18 novembro 2025

Na Rodoviária

O lugar mais frio do mundo. Debaixo daquelas placas de cimento, todas tão altas, tão grandes, tanto frio nas costas cobertas apenas por uma camisa de algodão, amarelada e respingada de lama. No bancos enfileirados os corpos sentados com as pernas cruzadas, com as pernas esticadas, com as pernas encolhidas. Os rostos que não dizem coisa alguma. Os olhos de todos. Com um brilho sombrio, uma luz sem direção. Nas bocas um riso tosco que mais parece uma careta repetitiva e angustiante.

A camisa não aquece. O vento está levantando a saia daquela moça que passou com um embrulho de pastel na mão. A gordura do pastel está molhando o embrulho. A moça para, sem olhar para ele, para sua camisa que não aquece. A moça abre o embrulho e tira um pastel enorme que deve ter muita carne dentro. Ela como o pastel com vontade, com um sorriso. Com um brilho diferente nos olhos fundos. Depois ela desaparece entre as pernas daqueles homens altos e louros que conversam perto da lanchonete. Mas o pastel ficou. O pastel corre de mão em mão, todos comem um pedacinho. Só ele observa tudo, encostado a uma das pilastras, sentindo esse frio todo, essa tristeza toda, essa fome toda.

- Ei, guri.

Levanta os olhos com preguiça.

- Tá me ouvindo, guri?

Examina o rosto enrugado da mulher, o batom vermelho nos lábios finos, o pó de arroz sobrando nas bochechas murchas.

- Qual é a tua? Num fala não, é?

Acha graça na voz da mulher. Ri do jeito de mexer com os ombros.

- Vai falando, dona.

Ela acende um cigarro com um isqueiro azul. Começa a fumar, os cabelos estão soltos e pegajosos.

- Sabe o que é, guri? É que... Bom, eu tava a fim de...

Sente cheiro de cerveja. Essa mulher deve ter tomado muita cerveja. Os olhos dela são miúdos e piscam muito.

- Eu tava a fim de papear com alguém, sacou?

Agora ele ri bastante, sacudindo os ombros.

- A dona tá querendo me gozar? Nunca me viu mais gordo e tá a fim de papear comigo?

- Você não quer?

Ele para de rir bruscamente. Lembra-se do pastel. Da carne quentinha que devia estar dentro dele.

- Tô a fim de comer um pastel, dona. Tô com uma fome dos diabo!

Cala-se.  Envergonha-se do que acabou de dizer, meio perplexo, meio tonto. A mulher puxa-o pela mão. Leva-o diante da lanchonete e apoia-se no balcão de mármore branco. Compra o pastel para ele. Depois, ao voltar a seu lado, em direção à pilastra, ela passa as mãos enrugadas em suas costas.

- Essa tua camisa num tá com nada, meu guri.

Engole a carne moída com pedacinhos de tomate e folhas de salsa. Mais uma vez olha pra ela, agora achando tudo isso muito esquisito e bom.

- A dona mora aqui mesmo em Brasília?

Ela belisca um pedacinho do pastel.

- Desculpa. Num tô com fome não, é só uma mania que eu tenho. Moro na Cidade Livre. Num barraco de tábua.

- Eu também moro num barraco de tábua, num tenho nenhuma inveja da senhora.

Os dois estão rindo. Rindo sem parar. O pastel acabou. O frio parece que diminuiu um pouco. Uma criança passa correndo, chamando pela mãe que voltou para a escada rolante, deve ter esquecido algum dos pacotes de suas compras.

- A senhora sabia que aqui é a capital da esperança?

A mulher continua rindo, os olhos miúdos são engolidos pelas bochechas murchas. Ele tira o resto da gordura das mãos com uma ponta da camisa. Ergue os olhos e vira o rosto. Vê ao longe, embaçada e triste, a Praça dos Três Poderes.


Conto de Stela Maris Rezende Paiva retirado do livro Dentro das Lamparinas, Horizonte  Editora, Brasília, 1979.

Nenhum comentário:

Postar um comentário