Com as próprias mãos, Oxalá amassou o barro e com ele modelou os bonecos aos quais deu a vida com o sopro de Olorum, transformando-os em seres humanos. Mas isso também não foi nada fácil. O Criador fracassou várias vezes antes de chegar à matéria-prima mais adequada para a modelagem dos humanos.
Primeiro os fez de ar, mas eles se desvaneciam, sem consistência. Com água também não funcionou: as criaturas lhe escorriam por entre os dedos, caíam num jorro e se infiltravam no solo.
Oxalá achou que tinha que dar mais solidez ao ser humano e tentou fazê-lo de pau. Agora sim, os novos seres se mantinham firmes e não lhe escapavam das mãos. Só que ficaram duros demais, quase nem podiam se mexer.
E assim Oxalá foi experimentando tudo quanto era material que lhe parecia apropriado. De ferro, os modelos do ser humano ficaram pesados demais. De massa de inhame ficaram leves, mas muito moles.
Adetutu ficou tentada a sugerir a Oxalá que pedisse ajuda a Exu, mas decidiu não se meter na Criação. Exu insistia em seu ouvido:
"Diga a ele para me pedir ajuda, diga."
Ela preferiu ficar quieta. Mas Oxalá, talvez ciente da conversa de Exu com Adetutu, chamou o imrão e lhe deu de presente um galo preto bem gordo para reforçar a oferenda anterior.
Passoi-se algum tempo e nada aconteceu. Frustrado e com medo do fracasso, Oxalá se sentou às margens de um lago para descansar e refletir.
Nanã, que habitava o fundo daquelas águas, veio em socorro de Oxalá. Quando Nanã saiu do lago, a visão de seu corpo feito de lama iluminou a mente de Oxalá.
"Você, que é a mais antiga de nós, se move tão bem com seu corpo de lama. E como é bela!", ele disse. "De lama poderia ser também o corpo dos humanos."
Adetutu imaginou seu corpo feito de lama e avaliou que não ficara nada mau.
Nanã disse:
"Pode usar a lama e fazer quantos humanos quiser. Mas se um dia não tiver mais um bom uso para suas criaturas e decidir se desfazer delas, terá que me devolver a matéria-prima."
"Feito", concordou Oxalá, satisfeito com o trato, achando que nunca teria de devolver nada a Nanã.
Então, com uma porção de barro do fundo do lago, Oxalá modelou sua criatura e lhe deu vida. Fez corpo, cabeça e membros. Recheou com o coração, os pulmões, as tripas e os demais componentes que preenchem a barriga. Fez dois modelos iguais. Num, pôs pênis e testículos; no outro, ovário útero e vagina, e seios cheios de leite. Para que a criatura dotada de pênis penetrasse a criatura dotada de vagina, e suas sementes se misturassem e produzissem outras criaturas, sem mais trabalho para Oxalá, que poderia descansar.
Caprichou o quanto pôde. Só esqueceu de pôr alguma coisa dentro da cabeça.
Dotados de vida, os seres, que foram chamados homem e mulher, não pensavam, não agiam, nem mesmo se interessavam um pelo outro. Bela reprodução!, pensou Oxalá, desolado.
Foi consultar o adivinho Ifá para saber onde errara.
Seguia acompanhado de Adetutu, que segurava sua mão e procurava encorajá-lo.
O resultado da consulta ao oráculo foi bastante promissor. Disse Ifá:
"Está tudo certo, meu irmão. Você apenas esqueceu de dar a cada ser humano um destino, as vontades e o raciocínio próprio. Basta completar sua obra, e ela funcionará."
"Ah, bom!", reagiu Oxalá, aliviado.
Oxalá pagou a Ifá duas porções de azeite e dezesseis fileiras de búzios pela adivinhação, despediu-se e, depois de deixar na encruzilhada mais um agradinho para Exu, foi à casa de outro irmão, o oleiro Ajalá.
Combinaram que a partir de então, para cada homem ou mulher, Ajalá forneceria o recheio do crânio, que conteria o destino e a personalidade de cada um.
Assim foi feito.
Bastou que as criaturas recebessem o que está dentro da cabeça para saírem pelo mundo como seres humanos prontos para a vida.
De seu palácio. Olorum sorriu para Oxalá, agradecido, e se retirou para seus aposentos.
Oxalá estava cansado, muito cansado, mas a obra, enfim, estava feita.
Antes de voltar para casa, deu a Adetutu um caracol, que ela guardou na sua sacolinha de segredos.
