Esta obra ancora-se, principalmente, em minha experiência de pesquisa ao longo de 15 anos voltada para as relações entre sexualidade, saúde e doença. Durante esse período, procurei não só estudar essas relações por meio da análise das literaturas nacionais e internacionais, como também me voltei para a escuta das falas de sujeitos que integraram pesquisas por mim realizadas.
Nessa trajetória de pesquisa, nos últimos cinco anos, comecei a ajustar o foco para a sexualidade masculina em específico, sem, entretanto, perder a perspectiva relacional de gênero. Isso significa, principalmente, que compreendo essa sexualidade com base na contextualização dos modelos de gênero construídos culturalmente nas relações e nas instituições sociais. Considerando essa dimensão - que será mais bem trabalhada no capítulo 3 -, partilhei da premissa de que a sexualidade masculina e feminina se constroem na produção/reprodução de modelos de gêneros. Em outras palavras, as condutas e os enredos sexuais masculinos só se configuram como tal segundo o que compreendemos por condutas e enredos sexuais femininos e vice-versa. Assim, adoto uma abordagem sociocultural da sexualidade, procurando interpretar o contexto, as razões e as lógicas das falas e das ações, correlacionando-as ao conjunto de inter-relações e conjunturas, entre corpos analíticos.
Entre meus estudos sobre sexualidade masculina, destaca-se a pesquisa "A construção da masculinidade como fator impeditivo do cuidar de si" (Gomes, 2004), vinculada à Bolsa de Produtividade em Pesquisa (entre agosto de 2003 e fevereiro de 2007) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto Fernandes Figueira da Fundação Oswaldo Cruz (IFF/Fiocruz). Em geral, eu pretendia compreender algumas ideias que se encontram no imaginário social relacionadas ao 'ser homem' e podem comprometer a saúde dos homens. Privilegiei a 'prevenção do câncer de próstata para problematizar as relações entre masculinidade e cuidados em saúde. Meus objetivos foram: a) analisar as representações da masculinidade para profissionais da saúde e para homens que usualmente não buscam atendimentos nos serviços de saúde; b) analisar os modelos explicativos para as dificuldades de os homens cuidarem de si e de profissionais atuarem com esse gênero, principalmente no que se refere à prevenção do câncer de próstata; c) propor princípios para o campo da saúde coletiva que permitam melhor compreender aspectos socioantropológicos da masculinidade, visando a ações específicas voltadas para a saúde do homem.
A metodologia deste estudo ancorou-se na abordagem de pesquisa qualitativa, voltada para a problematização dos sentidos que os sujeitos atribuem aos fenômenos e ao conjunto de relações em que eles se inserem (Denzin & Lincoln, 2000; Deslandes & Gomes, 2004), com base em princípios da hermenêutica-dialética (Minayo, 2005).
Em termos de sujeitos do estudo, optei por trabalhar com homens maiores de 40 anos e com médicos urologistas, a fim de focalizar o câncer de próstata. Decidi também atuar junto com dois grupos de homens que trabalhavam ou residiam na cidade do Rio de Janeiro: os com nenhuma ou pouca escolaridade (Grupo 1) e os homens com Ensino Superior (Grupo 2). A composição desses grupos ajudou-me a verificar se o grau de instrução poderia interferir no cuidar de si. Em relação aos profissionais da saúde, procurei aqueles com pelo menos cinco anos de experiência no atendimento a homens. Com base nesses critérios, entrevistei dez médicos, dez homens do Grupo 1 e oito do Grupo 2. Fiz a seleção prevendo a possibilidade de inclusões sucessivas de informantes, até que fosse possível uma discussão densa sobre as questões da pesquisa e aprofundada sobre o objeto de estudo (Minayo, 2006). Adotei a técnica de universos familiares (Vaitsman, 1994; Velho, 1981), em que pessoas conhecidas do pesquisador indicam outras a serem entrevistadas, que, por sua vez, indicam outras conhecidas.
