sábado, 23 de agosto de 2025

Estás Doente? (86)

 "E a oração da fé salvará o doente, e o Senhor o levantará." - (TIAGO, 5:15.)


Todas as criaturas humanas adoecem, todavia, são raros aqueles que cogitam de cura real.

Se te encontras enfermo, não acredites que a ação medicamentosa, através da boca ou dos poros, te possa restaurar integralmente.

O comprimido ajuda, a injeção melhora, entretanto, nunca te esqueças de que os verdadeiros males procedem do coração.

A mente é fonte criadora.

A vida, pouco a pouco, plasma em torno de teus passos aquilo que desejas.

De que vale a medicação exterior, se prossegues triste, acabrunhado ou insubmisso?

De outras vezes, pedes o socorro de médicos humanos ou de benfeitores espirituais, mas, ao surgirem as primeiras melhoras, abandonas o remédio ou o conselho salutar e voltas aos mesmos abusos que te conduziram à enfermidade.

Como regenerar a saúde, se perdes longas horas na posição da cólera ou do desânimo? A indignação rara, quando justa e construtiva no interesse geral, é sempre um bem, quando sabemos orientá-la em serviços de elevação; contudo, a indignação diária, a propósito de tudo, de todos e de nós mesmos, é um hábito pernicioso, de consequências imprevisíveis.

O desalento, por sua vez, é clima anestesiante, que entorpece e destrói.

E que falar da maledicência ou da inutilidade, com as quais despendes tempo valioso e longo em conversação infrutífera, extinguindo as tuas forças?

Que gênio milagroso te doará o equilíbrio orgânico, se não sabes calar, nem desculpar, se não ajudas, nem compreendes, se não te humilhas para os desígnios superiores, nem procuras harmonia com os homens?

Por mais se apressem socorristas da Terra e do Plano Espiritual, em teu favor, devoras as próprias energias, vítima imprevidente do suicídio indireto.

Se estás doente, meu amigo, acima de qualquer medicação, aprende a orar e a entender, a auxiliar e a preparar o coração para a Grande Mudança.

Desapega-te de bens transitórios que te foram emprestados pelo Poder Divino, de acordo com a Lei do Uso, e lembra-te de que será, agora ou depois, reconduzido à Vida Maior, onde encontramos sempre a própria consciência.

Foge à brutalidade.

Enriquece os teus fatores de simpatia pessoal, pela prática do amor fraterno.

Busca a intimidade com a sabedoria, pelo estudo e pela meditação.

Não manches teu caminho.

Serve sempre.

Trabalha na extensão do bem.

Guarda lealdade ao ideal superior que te ilumina o coração e permanece convicto de que se cultivas a oração da fé viva, em todos os teus passos, aqui ou além, o Senhor te levantará.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

domingo, 17 de agosto de 2025

Prefácio à 1ª Edição do livro Introdução à Psicologia do Ser

Tive muitas dificuldades ao escolher o título para este livro. O conceito de "saúde psicológica", embora ainda seja necessário, tem várias deficiências intrínsecas para fins científicos, as quais serão analisadas em vários lugares apropriados, no decorrer do livro. O mesmo pode ser dito de "doença psicológica", como Szasz e os psicólogos existenciais recentemente sublinharam. Ainda podemos usar esses termos normativos e, de fato, por razões heurísticas, devemos utilizá-los, desta vez; entretanto, estou convencido de que se tornarão obsoletos dentro de uma década. 

Um termo muito melhor é "individuação", no sentido em que usei. Ele sublinha a "humanidade plena do indivíduo", o desenvolvimento da natureza humana biologicamente alicerçada e, portanto, é (empiricamente) normativo para toda a espécie, em vez de sê-lo para determinados tempos e lugares; quer dizer, é menos culturalmente relativo. Ajusta-se mais ao destino biológico do que aos modelos de valor historicamente arbitrários e culturalmente locais, como frequentemente ocorre com os termos "saúde" e "doença". Também tem conteúdo empírico e significado operacional.

Contudo, à parte ser desgracioso de um ponto de vista literário, esse termo provou ter imprevistas deficiências, como: a) implicar egoísmo em vez de altruísmo; b) encobrir o aspecto de dever e de dedicação às tarefas da vida; c) negligenciar os vínculos com outras pessoas e a sociedade, e a dependência da plena realização individual de uma "boa sociedade"; d) negligenciar o caráter exigente da realidade não-humana e o seu fascínio e interesse intrínsecos; e) negligenciar o desprendimento do ego e a possibilidade de transcendência do eu; e, finalmente, f) sublinhar, por implicação, a atividade, mais do que a passividade ou receptividade. E tudo isso aconteceu apesar dos meus cuidadosos esforços para descrever o fato empírico de que as pessoas individuacionantes são altruístas, dedicadas, sociais, capazes de se transcenderem etc.

A palavra "eu" parece desconcertar as pessoas, e as minhas redefinições e descrição empírica são amiúde impotentes diante do poderoso hábito linguístico de identificar "eu" com "egoísta" e com autonomia pura. Para minha consternação, também verifiquei que alguns psicólogos inteligentes e capazes persistem em tratar a minha descrição empírica das características de pessoas individuacionantes como se eu tivesse arbitrariamente inventando essas características, em vez de descobri-las.

"Plena realização humana" evita, segundo me parece, alguns desses equívocos. E "diminuição ou deficiência humana" também serve como melhor substituto para "doença" e até, porventura, para neurose, psicose e psicopatia. Pelo menos, esses termos são mais úteis para a teoria psicológica e social geral, quando não para a prática psicoterapêutica.

Os termos "Ser" e "Devir" ou "Vir a Ser", tal como os emprego em todo este livro, são ainda melhores, se bem que não estejam utilizados, por enquanto, de maneira suficientemente generalizada para servir como moeda corrente. Isso é deveras lamentável, porque a Psicologia do Ser é certamente muito diferente da Psicologia do Devir e da Psicologia da Deficiência, como veremos. Estou convencido de que os psicólogos devem caminhar no sentido da reconciliação da S-Psicologia com a D-Psicologia, isto é, do perfeito com o imperfeito, do ideal com o real, do eupsiquismo com o existente, do intemporal com o temporal, da Psicologia como fim com a Psicologia como meio.

Descobri que é muito difícil comunicar a outros o meu respeito e a minha impaciência simultâneos, ante essas duas psicologias abrangentes. Tantas pessoas insistem em ser ou a favor de Freud ou contra Freud, a favor da Psicologia Científica ou contra a Psicologia Científica etc. Na minha opinião, todas as posições de lealdade desse gênero são idiotas. A nossa missão é integrar essas várias verdades na verdade total, que deverá constituir a nossa única lealdade.

Para mim, é perfeitamente claro que os métodos científicos (concebidos em termos gerais) são o nosso único meio fundamental de estarmos certos de que temos a verdade. Mas também aqui é demasiado fácil cometer um equívoco e cair numa dicotomia: a favor da ciência ou contra a ciência.

