; conta a lenda que fora "o primeiro a maquinar ações vergonhosas". Sua mulher, Gaia, fabricou uma foice e induziu Crono a atacar o pai. Crono golpeou e cortou o falo do próprio pai. Terríveis gigantes nasceram das gotas de sangue que caíram sobre a terra. O mar, fecundado e salpicado de esperma, deu luz à Afrodite, cujo nome significa "nascida da espuma".

Crono-Saturno substituiu o pai, tornando-se tirano de igual magnitude. Sempre que ele e sua consorte Reia tinham filhos, ele comia. A única criança que conseguiu evitar essa sina foi Zeus. Por sua vez, Zeus liderou uma revolta contra o próprio pai, dando início a uma guerra de dez anos. Muitas forças civilizadoras emergiram com o triunfo de Zeus, mas também ele se tornou prisioneiro do complexo do poder e tornou-se dominador.

Assim, a história de Crono-Saturno envolve poder, ciúme, insegurança - violência para com o princípio do eros, com a geração e com a terra. Como Jung comentou certa vez, na presença do poder o amor nunca está presente. Junto com a grande capacidade de aquisição do poder dramatizada pelos deuses, vemos sua corrupção no complexo do poder. O poder em si é neutro, mas sem eros ele é perseguido pelo medo e pela ambição compensatória, arremessado em direção a fins violentos. Como observou Shakespeare, "inquieta permanece a cabeça que usa coroa".

A maioria dos homens ao longo da história cresceram sob a sombra deste legado saturnino. Sofreram com a corrupção do poder, movidos pelo medo, ferindo a si e aos semelhantes. Se os homens modernos sentem que não há alternativas, que o legado de Saturno é a única possibilidade que existe, eu não penso assim.

Sob a sombra de Saturno é oferecido ao leitor como forma de identificar algumas dentre as inúmeras maneiras pelas quais este mito obscuro marcou nossa alma. Minha esperança é que leve cada um a se voltar para dentro de si em busca de maior liberdade pessoal.


OS OITO SEGREDOS 

QUE OS HOMENS CARREGAM


1. A vida dos homens é tão governada por expectativas restritivas com relação ao papel que devem desempenhar quanto a vida das mulheres.

2. A vida dos homens é basicamente governada pelo medo.

3. O poder feminino é imenso na organização psíquica dos homens.

4. Os homens conluiam-se numa conspiração de silêncio cujo objetivo é reprimir sua verdade emocional.

5. O ferimento é necessário porque os homens precisam abandonar a Mãe e transcender o complexo materno.

6. A vida dos homens é violenta porque suas almas foram violadas.

7. Todo homem carrega consigo profundo anseio pelo seu pai e pelos Pais tribais.

8. Para que os homens fiquem curados, precisam ativar dentro de si o que não receberam do exterior.


Introdução do livro Sob a Sombra de Saturno - a ferida e a cura dos homens, de James Hollis, Paulus Editora, São Paulo, 5ª Edição, 2019.

Nenhum comentário:

Postar um comentário