A coleta dos dados apoiou-se em entrevistas semiestruturadas, realizadas em horários e locais escolhidos pelos entrevistadores, em um único encontro de, em média, uma hora e trinta minutos. Nas entrevistas, focalizei os sentidos atribuídos ao ser homem, ao cuidar de si e à prevenção do câncer de próstata por meio do toque retal.
As informações fornecidas pelos sujeitos pelos sujeitos foram trabalhadas por meio de dois métodos que se articulam na perspectiva hermenêutica-dialética (Minayo, 2005): o método de interpretação de sentidos (Gomes, Minayo & Silva, 2005; Gomes, 2007) e o método de análise e interpretação de narrativas (Gomes & Mendonça, 2002).
As opiniões dos entrevistados sobre masculinidade, uso de serviços de saúde por parte de homens e prevenção do câncer de próstata foram trabalhadas nos termos do primeiro método. No trato dessas opiniões, percorri os seguintes passos: a) compreensão dos depoimentos; b) identificação e problematização das ideias explícitas e implícitas no texto: c) busca de sentidos socioculturais subjacentes aos depoimentos; d) estabelecimento de relações entre sentidos atribuídos pelos sujeitos, resultado de outros estudos acerca do assunto, e o referencial teórico do estudo; e) elaboração de síntese interpretativa.
Em relação às narrativas dos sujeitos a respeito de sua sexualidade, utilizei o segundo método. Na primeira etapa, busquei compreender o contexto das interpretações sobre sexualidade, principalmente acerca da experiência de iniciação sexual. Na segunda, procurei desvendar os aspectos estruturais da narrativa, problematizando seus conteúdos por meio de questões voltadas para cenários, personagens, espaços e eventos mencionados, bem como o enredo e o desfecho delineado pelos narradores. Como terceira etapa, elaborei uma síntese interpretativa, em que dados revelados pelas narrativas dialogam com o contexto sócio-histórico. Os resultados dessa pesquisa, que em parte já se encontram publicados em artigos (Gomes, Nascimento & Araújo, 2007; Gomes et al., 2007), serão utilizados em capítulos deste volume para embasar minha discussão acerca do assunto.
Além dessa pesquisa, para ilustrar a discussão, trago uma interpretação que fiz dos conteúdos de uma revista sobre saúde do homem, de circulação internacional, lançada recentemente no Brasil. Nessa interpretação, com algumas adaptações, apliquei aspectos do método de análise e interpretação de narrativas. No capítulo 4, figuram as conclusões desse estudo.
Os capítulos, embora demarquem especificidades ou prismas das relações estabelecidas entre sexualidade masculina, gênero e saúde, se articulam em torno do propósito de contribuir para a promoção da sexualidade masculina saudável. Por essa expressão, estou entendendo a experiência de uma vida sexual prazerosa, informada, sem riscos de doenças, livre de violência e baseada na autoestima, sem que questões do masculino sejam vistas separadamente das do feminino. A perspectiva relacional de gênero atravessa os diferentes capítulos, implícita ou explicitamente, dando visibilidade ao confronto entre a sexualidade masculina e feminina e ao mesmo tempo relativizando-o.
No capítulo 1, discutirei, principalmente, a pertinência de abordar a temática em questão. Nele, apresentarei minhas motivações para desenvolver este estudo. O que me moveu para tal empreendimento foi, sobretudo, minha experiência de pesquisador que, há mais de dez anos, se volta para questões relacionadas à sexualidade. Nesta parte, apresentarei também a relevância da discussão, apoiando-me nas literaturas nacional e internacional. Minha justificativa centra-se, principalmente, na intenção de trazer subsídios para a promoção da saúde sexual masculina, de forma a beneficiar não só os homens como também as mulheres, no contexto das relações de gênero.