A ciência, tal como é habitualmente concebida pelos ortodoxos, é inadequada para essas tarefas. Mas estou certo de que não precisa limitar-se a esses métodos ortodoxos. Não precisa abdicar dos problemas do amor, criatividade, valor, beleza, imaginação, ética e alegria, deixando tudo isso para os "não-cientistas", os poetas, profetas, sacerdotes, dramaturgos, artistas ou diplomatas. Todas essas pessoas podem ter maravilhosas introvisões, formular interrogações que têm de ser feitas, aventar hipóteses desafiadoras e podem até estar certas e dizer a verdade na maioria das vezes. Mas, por muito seguras que elas possam estar, nunca poderão tornar a humanidade segura. Podem apenas convencer aqueles que já concordam com elas e alguns mais. A ciência é o único meio de que dispomos para enfiar a verdade goela abaixo dos relutantes. Somente a ciência pode superar as diferenças caracterológicas no ser e no crer. Somente a ciência pode progredir.

Entretanto, permanece o fato de que ela chegou a uma espécie de beco sem saída e (em algumas de suas formas) pode ser encarada como uma ameaça e um perigo para a humanidade ou, pelo menos, para as mais elevadas e nobres qualidades e aspirações da humanidade. Muitas pessoas sensíveis, especialmente os artistas, receiam que a ciência macule e deprima, que dilacere coisas em vez de integrá-las e, por conseguinte, mate em vez de criar.

Acho que nada disso é necessário. Tudo o que a ciência precisa para ser uma ajuda à plena realização humana positiva é ampliar e aprofundar a concepção da sua natureza, das suas metas e dos seus métodos.


Trechos do prefácio do livro Introdução à Psicologia do Ser, Abraham H. Maslow, Livraria Eldorado, Rio de Janeiro, 2ª Edição, 1968.

sábado, 16 de agosto de 2025

Impedimentos (85)

 "Deixemos todo impedimento e pecado que tão de perto nos rodeiam e corramos com perseverança a carreira que nos está proposta." - Paulo. (HEBREUS, 12:1.)


O grande apóstolo da gentilidade figura o trabalho cristão como sendo uma carreira da alma, no estádio largo da vida.

Paulo, naturalmente, em recorrendo a essa imagem, pensava nos jogos gregos de sua época, e, sem nos referirmos ao entusiasmo e à emulação benéfica que devem presidir semelhante esforço recordemos tão-somente o ato inicial dos competidores.

Cada participante do prélio despia a roupagem exterior para disputar a partida com indumentária tão leve quanto possível.

Assim, também, na aquisição de vida eterna, é imprescindível nos desfaçamos da indumentária asfixiante do espírito.

É necessário que o coração se faça leve, alijando todo fardo inútil.

Na claridade da Boa Nova, o discípulo encontra-se à frente do Mestre, investido de obrigações santificantes para com todas as criaturas.

As inibições contra a carreira vitoriosa costumam aparecer todos os dias. Temo-las, com frequência, nos mais insignificantes passos do caminho.

A cada hora surge o impedimento inesperado.

É o parente frio e incompreensivo.

A secura dos corações ao redor de nós.

O companheiro que desertou.

A mulher que desapareceu, perseguindo objetivos inferiores.

O amigo que se iludiu nas ilhas de repouso, deliberando atrasar a jornada.

O cooperador que a morte levou consigo.

O ódio gratuito.

A indiferença aos apelos do bem.

A perseguição da maldade.

A tormenta da discórdia.

A Boa Nova, porém, oferece ao cristão a conquista da glória divina.

Se quisermos alcançar a meta, ponhamos de lado todo impedimento e corramos, com perseverança, na prova de amor e luz que nos está proposta.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

Aprendizagem: que espécie?

Escrevo este livro porque desejo falar a mestres, professores, educadores, administradores de escolas, universidades e instituições educacionais. Mas que é que pretendo dizer-lhes? Eis-me perplexo ante a pergunta. Invade-me uma onda de ideias e de sentimentos e fico sem saber como começar. Aí, um pensamento sobe à tona - desejo falar-lhes a respeito de aprendizagem. Mas não o amontoado de coisas sem vida, estéreis, fúteis, logo esquecidas, com que se abarrota a cabeça do pobre e desamparado educando, atado à sua cadeira pelos vínculos blindados do conformismo! Refiro-me à APRENDIZAGEM - à insaciável curiosidade que leva o adolescente a absorver tudo que pode ver, ouvir ou ler sobre motores a gasolina a fim de aumentar a eficiência e a velocidade do seu "calhambeque". Penso no estudante que diz:

- Estou descobrindo, estou sorvendo algo que me vem de fora, estou fazendo com que isto se insinue numa parte real de mim mesmo.

A aprendizagem a que aludo é aquela na qual a experiência do aprendiz progride nos seguintes estágios:

- Não, não! Não é isto que eu quero.

- Espere! Isto está começando a me interessar, é quase aquilo de que preciso.

- Ah, isto sim! Agora estou apanhando e compreendendo aquilo de que preciso, o que eu quero saber.

Eis o tema, eis o assunto deste livro.


Duas Espécies de Aprendizagem

A aprendizagem, creio, pode ser dividida em duas espécies gerais, dentro da mesma continuidade de significação. Num extremo da escala está a espécie de tarefa que os psicólogos algumas vezes impõem aos seus clientes - a aprendizagem de sílabas sem sentido. Guardar de memória certos itens como baz, ent, nep, arl, lud e outros de igual teor é tarefa difícil. Porque não há significado algum, aprender tais sílabas não é fácil e, se aprendidas, são logo esquecidas.

Com frequência nos negamos a reconhecer que muito do material apresentado aos estudantes em salas de aula tem, para eles, a mesma qualidade desconcertante e destituída de significado que tem, para nós, a lista de sílabas sem sentido. Isto é verdade, sobretudo, para a criança pouco privilegiada, a quem uma experiência anterior não oferece contexto algum dentro do qual se insira o material com que se defronta. Mas quase todo estudante descobre que extensas porções do seu currículo são, a seu ver sem o menor significado. Assim a educação se transforma na frustrada tentativa de aprender matérias sem qualquer significação pessoal.

Tal aprendizagem lida apenas com o cérebro. Só se coloca "do pescoço para cima". Não envolve sentimentos ou significados pessoais; não tem a mínima relevância para a pessoa como um todo.

Em contraste, há algo significante, pleno de sentido - a aprendizagem experiencial. Quando a criança que está aprendendo a andar toca no radiador de aquecimento, aprende por si mesmo o significado de uma palavra - "quente"; capacita-se da necessidade de ter, para o futuro, certo cuidado em relação a objetos semelhantes; a sua aprendizagem é feita de modo tão significativo que dela não se esquecerá tão cedo. Também a criança que guarda de memória "dois mais dois igual a quatro" pode, um dia, ao brincar com seus toquinhos ou com suas bolas de gude, compreender, subitamente que "dois mais dois são quatro". Descobriu algo que, para ela, tem significado, de um modo que envolve, ao mesmo tempo, o seu pensar e o seu sentir. Ou a criança que laboriosamente adquiriu a "habilidade de ler", pode-se ver encantada, um dia, com uma história ilustrada, seja um livro cômico ou um conto de aventuras, e compreende que as palavras têm um poder mágico que a põe fora de si mesma, dentro de um outro mundo. Só então, aprendeu, realmente, a ler.

