terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

O risco do desencanto

           Mário Sérgio Cortella

                             Desânimo é sinal de envelhecimento
                             do espírito inquieto que deve marcar
                             a prática pedagógica

Começa mais um ano letivo. Ano novo? Para muitas pessoas que trabalham com educação, não. A tentação delas é entrar na escola cantando cinicamente: " Já conheço os passos dessa estrada, sei que não vai dar em nada, seus segredos sei de cor; já conheço as pedras do caminho e sei também que ali sozinho vou ficar, tanto pior. "

Esses versos melancólicos iniciam uma genial canção de sofrimento afetivo, Retrato em Branco e Preto, criada por Tom Jobim e Chico Buarque em 1968. Aquele foi um ano especial, no qual, pelo mundo afora, milhares de jovens em revolta romântica expressaram inconformidade e desejaram vida coletiva melhor, apoiada em uma ideia - ridicularizada até hoje pelos idiotas do realismo - da paz e do amor. Foram além aqueles jovens, ao empunharem dois lemas essenciais para romper os laços da reclusão voluntária em um presente que aparenta ser insuperável: " A imaginação no poder " e " Sejamos realistas: queiramos o impossível. "

Ora, não são poucos os que, agora mais idosos e atuando na docência ou gestão das escolas, sonharam intensamente naquele período, mas acabaram perdendo a imaginação, tornando-se reféns do possível. Assim, esses são capazes de recomeçar o ano letivo como um fardo a ser carregado tal como sempre o foi, tomando como guia uma outra estrofe da mesma canção: " Lá vou eu de novo como um tolo, procurar o desconsolo que cansei de conhecer; novos dias tristes, noites claras. "

Essa postura desanimada é sinal de envelhecimento do espírito inquieto e desafiador que deve marcar a prática pedagógica; essa submissão ao " estado das coisas como elas estão " é indício de adoecimento da amorosidade compartilhada que insufla o encanto docente. Desanimar é tirar a animação, isto é a anima, a alma, o espírito vital que fortalece e dá sentido à nossa profissão e compromisso.

É sempre necessário lembrar as palavras de Paulo Freire - incansável construtor do impossível. " Quando a gente diz: ' a luta continua ', significa que não dá para parar. O problema que a provoca está aí presente. É possível e normal um desalento. O que não é possível é que o desalento vire desencanto e passe a imobilizar. "

De fato, não pode ser possível que o desalento vire desencanto e imobilize nossa ação. Há muito para ser feito, reinventado, recriado, renovado; os problemas aí continuam e precisam ser conjuntamente enfrentados. A desistência ou a indiferença indicam o falecimento da esperança e, nessa condição, é melhor ser íntegro e honesto e procurar outros caminhos fora da educação.

O bom nestes nossos tempos de recomeço é render-se à paixão educativa que nos envolve e murmurar, sem ingenuidade, mas com convicção, um outro pedaço de nós na mesma canção: " O que é que eu posso contra o encanto desse amor que eu nego tanto, evito tanto, e que no entanto, volta sempre a enfeitiçar? " 

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Lua Que Vem

                Isolda/Joanna

Lua que ilumina o meu amor
Conta pra ele
Que minha saudade não deixou
Eu longe dele
Que toda vez que eu lembro
Ainda faz bater meu coração
Lua, diz pra ele se lembrar do meu carinho
Que nada mudou nem mudará nossos caminhos
Que ainda eu acredito
Nesse amor escrito em minhas mãos
Vem, lua que vem
Lua crescente, traz urgente quem amei
Traz pra ficar
Pode levar lua minguante de saudade
E me ilumina também
Lua que vem, vem lua nova,
Traz de volta o que é meu
Anoiteceu mas nosso amor traz
Lua cheia de saudade
Eu sei que ele não me esqueceu

Música que abre o CD " Sempre em meu coração " de Joanna, lançado em 1995.

A Idade de Ser Feliz

           Mário Quintana

Existe somente uma idade para a gente ser feliz,
somente uma época na vida de cada pessoa em que é possível
sonhar e fazer planos e ter energia bastante para realizá-los
a despeito de todas as dificuldades e obstáculos.

Uma só idade para a gente se encantar com a vida
e viver apaixonadamente
e desfrutar tudo com toda intensidade
sem medo nem culpa de sentir prazer.

Fase dourada em que a gente pode criar e recriar a vida
à nossa própria imagem e semelhança
e vestir-se com todas as cores
e experimentar todos os sabores
e entregar-se a todos os amores
sem preconceito, nem pudor.

Tempo de entusiasmo e coragem
em que todo desafio é mais um convite à luta
que a gente enfrenta com toda disposição de tentar algo novo,
de novo e de novo,
e quantas vezes for preciso.

Essa idade tão fugaz na vida da gente
chama-se presente
e tem a duração do instante que passa...

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Lígia

                  Tom Jobim

Eu nunca sonhei com você
Nunca fui ao cinema
Não gosto de samba
Não vou a Ipanema
Não gosto de chuva
Nem gosto de sol

E quando eu lhe telefonei
Desliguei, foi engano
Seu nome não sei
E esqueci no piano
As bobagens de amor
Que eu iria dizer
Lígia, Lígia

Eu nunca quis tê-la a meu lado
Num fim de semana
Um chope gelado
Em Copacabana
Andar pela praia
Até o Leblon

E quando eu me apaixonei
Não passou de ilusão
O seu nome rasguei
Fiz um samba-canção
Das mentiras de amor
Que aprendi com você
Lígia, Lígia

E quando você me envolver
Nos teus braços serenos
Eu vou me render
Mas teus olhos morenos
Me metem mais medo
Que eu raio de sol
Lígia, Lígia