O capítulo 2 versará sobre o quadro geral da morbi-mortalidade masculina no Brasil. O propósito é fornecer ao leitor um cenário no qual se inseriria a discussão sobre a sexualidade masculina. Estabelecerei considerações gerais que poderão servir para que algumas informações acerca do assunto sejam problematizadas, levando em conta as questões de gênero. Observarei que, em função dos dados da área da saúde disponíveis, a caracterização tratará muito mais dos comprometimentos da saúde e da mortalidade do que da saúde propriamente dita. Neste capítulo, também discutirei aspectos relacionados ao reduzido envolvimento de homens com os cuidados em saúde, seja no que se refere ao autocuidado, seja no que tange à busca de cuidados especializados.
No capítulo 3, apresentarei um referencial teórico-conceitual básico acerca do assunto. Buscarei não só estabelecer uma ancoragem para a discussão como também disponibilizar um referencial para que novos estudos possam ser desenvolvidos. Tratarei, principalmente, dos conceitos 'gênero', 'masculinidade' e 'sexualidade masculina'. Nessa discussão teórico-conceitual, observarei que os conceitos nem sempre demarcam fronteiras nítidas em torno do que querem referir: ora superpõem, ora se diferenciam mutuamente. Neste capítulo, procurarei tecer considerações baseadas em discursos de vários autores que tratam do assunto, como se fossem fios que se entrelaçam em uma só trama.
O capítulo 4 é uma interpretação de conteúdos de uma revista voltada especificamente para a saúde do homem, que passou a circular nas bancas de jornal brasileiras no fim do primeiro semestre de 2006. Ao interpretar as narrativas presentes nessa revista, quero destacar - de forma ilustrativa - a maneira como a mídia vem focalizando a sexualidade e a saúde do homem em geral, desvendando os modelos subjacentes às mensagens veiculadas para segmentos masculinos da população. Assim, procurarei não só identificar os conteúdos acerca do assunto nas matérias da revista, mas principalmente, o que se encontra a tais conteúdos.
No capítulo 5, discutirei cenários, enredos e personagens de narrativas sexuais masculinas. Os autores das narrativas são homens com pouca ou nenhuma escolaridade e homens com Ensino Superior que falam sobre as suas histórias sexuais. A escuta dessas falas me possibilitou melhor compreender trajetórias vivenciadas por homens na construção de sua sexualidade. Junto com o desenvolvimento das narrativas, estabelecerei um diálogo entre os dados de minha pesquisa e os de outros estudos. Com esse diálogo, acredito que será possível contribuir para que a sexualidade masculina seja problematizada e mais bem dimensionada no campo das ações voltadas para as especificidades do masculino e para as questões de gênero em geral.
No capítulo 6, explicitarei o que entendo por sexualidade saudável, procurando não reduzir tal expressão à medicalização ou à prevenção de doenças. Em seguida, discutirei aspectos que possam via a embasar a formulação de princípios para a promoção da sexualidade masculina saudável em uma perspectiva que contemple as relações entre gêneros.
As referências aqui reunidas foram de fundamental importância par que eu pudesse discutir o assunto central desta obra. São fontes - teóricas e empíricas - a que recorri para embasar a discussão, tanto em termos de conteúdo como no que diz respeito a formas de abordar o assunto. Tais referências servem também de ponto de partida para que a discussão seja ampliada ou para que novos estudos sobre o assunto sejam desenvolvidos.
Não posso deixar de agradecer a todos que, de uma forma ou de outra, me ajudaram neste empreendimento. Li em prólogos de publicações e aprendi com minha própria experiência que um livro nunca é de um só autor. Em menor ou maior proporção, mesmo naqueles assinados por um só nome participam - direta ou indiretamente - outros autores. Aqui não poderia ser diferente. Nela, há a colaboração ou participação de inúmeras pessoas. Algumas estiveram mais perto, fazendo com que sua elaboração não fosse uma tarefa solitária. Outras, de forma indireta, também muito contribuíram para que o empreendimento chegasse ao término, sem que se dessem conta disso.
Texto de Romeu Gomes na apresentação de seu livro Sexualidade Masculina, Gênero e Saúde, Editora Fiocruz, coleção Criança, Mulher e Saúde, Rio de Janeiro, 2012.
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