Marshall McLuhan dá-nos um outro exemplo. Acentua ele que se uma criança de cinco anos é levada a um país estrangeiro, e se lhe é permitido brincar, livremente, durante horas, com seus novos companheiros, sem nenhuma instrução prévia sobre a Língua que eles falam, aprendê-la-á em poucos meses e adquirirá até mesmo a entonação que lhe é própria. Estará aprendendo de um modo que tem significado, que tem sentido para ela, e tal aprendizagem se processa em espaço de tempo extremamente curto. Mas se alguém tentar instruí-la na nova Língua, baseada essa instrução nos elementos que têm significado para o professor, a aprendizagem será tremendamente lenta ou simplesmente não se fará.

Essa ilustração, fundada em fato comum, merece ser bem ponderada. Por que é que a criança, deixada a si mesma, aprende rapidamente, de forma que não se esquecerá tão cedo e por um meio que tem significado eminentemente prático para ela, quando tudo se poderia deteriorar se fosse "ensinada" de maneira a só envolver a sua inteligência? Talvez um exame mais aprofundado nos ajude a responder.


Uma Definição

Definamos, com um pouco mais de precisão, os elementos envolvidos em tal aprendizagem significativa ou experiencial. Tem ela a qualidade de um envolvimento pessoal - a pessoa, como um todo, tanto sob o aspecto sensível quanto sob o aspecto cognitivo, inclui-se no fato da aprendizagem. Ela é autoiniciada. Mesmo quando o primeiro impulso ou o estímulo vêm de fora, o senso da descoberta, do alcançar, do captar e do compreender vem de dentro. É penetrante. Suscita modificação no comportamento, nas atitudes, talvez mesmo na personalidade do educando. É avaliada pelo educando. Este sabe se está indo ao encontro das suas necessidades, em direção ao que quer saber, se a aprendizagem projeta luz sobre a sombria área de ignorância da qual tem ele experiência. O locus da avaliação, pode-se dizer, reside, afinal, no educando. O significado é a sua essência. Quando se verifica a aprendizagem, o elemento de significação desenvolve-se, para o educando, dentro da sua experiência como um todo.


O Dilema

Creio que todos os mestres e educadores preferirão facilitar esse tipo de aprendizagem experiencial e dotada da significação, em vez do outro, o das sílabas sem sentido. Entretanto, na maioria das nossas escolas, em todos os níveis educacionais, ainda nos temos de haver com uma via de acesso tradicional e convencional que torna improvável, se não impossível, a aprendizagem de significação. Quando reunimos em um esquema elementos tais como currículo pré-estabelecido, "devedores" idênticos para todos os alunos, preleções como quase único modo de instrução, testes padronizados pelos quais são avaliados externamente todos os estudantes, e notas dadas pelo professor, como medida de aprendizagem, então, quase podemos garantir que a aprendizagem dotada de significação será reduzida a um mínimo.


Existem Alternativas?

Não é por alguma depravação interior que os educadores seguem tal sistema autofrustrador de ensino. É, quase literalmente, porque não conhecem alternativa exequível. Os elementos que eu acabo de mencionar vieram a ser considerados como a única definição possível de "educação".

Há, porém, alternativas - métodos alternativos práticos de lidar com uma classe ou dirigir um curso - tomadas de posição e hipóteses alternativas capazes de dar estrutura à educação - objetivos e valores alternativos pelos quais educadores e estudantes podem lutar. Espero que tais alternativas se tornem bem claras, nos capítulos que se seguem.


Prólogo (escrito pelo próprio autor) do livro Liberdade Para Aprender, de Carl R. Rogers, Editora Interlivros, 4ª Edição, Belo Horizonte,  1977. Tradução de Edgar Godoi da Matta Machado e Márcio Paulo de Andrade.

sábado, 9 de agosto de 2025

Na Instrumentalidade (84)

"Como se conhecerá o que se toca com a flauta ou com a cítara?" - Paulo. (I CORÍNTIOS, 14:7.)


Cada companheiro de serviço cristão deveria considerar-se instrumento nas mãos do Divino Mestre, a fim de que a sublime harmonia do Evangelho se faça irrepreensível para a vitória completa do bem.

Todavia, se a ilimitada sabedoria do Celeste Emissor se mantém soberana e perfeita, os receptores terrenos pecam por deficiências lamentáveis.

Esse tem fé, mas não sabe tolerar as lacunas do próximo.

Aquele suporta cristãmente as fraquezas do vizinho, contudo, não possui energia nem mesmo para governar os próprios impulsos.

Aquele outro é bondoso e confiante, mas foge ao estudo e à meditação, favorecendo a ignorância.

Outro, ainda é imaginoso e entusiasta, entretanto, escapa sutilmente ao esforço dos braços.

Um é conselheiro excelente, no entanto, não santifica os próprios atos.

Outro retém brilhante verbo na pregação doutrinária, todavia, é apaixonado cultor de anedotas menos dignas com que desfigura o respeito à revelação de que é portador.

Esse estima a castidade do corpo, mas desvaira-se pela aquisição de dinheiro fácil.

Outro, mais além, conseguiu desprender-se das posses de ouro e terra, casa e moinho, mas cultiva verdadeiro incêndio na carne.

É indiscutível a nossa imperfeição de seguidores da Boa Nova.

Por isso mesmo, guardamos o título de aprendizes.

O Planeta não é o paraíso terminado e achamo-nos, por nossa vez, muito distantes da angelitude.

Todavia, obedecendo ou administrando, ensinando ou combatendo, é indispensável afinar o nosso instrumento de serviço pelo diapasão do Mestre, se não desejamos prejudicar-lhe as obras.

Evitemos a execução insegura, indistinta ou perturbadora, oferecendo-lhe plena boa-vontade na tarefa que nos cabe, e o Reino Divino se manifestará mais rapidamente onde estivermos.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

São Outros Quinhentos!

"São outros quinhentos!" vale dizer que são outras razões; é um novo caso; outro aspecto; outra coisa, outro assunto...

É uma frase diária e comum por todo o Brasil dos nossos dias.

Na Visita das Fontes, um apólogo dialogal de D. Francisco Manoel de Melo, publicado em Lisboa em 1657, um Soldado, conversando com a Fonte Velha do Rossio, responde a um reparo mais vivo da sua interlocutora: - Essas são outras mil & quinhentas!

Era, pois, de uso em Lisboa há trezentos e sete anos.