E desde então os homens se multiplicaram e tomaram conta da Terra. Hoje são seus senhores. E Oxalá pôde descansar.
A labuta do oleiro Ajalá, entretanto, prossegue até os dias de hoje: antes de nascer, cada ser humano deve passar na olaria de Ajalá e escolher uma cabeça para si. O trabalho de Ajalá não cessa, sempre é preciso fazer novas cabeças. Nunca para de nascer gente.
Ajalá faz as cabeças de barro e depois as cozinha no forno. Nem sempre a tarefa é bem-sucedida. Ajalá às vezes bebe demais e erra o ponto, de modo que algumas cabeças saem meio cruas, outras cozidas demais, quando não tortas, ocas, malformadas. Na pressa de nascer, os seres humanos pegam qualquer cabeça. Pobre de quem nasce com uma cabeça daquelas...
Adetutu, ao se lembrar desse pormenor, chacoalhou bem sua cabeça, querendo se certificar de que era boa. "Louca eu não sou", ela concluiu, satisfeita.
Teve pena de Ajalá. Tanta trabalheira, e quase ninguém se lembrava dele, poucos lhe faziam festa. Adetutu tinha aprendido que Iemanjá cuidava das cabeças. Alguém lhe dissera: "Ajalá faz, Iemanjá conserta". Então ela se lembrou da história.
Houve um tempo em que Iemanjá foi casada com Oxalá. Ela tinha uma missão muito bem definida: tomar conta de Oxalá e de sua casa. Devia cuidar para que nada lhe faltasse, dando-lhe o carinho e as honras merecidos por aquele que havia criado a humanidade. Afinal, eram os homens que alimentavam os deuses, e seu Criador merecia um lugar muito importante entre os orixás.
Iemanjá achava que a missão não lhe dava o prestígio merecido. Cuidar de Oxalá era um encargo honroso, mas para ela isso era pouco, queria uma tarefa grandiosa, em que pudesse usar de poderes que os demais invejassem. Oxalá era o pai de todos os seres humanos, não era? Então, sendo casada com ele, ela era a mãe. Queria honra maior? Ela queria. Queria ser chamada de mãe, sim, mas que fosse por seu próprio mérito, e não por ser casada com o Criador.
Enquanto cozinhava para Oxalá, preparava seu banho, alvejava suas túnicas brancas, Iemanjá falava sem parar. Queria tanto fazer alguma coisa de grande, ter uma missão que a tornasse indispensável, estar verdadeiramente à altura de Oxalá, o Grande Orixá.
Tanto falou no ouvido de Oxalá, tanto reclamou, que ele enlouqueceu.
E agora? Iemanjá se assustou. O que diriam os outros? Em vez de cuidar de Oxalá, ela o fizera adoecer. Certamente seria castigada, nunca teria os poderes que almejava.
Iemanjá tratou de curar a cabeça de Oxalá. Com a ajuda de Exu a Ossaim, que sabia tudo sobre o poder curativo das plantas, Iemanjá preparou banhos e unguentos para a cabeça de Oxalá, fez oferendas, cuidou para que ele repousasse num ambiente todo branco, limpo e silencioso, rezou. Em pouco tempo Oxalá ficou bom da loucura, sarou.
Olorum gostou de resultado e ordenou que, a partir de então, Iemanjá cuidasse da cabeça de todos os homens e mulheres. Demonstrara ter talento para isso. Muitos tinham a cabeça malformada e precisavam de ajuda.
Agora sim. Os humanos sabiam que Iemanjá tinha força para ajudar os loucos, os deprimidos, os de mente fraca. E como de louco todo mundo tem um pouco, não houve quem deixasse de adorar Iemanjá. Presentes e festas nunca lhe faltaram. Os humanos dançavam para ela e a chamavam de Mãe das Cabeças, Mãe da Humanidade.
Adetutu agradeceu a Iemanjá por manter sua cabeça em bom estado. Apesar de todo o sofrimento a que estava submetida desde que os caçadores de escravos a tinham raptado, apesar de toda a incerteza que povoava os seus dias, Adetutu se mantinha lúcida e esperançosa. Iemanjá ficou feliz por ter sido lembrada, e deu um peixinho de prata a Adetutu, que o guardou na sacolinha. Pensou como eram tantas as histórias de Iemanjá. E continuou a sonhar com a Criação.
Conto de Reginaldo Prandi retirado do livro A Criação do Mundo - Contos e Lendas Afro-brasileiros, Editora Cia. das Letras / Editora Schwarcz, São Paulo, 2009.
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