21 novembro 2025

Sonho de menino analfabeto

 O chão foi meu quadro-negro;

gravetos, o meu giz. (Paulo Freire)


Quero aprender a ler e a escrever logo.

Quero sentar no chão do meu quintal e, com prego ou graveto, escrever um montão de palavras bem bonitas. No chão, já desenho melhor do que no caderno.

Quero escrever um dia nomes de gente muito amada; de minha mãe; de meu pai, dos meus irmãos, de meu avô, de minha avó, dos meus tios e primos.

Quero escrever nomes de países sonhados, de brinquedos perdidos ou quebrados. Nomes de todos os bichos e coisas que já tive e perdi por aí.

Quero escrever como quem sonha e pode dar nome a tudo. Só que nomes escritos, pois já não me interessam os falados.

Vou me lembrar dos amigos todos, dos parentes todos, até daqueles que já sumiram deste mundo e moram agora no céu.

Desenhar um coração, eu já sei. Fazer uma flecha cortando o coração, também já sei. Agora faltam duas coisas: arrumar minha primeira namorada e aprender a escrever, no coração dividido, os nomes meu e dela.

Quando eu souber escrever, vai ser tudo diferente... Posso escrever todos os meus sonhos, todas as minhas alegrias e também as minhas tristezas. Sonho escrito deve durar mais. Tristeza escrita deve se apagar dentro da gente e ficar inteirinha no papel.

Daqui a um ano, vou deixar só de rabiscar bolinhas e montanhas. Vou deixar de colorir coisas chatas, que já vêm desenhadas pra gente. Vou aprender a escrever e a desenhar tudo o que vejo no mundo: gente, flor, bicho, casa e coisas.

Acho que quem escreve pode ser meio dono deste mundo...


Conto de Elias José retirado do livro O Furta-Sonos e Outras Histórias, Coleção Era Uma Vez, Atual Editora, 4ª Edição, São Paulo, 1991.

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