No tesouro da Língua Portuguesa, de Frei Domingos Vieira, há uma notícia complementar: "Isto são outros quinhentos! quer dizer que alguém pronunciou novo disparate afora os que havia já soltado". Quanto à origem e evolução temática, não sei mais nada, presentemente. Ficamos apenas sabendo que a frase é velha de três séculos e nos veio de Portugal.


Retirado do livro Coisas Que o Povo Diz, de Luís da Câmara Cascudo, Global Editora, São Paulo, 2009.

sábado, 2 de agosto de 2025

Avancemos (83)

 "Pelo que, deixando os rudimentos da doutrina do Cristo, prossigamos até à perfeição, não lançando de novo o fundamento do arrependimento de obras mortas." - Paulo. (Hebreus, 6:1)


Aceitar o poder de Jesus, guardar certeza da própria ressurreição além da morte, reconfortar-se ante os benefícios da crença, constituem fase rudimentar no aprendizado do Evangelho.

Praticar as lições recebidas, afeiçoando a elas nossas experiências pessoais de cada dia, representa o curso vivo e santificante.

O aluno que não se retira dos exercícios no alfabeto nunca penetra o luminoso domínio mental dos grandes mestres.

Não basta situar nossa alma no pórtico do tempo e aí dobrar os joelhos reverentemente; é imprescindível regressar aos caminhos vulgares e concretizar, em nós mesmos, os princípios da fé redentora, sublimando a vida comum.

Que dizer do operário que somente visitasse a porta de sua oficina, louvando-lhe a grandeza, sem contudo, dedicar-se ao trabalho que ela reclama? Que dizer do navio admiravelmente equipado, que vivesse indefinidamente na praia sem navegar?

Existem milhares de crentes da Boa Nova nessa lastimável posição de estacionamento. São quase sempre pessoas corretas em todos os rudimentos da doutrina do Cristo. Creem, adoram e consolam-se, irrepreensivelmente; todavia, não marcham para diante, no sentido de se tornarem mais sábias e mais nobres. Não sabem agir, nem lutar e nem sofrer, em se vendo sozinhas, sob o ponto de vista humano.

Precavendo-se contra semelhantes males, afirmou Paulo, com profundo acerto: - "Deixando os rudimentos da doutrina de Jesus, prossigamos até à perfeição, abstendo-nos de repetir muitos arrependimentos, porque então não passaremos de autores de obras mortas."

Evitemos, assim, a posição do aluno que estuda... e jamais se harmoniza com a lição, recordando também que se o arrependimento é útil, de quando em quando, o arrepender-se a toda hora é sinal de teimosia e viciação.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

terça-feira, 29 de julho de 2025

Machado de Assis

É ponto pacífico entre os estudiosos que universalidade e multissignificação são dois traços fundamentalmente  caracterizadores de um texto enquanto literário. A primeira está ligada a uma revelação do Homem, do mundo e da relação entre ambos, cujos espaços de plenitude se busca atingir, através de uma forma específica de linguagem. A segunda vincula-se a esta última, que é necessariamente ambígua e possibilitadora de constante atualização e abertura, estritamente relacionada com o caráter conotativo que a singulariza.

A conotação, ensina a Linguística, implica em universo cultural bem mais variável do que o que se traduz na dimensão denotativa do signo, seja em termos de indivíduos ou de grupos ou classes sociais.

Ao assumir perspectiva radical diante da condição humana, a partir de uma linguagem polissêmica, a Literatura vem assegurando sua permanência e sua atemporalidade. Ao dizer de um tempo, diz de todos os tempos, integrando, unitariamente, presente, passado e futuro.

Assim, cada novo leitor, armado de seu repertório cultural, pode ser capaz de identificar, na dimensão escondida no texto literário, emoções coincidentes com as que povoam o âmago do seu universo psicológico. Isso se torna possível quando a representação simbólica, que se caracteriza na Literatura ultrapassa os limites do meramente individual, histórico ou conjuntural e mobiliza determinadas  componentes da psique humana que se mantêm imunes ao processo modificador peculiar ao percurso histórico-cultural da humanidade.

Há, portanto, certas características que têm aproximado e continuam aproximando os homens de todos os lugares e de todas as épocas. A obra literária tem sido um dos veículos mais eficazes na configuração dessa sintonia. Tais elementos, associados à concretude de determinados fatos de época e a  eles integrados, garantem a natureza do texto de literatura e asseguram o interesse do leitor ou ouvinte. Esse interesse será tão mais permanente, quanto maior for o índice de universalidade atingido pelo texto, como já assinalou Tomachevski e quanto maior for a abertura do texto a novas incursões.

Polissemia e universalidade, portanto, é que permitem que um texto seja atual e permaneça.

É o caso de Machado de Assis.

Sua obra permanece e é atual, na medida em que, em textos multissignificativos, evidencia, a partir de seu testemunho sobre o homem e a realidade de seu tempo, questões relacionadas com o homem de todas as épocas, numa temática que envolve, entre outros destaques o amor, o ciúme, a morte, a afirmação pessoal, o jogo da verdade e da mentira, a cobiça, a vaidade, a relação entre o ser e o parecer, as oscilações entre o Bem e o Mal, a luta entre o absoluto e o relativo.

Se escreve com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, se seus personagens se movem em espaços urbanos do Brasil, notadamente do Rio de Janeiro, essa visão e essa localização em nada diminuem os espaços da reflexão que suas estórias nos lançam diante. Antes, pelo contrário. Sua percuciente visão de mundo aprofunda o nosso mergulho na direção de nos mesmos.

Tomemos, por exemplo, Dom Casmurro. A nível aspectual, a trama é simples como o percurso dos personagens no seu cotidiano. Uma história de amor, uma família de classe média no Rio de Janeiro do século passado, sua ética, seus valores. Ao mesmo nível, o duvidoso adultério, deflagrador do desequilíbrio familiar e convertido em núcleo da ação desenvolvida. Resumida a tal dimensionamento, a obra teria pouco a revelar. Mas quando a lemos como uma revisão existencial do personagem-narrador, buscando "atar as duas pontas da vida e restaurar na velhice a adolescência" como ele mesmo nos informa na narrativa, quando a entendemos, entre outras possibilidades, como um estudo acurado do ciúme e do comportamento psicológico do ser humano, o romance alcança outra representatividade e significação. Nesse contar de vidas, o autor consegue através da simulação do particular, atingir dimensões de universalidade: seus personagens ultrapassam os próprios limites individuais, para se converterem em metonímias do homem do ocidente.

Do percurso existencial também se fazem as Memórias Póstumas de Brás Cubas, como se depreende à primeira leitura, desde os capítulos iniciais da obra. Neste livro, a irônica obsessão do narrador também personagem define bem a linha universalizante assumida e declarada. Sua ideia fixa é nada mais, "nada menos, que a invenção de um medicamento sublime, um emplasto anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade" e, ainda nas suas palavras, uma ideia que "trazia duas fazes, como as medalhas, uma virada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; do outro lado, sede de nomeada. Digamos: amor da glória". Nada mais humano. E carregado de burguesia.

Brás Cubas, sabemos os leitores, não consegue realizar o seu propósito, como não consegue, como tantas pessoas, realizar-se a si mesmo. Daí a revisão que, morto, faz de sua vida. Acentuada pela amarga corrosão. Ele traz a marca do pessimismo trágico. Mas não nos angustia tanto o seu fracasso. Machado amortece a dimensão trágica com a dimensão do humor. A vida continua. Apesar de absurda.

Quincas Borba, mais rico de substância humana do que Brás Cubas, centraliza-se muito mais no fundo irracional que ilustra a precariedade e a incerteza do ser humano do que no jogo das causas que movem os personagens. Rubião é um ingênuo vencido pela fatalidade. Um homem que perde. Perde a fortuna, o amor, a razão, na realidade dilaceradora da existência incompreensível que marca a visão-denúncia de Machado de Assis. Uma tragédia a mais. Amenizada de novo pelo riso acionado pelo tratamento parodístico carnavalizador e satirizador do Positivismo de Augusto Comte e configurado na célebre teoria do humanitismo, explicitado no capítulo IV do romance. Afinal, "ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas" e "bolha não tem opinião".

Relativismo e ambiguidade de comportamento são também as tônicas de Esaú e Jacó, um estudo de caracteres em oposição, apresentado sob a forma de um divertimento lúdico do autor que, apoiado no próprio fazer do livro, integra espaços do mito, do histórico-cultural e do imaginário com predominância deste último. O narrador, a cada momento, direta ou indiretamente, nos coloca diante do método de elaboração que preside a feitura da obra. E frequentemente convoca o leitor para refletir com ele sobre o antagonismo dos gêmeos Pedro e Paulo, a ambiguidade não resolvida de Flora, o equilíbrio sem emoções do Conselheiro Aires, o mesmo do Memorial, a própria técnica de que se está valendo. Gente, gente em crise, debatendo-se nas incertezas das dicotomias, vivida no Conselheiro e por ele contemplada na figura dos demais personagens. Angústias existenciais que se atenuam diante do distanciamento do narrador, que assegura um permanente amortecimento da tensão.

Esse distanciar-se suavizador se torna ainda mais nítido nas reflexões do Memorial de Aires, seu último romance. Nele também se evidencia a visão desenganada, agora  envolvida por uma certa aceitação ou resignação menos ácida, pois a vida "é assim mesmo, uma repetição de atos e meneios como nas recepções, comidas, visitas e outros folgares; nos trabalhos é a mesma coisa. Os sucessos, por mais que o acaso os teça e devolva, saem muita vez iguais no tempo e nas circunstâncias; assim a história, assim a história, assim o resto". O que talvez console é a saudade de si mesmo.

Ainda uma vez, o sentimento da existência subjetiva dos seus personagens, na busca de significações universalizantes, em que a tônica é a relatividade.

Essa preocupação também está presente nos contos machadianos. Nestes, o que importa é ainda a atitude e o sentir dos personagens, mais do que as ações, a trama, o espaço. Com atenção especial ao modo de fazer do texto, à técnica de construção, caracterizada em frequentes exercícios de metalinguagem.

E tudo se dá num processo de elaboração gradativa que, como ressalta com lucidez Alfredo Bosi, vai da "obsessão da mentira", dominante nos Contos Fluminenses à configuração da "força de uma necessidade objetiva que prende a alma frouxa e veleitária de cada homem  ao corpo uno, sólido e manifesto das formas constituídas que me permito denominar a ditadura da aparência evidenciada nos outros seis livros feitos de narrativas curtas.

Entendo e, nesse entender, associo-me, em princípio, às conclusões de Bosi no estudo citado, que, ao satirizar o comportamento comprometido dos personagens com as instituições, a sua subserviência ao parecer, como garantia do sobreviver, ao caracterizar o reconhecimento à necessidade do bem material como forma do estar bem no mundo, Machado não referenda: denuncia, embora não acuse diretamente. É atitude que mantém diante de outras transgressões ou escoriações que atingem o socialmente estabelecido ou esperado pela moral convencional. Quase escrevo burguesa ou pequeno-burguesa.

Em tais termos, seus contos, distribuídos pelos vários livros, publicados em momentos distintos, tratam do autoritarismo das imposições sociais como determinador do comportamento dos indivíduos. Isto claramente se configura em "Teoria do Medalhão", "O Espelho", "O Segredo do Bonzo", "O Anel de Polícrates"; vincula-se à veleidade em "D. Benedita" e em "Verba Testamentária"; liga-se à sátira aos costumes políticos em "A Sereníssima República"; alia-se à crítica ao cientificismo em "O Alienista", todos integrantes de Papéis Avulsos, aparece no retrato psicológico de "Uma Senhora", de Histórias Sem Data, associa-se ao poder corruptor da riqueza e ao requinte de crueldade em "Conto de Escola" e em "O Enfermeiro", textos de Várias Histórias, de certa maneira presentifica-se, relacionado com o jogo da relatividade entre a verdade e a mentira na "Noite de Almirante", de Histórias Sem Data e com a máscara do homem relativizado pelo Bem e pelo Mal em "A Igreja do Diabo", também de Histórias Sem Data.

O adultério é objeto de "A Senhora do Galvão", ainda de Histórias Sem Data, de "A Cartomante", de Várias Histórias e, em termos mentais, velado, de "A Causa Secreta", do mesmo livro, além de juntar-se ao disfarce do entre sonho e realidade na leve sensualidade de "Uns Braços", de Histórias Sem Data, e na sutileza dos meandros da sedução em "Missa do Galo", de Páginas Recolhidas.

A ânsia de perfeição diante da precária condição humana, presente em "Trio Em Lá Menor", de Várias Histórias e também no citado "D. Benedita", aparece, associada à impotência criadora, em "Cantiga de Esponsais", de Histórias Sem Data e em "Um Homem Célebre", de Várias Histórias.

O interesse pessoal sobreposto ao compromisso moral revela-se em "Evolução", de Relíquias de Casa Velha, onde se alia, amenamente, à vaidade individual; figura em "O Caso da Vara", de Páginas Recolhidas e em "Pai Contra Mãe", de Relíquias de Casa Velha, em ambos vinculado a aspectos da escravidão negra, situada ironicamente como condição  paliativa para a torpeza das atitudes configuradas.

A sátira ao poder da ciência e o relativismo dos caminhos da verdade transparecem no "Conto Alexandrino", de Histórias Sem Data.

Nem faltam considerações sobre a arte de escrever em "O Cônego ou Metafísica do Estilo", de Várias Histórias e em "O Dicionário", de Páginas Recolhidas.

Em todos esses contos, como em vários outros do autor, relações humanas a nível de universalização, caracterizadas à luz de aspectos epocais que em nada prejudicam a atualidade das questões apontadas.

Essa atualidade ganha maior relevo porque se associa a uma antecipação da modernidade na ficção brasileira. E aqui retorno opinião que defendi em 1978, em conferência pronunciada na Universidade Federal Fluminense, em curso promovido pela instituição intitulado "Machado de Assis - 70 anos depois" e que, prazeroso, vi coincidir, apoiada em outros argumentos, com posições de José Guilherme Merquior, de João Alexandre Barbosa e de Flávio Loureiro Chaves.

Seus contos e seus romances caracterizam, entre outros traços, o experimentalismo de feição lúdica, a desmitificação da aura, a presença da paródia, a construção gradativa dos personagens através do fluxo de consciência, a valorização dos estados mentais dos personagens mais do que da ação e da trama, o permanente exercício da metalinguagem, a fratura da visão tragicizante através do humor, certa dose de surrealismo, a presença de influências explicitadas, a preferência pela relatividade, a prática da narração como um processo de autorrevisão, o estímulo à participação do leitor na "composição" da obra.

Por tudo que acabo de assinalar e por muitos outros motivos que escapam à natureza deste escrito, a prosa machadiana, no âmbito da arte literária em geral e no espaço da Literatura Brasileira, em particular, continua viva e presente, e presente e viva permanecerá ainda por muito tempo, porque a mentira de sua arte é daquelas que conseguem revelar muito da verdade de nossa complicada condição humana.

Diante da ampla divulgação da obra de Machado de Assis, organizar esta seleção de contos constituiu estimulante desafio.

Excelentes publicações anteriores de natureza semelhante e a machadiana relatividade da adoção de princípios qualitativos de avaliação na área da Literatura levaram-me a adotar um critério em que procurei unir ao juízo crítico individual outros elementos garantidos de alguma objetividade. Parti, então, de alguns referenciais norteadores: a representatividade literária, o prazer da leitura, a consagração do consenso, a natureza do público-alvo, a significação dos textos no contexto machadiano, o dimensionamento didático, a evidência da permanência e da atualidade.

As limitações do livro levaram necessariamente a uma redução do material disponível. Dos sessenta e oito contos escolhidos pelo próprio Machado para figurar nos sete livros que, no gênero, publicou, aqui são apresentados apenas vinte e sete, constantes dos cinco últimos volumes, identificadores da plenitude de sua arte no âmbito da narrativa curta. Não reproduzo, portanto, nenhum texto de Contos Fluminenses, Histórias da Meia-Noite ou de qualquer obra postumamente lançada.

Transcrevi, com a necessária atualização ortográfica, os textos que a Comissão Machado de Assis considerou definitivos, à exceção dos que fazem parte de Papéis Avulsos e Páginas Recolhidas por não estarem publicados até a presente data. No caso destes, vali-me do cotejo de textos das primeiras edições publicadas pela Garnier e da Obra Completa de Machado de Assis, v. 2, lançada pela J. Aguilar.

Adotei, na ordem de apresentação, sequência apoiada na aproximação temática, tal qual explicitei nas considerações sobre permanência e atualidade de Machado de Assis e situei subjetivamente os contos a partir de motivação para a leitura.

À guisa de mobilização de interesse, cada conto é precedido de um pequeno texto, parte dele mesmo. Indiquei também o livro de que cada um faz parte.

Traços biográficos e bibliografia do autor completam o volume.

Agradeço a Edla Van Steen, Diretora da Série, e à Global Editora o convite para assumir a responsabilidade deste trabalho e, a propósito do que possa significar a presente seleção, faço minhas as palavras do bom Joaquim Maria: "Depende de tua impressão, leitor amigo, como dependerá de ti a absolvição da má escolha".

Gratíssimo pela gentileza da atenção e a honra da acolhida.

Domício Proença Filho

Rio de Janeiro, agosto de 1983.


Prefácio retirado do livro Os Melhores Contos de Machado de Assis, seleção de Domício Proença Filho, Global Editora, 6ª Edição, São Paulo, 1991.

segunda-feira, 28 de julho de 2025

Uma Esperança

Aqui em casa pousou uma esperança. Não a clássica que tantas vezes verifica-se ser ilusória, embora mesmo assim nos sustente sempre. Mas a outra, bem concreta e verde: o inseto.

Houve um grito abafado de um de meus filhos:

- Uma esperança! E na parede bem em cima de sua cadeira! Emoção dele também que unia em uma só as duas esperanças, já tem idade para isso. Antes surpresa minha: esperança é coisa secreta e costuma pousar diretamente em mim, sem ninguém saber, e não acima de minha cabeça numa parede. Pequeno rebuliço: mas era indubitável, lá estava ela, e mais magra e verde não podia ser.

- Ela quase não tem corpo, queixei-me.

- Ela só tem alma, explicou meu filho e, como filhos são uma surpresa para nós, descobri com surpresa que ele falava das duas esperanças.

Ela caminhava devagar sobre os fiapos das longas pernas, por entre os quadros da parede. Três vezes tentou renitente uma saída entre dois quadros, três vezes teve que retroceder caminho. Custava a aprender.

- Ela é burrinha, comentou o menino.

- Sei disso, respondi um pouco trágica.

- Está agora procurando outro caminho, olhe, coitada, como ela hesita.

- Sei, é assim mesmo.

- Parece que esperança não tem olhos, mamãe, é guiada pelas antenas.

- Sei, continuei mais infeliz ainda.

Ali ficamos, não sei quanto tempo olhando. Vigiando-a como se vigiava na Grécia ou em Roma o começo de fogo do lar para que não apagasse.

- Ela se esqueceu de que pode voar, mamãe, e pensa que só pode andar devagar assim.

Andava mesmo devagar - estaria por acaso ferida? Ah não, senão de um modo ou de outro escorreria sangue, tem sido sempre assim comigo.

Foi então que farejando o mundo que é comível, saiu de trás de um quadro uma aranha. Não era uma aranha, mas me parecia "a" aranha. Andando pela sua teia invisível, parecia transladar-se maciamente no ar. Ela queria a esperança. Mas nós também queríamos e, oh! Deus, queríamos menos que comê-la. Meu filho foi buscar a vassoura. Eu disse fracamente, confusa, sem saber se chegara infelizmente a hora certa de perder a esperança:

- É que não se mata aranha, me disseram que trás sorte...

- Mas ela vai esmigalhar a esperança! - Respondeu o menino com ferocidade.

- Preciso falar com a empregada para limpar atrás dos quadros - falei sentindo a frase deslocada e ouvindo o certo cansaço que havia na minha voz. Depois devaneei um pouco de como eu seria sucinta e misteriosa com a empregada: eu lhe diria apenas: você faz o favor de facilitar o caminho da esperança.

O menino, morta a aranha, fez um trocadilho, com o inseto e a nossa esperança. Meu outro filho, que estava vendo televisão, ouviu e riu de prazer. Não havia dúvida: a esperança pousara em casa, alma e corpo.

Mas como é bonito o inseto: mais pousa que vive, é um esqueletinho verde, e tem uma forma tão delicada que isso explica por que eu, que gosto de pegar nas coisas, nunca tentei pegá-la.

Uma vez, aliás, agora é que me lembro, uma esperança bem menor que esta, pousara no meu braço. Não senti nada, de tão leve que era, foi só visualmente que tomei consciência de sua presença. Encabulei com a delicadeza. Eu não mexia o braço e pensei: "e essa agora? Que devo fazer?" Em verdade nada fiz. Fiquei extremamente quieta como se uma flor tivesse nascido em mim. Depois não me lembro mais o que aconteceu. E, acho que não aconteceu nada.


Conto de Clarice Lispector retirado do livro Felicidade Clandestina, Editora Nova Fronteira, 3ª Edição, Rio de Janeiro, 1981.

domingo, 27 de julho de 2025

Prefácio à 1ª Edição do livro Além do Carnaval

Conheci James Green nos anos 70. Ambos recém-chegados ao Brasil. James, mais jovem, dando aulas de Inglês em São Paulo; eu, um pouco mais velho, dando aulas de Antropologia em Campinas. Meu amigo e então aluno Edward MacRae estava muito ativo no incipiente movimento gay de São Paulo e o apartamento dele, na Praça da República, virou um ponto de encontro de muita gente, entre os quais James. Naqueles tempos idos do regime militar a "política de identidades", desenvolvida por feministas, negros, índios e gays, tinha não pouca dificuldade em ganhar a simpatia dos amigos da esquerda "marxisante". Este pregavam que a vitória da "luta maior", ou seja, do socialismo, resultaria inexoravelmente no fim da opressão das assim chamadas "minorias" sexuais, étnicas e de gênero. Dessa óptca, os movimentos das "minorias" eram desqualificadas como uma forma de "luta menor". James era um entre vários que tentavam construir pontes entre as duas posições.

Eu não tinha muito jeito para militância. Tinha tentado me envolver com o movimento gay nos Estados Unidos, mas descobri que não me identificava com a aparente necessidade de subordinar tudo a uma única identidade. Uma das minhas identidades, a de antropólogo, vinha consolidar uma dificuldade de me conformar com aquelas identidades fixas e naturalizadas que supostamente governam ou devem governar toda nossa sociabilidade. A antropologia me ajudava a pensar essas identidades em sua gênese social e histórica, ou seja, como construções nascidas, consolidadas, enfraquecidas e mortas ao longo do tempo e nos espaços sociais.

Tentei reconciliar minha simpatia pela luta contra o preconceito em relação à homossexualidade com minhas restrições à militância por meio da pesquisa de campo e da escrita, até mesmo como membro fundador do jornal Lampião de Esquina. Comecei a entender que o mundo que conhecera na Inglaterra, dividido entre homossexuais e heterossexuais, representava apenas uma maneira de organizar as relações sexuais. Aqui no Brasil, ficou cada vez mais claro que para muita gente era demasiado importante saber da "atividade" ou "passividade" sexual dos homens, e que, para alguns, o parceiro sexual ideal deveria ser um "homem mesmo", de preferência com mulher e filhos. Mais  importante do que o sexo dos parceiros era a sua relativa "masculinidade" ou "feminilidade". Assim, "bicha" com "bicha" seria uma forma de lesbianismo. Numa pesquisa sobre os cultos afro-brasileiros, facilitada pela minha amiga e então aluna Anaiza Vergolino e Silva, pude ver esse "sistema" na sua forma mais acabada. Com o tempo, porém, ficou também claro que essa não era a única maneira de organizar as relações sexuais e afetivas entre homens no Brasil. Surgia nas classes médias urbanas uma forma de pensar e praticar relações sexuais e afetivas entre homens que era muito semelhante ao que me era familiar na Inglaterra. Nesse meio, todos os homens que mantinham relações com outros homens, independentemente do que faziam na cama, eram considerados homossexuais. Além disso, havia um certo repúdio à divisão entre "ativos" e "passivos" e uma ênfase crescente na igualdade entre parceiros. Essa posição foi mais ou menos predominante no movimento homossexual que espelhava o movimento feminista com sua crítica aos papéis de gênero convencionais. Eu identificava essa nova forma de pensar as relações entre gente do mesmo  sexo (o mesmo movimento se dava entre as mulheres) como mais um aspecto da formação da ideologia individualista nas classes médias urbanas já identificada por antropólogos amigos meus, principalmente no Museu Nacional, onde lecionava à época. Mas depois de escrever alguns artigos, parti para outras bandas. Entre outras coisas, tinha medo de me tornar um "homossexual profissional". Vi que a antropologia pós-moderna estava rumando para uma espécie de solipsismo. A sua origem calcada no encontro entre uns e outros diferentes estaria dando lugar a um novo ethos que privilegiaria encontros entre semelhantes; mulheres escrevendo sobre mulheres; homossexuais sobre homossexuais; negros sobre negros; subalternos sobre subalternos, e assim por diante. Pode ser que estivesse enganado, mas pressentia que essa tendência sinalizava mais uma etapa na concretização e naturalização das identidades sociais.

Mas, evidentemente, nunca deixei de me interessar por pesquisas sobre sexualidade, e fico cada vez mais feliz com a qualidade das pesquisas sobre sexualidade, em geral, e sobre homossexualidade, em particular, no Brasil. E é por isso que felicito James Green pela sua esplêndida história dos homens que gostam de outros homens no Rio de Janeiro e em São Paulo do fim do século XIX até 1980, agradecendo-lhe a honra de escrever este prefácio.

Depois da sua passagem por São Paulo na década de 1970, James Green voltou para os Estados Unidos e para a academia, cursando o seu doutorado em História na Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Mas James não é apenas um narrador de histórias. Combina o afã do historiador de adentrar o passado por meio de cuidadosa pesquisa de arquivos, literatura de época e entrevistas com os sobreviventes de tempos idos, com clara preocupação "antropológica" em entender a lógica cultural de cada situação histórica e as continuidades e transformações que podem ser detectadas entre cada uma delas. Isso ele faz não procurando verificar uma "identidade homossexual" perene e imutável ao longo do tempo, mas justamente verificando a maneira pela qual os seus "nativos" (e aqui inclui os homens que gostaram de outros homens, e todos os outros, médicos, jornalistas, policiais, religiosos, psiquiatras que opinaram sobre o assunto) conceituaram o sexo entre homens e a natureza dos homens, eles próprios envolvidos nessa atividade. E, para evitar que a sua própria linguagem se imponha ao material pesquisado, mantendo, dessa forma, uma saudável distância entre os conceitos do narrador e os dos seus personagens, James Green lança mão de termos como "homens que procuraram outros homens para aventuras sexuais", "erotismo do mesmo sexo", "homens que gostam de relações sociais e eróticas com outros homens" para descrever o "objeto" do seu estudo. Perfeito! Como o leitor verá, este livro tem a seriedade que se exige de uma tese de doutorado, mas é escrito numa linguagem direta e acessível a todos.

Além do Carnaval vai muito mais adiante que as minhas primeiras intuições sobre a estruturação da homossexualidade no Brasil. Embora verifique a presença de um movimento geral do modelo "ativo-passivo", "bicha-bofe" para "homossexual-homossexual" ao longo do século, James demonstra a existência de uma certa identidade entre homens que gostam de outros homens, independentemente da sua suposta "atividade" ou "passividade", anterior ao surgimento de uma identidade de "entendidos" na década de 1940, e, mais tarde, de "gay" na década de 1970. Na sua descrição da sociedade homoerótica no Rio de Janeiro na virada do século XIX para o século XX, James identifica a presença da figura do fanchono, que teria sido um homem associado ao papel de "ativo" nas relações sexuais, mas com uma distinta preferência para sexo com outros homens, e não faute de mieux. Todos, argumenta James, compartilhavam o mesmo mapa moral da cidade e as regras que subentendiam as relações sexuais e eróticas entre eles. E, embora não sendo o seu material disponível para a descrição e análise desse período relativo aos frescos e fanchonos, eles próprios, mas sim aos agentes de polícia, escritores e chargistas, a maioria deles do lado de fora do mundo das relações homoeróticas, há fortes evidências de que o que se fazia sexualmente nem sempre estava de acordo com as regras estabelecidas no modelo "ativo-passivo". Mas como poderia ser de outra forma? Afinal, são as regras que definem as contravenções e, como James nota, os médicos ficaram um tanto perplexos com os homens que se declararam simultaneamente "ativos" e "passivos". Quebrando a taxonomia estabelecida se tornam, evidentemente, anômalos.

Uma outra virtude deste livro está nas relações que o autor estabelece entre o mundo dos homens que gostam de outros homens e as grandes mudanças sociais, políticas e econômicas ao longo desses oitenta anos. James Green incorpora a história de homens que gostam de outros homens à história geral desse período. Primorosa é a sua análise da relação entre as migrações rural-urbana e Nordeste-Sudeste que acompanharam a industrialização do país, e a importância desta para a trajetória de jovens com gostos homossexuais. Estes puderam encontrar uma vibrante sociabilidade dos grandes centros urbanos, particularmente Rio de Janeiro e São Paulo, mesmo que, escapando do opróbrio familiar, corressem o risco de cair nas garras das autoridades policiais e da medicina legal. Embora a homossexualidade per se nunca tenha sido considerada ilegal no período que James estuda, havia leis que permitiam a repressão policial, entre as quais a de vadiagem e a do atentado ao pudor. Há uma análise extensiva da produção científica dos médicos e legistas sobre o assunto, e o autor demonstra claramente a dívida destes para com os produtores de teorias da Europa enquanto tentavam dar conta do que observavam no Brasil. Não chega a ser surpresa que a maioria dos que caíam nas mãos da polícia e dos médicos eram os sempre mais vulneráveis nesta sociedade: os negros e os pobres em geral. É por essa razão que o historiador tem mais acesso a informações sobre a homossexualidade entre pobres e negros do que as camadas médias e altas. Essa concentração de negros e pobres nos gabinetes de polícia, argumenta James, permite uma associação entre "doença" e "perversão sexual" com os "atavismos" associados aos descendentes de africanos no Brasil, comum na literatura médico-legal.

Outro ponto alto deste livro é a reconstrução de vida de homens que gostaram de outros homens pela análise da sua produção jornalístico-caseira ao longo das décadas de 1960 e 1970. Esse material somado aos depoimentos de quem fez esses jornais, reproduzidos por meio de copiadores, resulta num rico entendimento da sociabilidade da época, bem como das regras implícitas que a governavam. E o que chama a atenção do autor, e do leitor também, é a capacidade que essa gente possui de criar uma solidariedade baseada em preocupações e gostos compartilhados. Essa solidariedade não é, sem dúvida, ausente de tensões internas e brigas de ciúmes, por um lado, nem, por outro, de posturas divergentes perante a homossexualidade. Ainda assim, essa solidariedade revela uma enorme capacidade para a criatividade e produção de prazer, apesar de estar rodeada pela hostilidade de grande parte do mundo. Penso, até, que a malícia, como que ritualizada, poderia ser interpretada contraintuitivamente como mais um ingrediente da solidariedade. Fale mal, mas fale de mim...

A parte final do livro trata do período militar. Apesar de ataques moralizantes sobre a imprensa homossexual e investidas dos policiais contra os travestis de São Paulo, esse período também viu o nascimento de música e teatro populares, que vão colocar em questão os papéis de gênero convencionais, viu o nascimento de uma identidade e de grupos militantes "gay", bem como o surgimento de uma imprensa profissional que vai esmagar a produção caseira anterior, e o crescimento de uma pletora de bares e boates para atender ao "mercado gay". É justamente aqui que vamos encontrar a tensão, à qual me referi no início do prefácio, entre um socialismo convencionalmente marxista e um de viés mais libertário. Há também uma tensão entre o estilo "leve", malicioso e espalhafatoso da sociabilidade homossexual revelada no carnaval e na imprensa caseira e um novo estilo "sério" e reivindicatório que surge junto com o movimento gay.

É evidente que este livro muito interessará aos homens que gostam de outros homens. Mas não só a esses. As relações de James Green estabelece entre as mudanças na vida social dos homens que gostam de outros homens e as transformações na sociedade como um todo fazem que esta obra tenha uma importância muito mais abrangente. É de esperar que agrade também a todos aqueles que se interessam pela história recente do Brasil, afinal, acrescenta-se uma dimensão da história social do Brasil que não pode ser ignorada por ninguém.

A narrativa de Além do Carnaval termina no ano de 1980. Resta ainda um outro livro a ser escrito: a calamidade da Aids, por um lado, e, por outro, a vertiginosa expansão das redes e serviços para homens que gostam de homens, tal como se observa ao longo dos últimos vinte anos do século XX. É de esperar que James Green tenha vontade e tempo de trazer a sua história para os dias de hoje. Creio que vai encontrar muitas das mesmas tensões que notou anteriormente, pois sabemos que o processo social não descarta o passado quando inaugura o aparentemente novo. A Aids veio para ressuscitar as velhas relações entre homossexualidade e doença. Preocupações com "atividade" e "passividade" continuam a permear o campo das relações sexuais entre homens. Há ainda os desentendimentos entre aqueles que imaginam uma identidade "gay" transcultural e transecular e aqueles que preferem pensar na particularidade dos arranjos de cada lugar e cada tempo. E é também impossível não ver no presente a mesma tensão entre o ódio homófobo, que resulta em chantagem e morte, e a persistente produção de um "mundo vibrante" pelos homens que gostam de outros homens. Viva!


Prefácio de Peter Fry à 1ª edição do livro Além do Carnaval - A homossexualidade masculina no Brasil do século XX, de James N. Green, Editora Unesp, São Paulo, 2019, 2ª Edição.