Luíza

                  Tom Jobim

Rua
Espada nua
Boia no céu imensa e amarela
Tão redonda a lua
Como flutua
Vem navegando
O azul do firmamento
E num silêncio lento
Um trovador cheio de estrelas
Escuta agora
A canção que eu fiz
Pra te esquecer,
Luíza
Eu sou apenas um pobre amador
Apaixonado
Um aprendiz do teu amor
Acorda amor
Que eu sei que embaixo desta neve
Mora um coração
Vem cá, Luíza
Me dá tua mão
O teu desejo é sempre o meu desejo
Vem, me exorciza
Dá-me tua boca
E a rosa louca
Vem de dar um beijo
E um raio de sol
Nos teus cabelos
Como um brilhante que partindo a luz
Explode em sete cores
Revelando, então, os sete mil amores
Que eu guardei somente
Pra te dar, Luíza

À beira do precipício

              Maria Maura Fadel

Pela terceira vez o semáforo ficou verde, depois amarelo e finalmente vermelho, mas os carros continuaram parados. Mais uma vez ele pensou no absurdo que era levar quase duas horas para cumprir um trajeto que poderia, tranquilamente, ser feito em 30 minutos em um dia com pouco movimento. Irritado, tirou as mãos do volante e esfregou os olhos com força. Tentou respirar fundo, mas o ar estava escasso. Calor intenso, irritante. Talvez nem estivesse tão quente, ponderou, mas sua sensação era de sufocamento. Abriu os vidros e o som da avenida agrediu seus ouvidos. À sua frente havia um mar de veículos até onde a vista alcançava.

E aí, tio, vai água?, perguntou o menino sardento de voz esganiçada e cabelos espetados, parado do lado de fora, vasculhando o interior do carro com olhos atentos. As palavras inesperadas o arrancaram de seus pensamentos de maneira abrupta. Sentiu um arrepio ao longo da espinha, como se estivesse sob grande risco. Quando ele se recompôs do susto, ia responder que sim, queria uma garrafa, mas o vendedor já ia longe, ziguezagueando entre os carros. Enquanto acompanhava o garoto levando uma caixa de isopor desaparecer atrás de um caminhão, muitos metros adiante, um pensamento se sobrepôs às sensações. " Estou preso aqui ", repetiu baixinho. Mal acabou de pronunciar as palavras, uma dor aguda atingiu sua têmpora esquerda, fazendo a cabeça inteira latejar. Pressentia que estava em perigo e precisava urgente se livrar do mal-estar. " Talvez eu esteja ficando louco ", considerou, com uma ponta de irritação, sentindo-se traído pelo corpo e pelas emoções, durante tanto tempo mantidos sob controle.

" Preciso me acalmar, preciso me acalmar, preciso me acalmar ",  murmurava com insistência. As palavras, entretanto, pareciam surtir efeito contrário. O doloroso desconforto que o rondava havia dias - meses, talvez, nem sabia mais dizer - tomava forma. A fisgada, agora, o atingia no peito. Sentindo a boca seca e o coração pulsando forte e descompassado, tentou alcançar o telefone celular no bolso do paletó, mas o cinto de segurança impedia movimentos. Tateou a fivela, procurando destravá-la, mas seus dedos gelados não lhe obedeciam.

O ar ficava mais rarefeito a cada segundo e o desespero foi se alastrando, tomando conta de sua alma. Lágrimas escorriam por seu rosto sem que pudesse controlá-las. Esfregou o peito, procurando afastar a dor, agora difusa, e agarrou o tecido da camisa social empapada de suor. Seu corpo todo tremia. Preso naquele carro, numa versão contemporânea de catacumba, ele sucumbia anônimo, envolto em monóxido de carbono, asfalto e indiferença.Perdia-se de si mesmo, como se caminhasse rumo a um precipício de forma automática, dissociada de qualquer possibilidade de desejo. Já não era sujeito de sua própria vida - a vida, aliás, se esvaía, constatou, apavorado. Tentou gritar, implorar por ajuda, mas a voz embotada não saía de sua garganta.

Agora sabia, o colapso era iminente. Mais uma vez, quase sem forças, procurou o celular. Precisava pedir socorro, precisava sobreviver. Conseguiu agarrar o aparelho no exato momento em que um som estridente chamou sua atenção. Já não sabia especificar se o ruído estava dentro ou fora de sua cabeça. Fechou os olhos por um segundo e se deu conta de que o motorista no carro esporte, atrás do seu, buzinava desesperadamente. Só então percebeu que a fila andara alguns metros. Se tivesse se esforçado, talvez pudesse ter acelerado, mas não o fez. Preferiu direcionar suas forças para outra ação. Apertou a tecla de discagem automática e após alguns segundos ouviu a voz de sua mulher. Esgotado, sentindo o mundo girar, reuniu suas últimas fagulhas de energia para avisar: " Estou morrendo... ". A despeito dos gritos do outro lado da linha e da motorista do carro de trás ainda buzinando freneticamente, deixou o telefone escorregar de suas mãos. Lentamente destravou a porta e saiu caminhando com passos incertos em meio aos carros. Precisava sobreviver...

Matéria publicada na edição especial 3 " Doenças do Cérebro - Estresse e Ansiedade " da revista  Mente Cérebro da Duetto Editorial.

A autora é psicóloga e psicanalista. 

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Pra Rua Me Levar

      Ana Carolina/Totonho Villeroy


Não vou viver
Como alguém que só espera um novo amor
Há outras coisas no caminho onde eu vou
Às vezes ando só trocando passos com a solidão
Momentos que são meus e que não abro mão

Já sei olhar o rio por onde a vida passa
Sem me precipitar e nem perder a hora
Escuto o silêncio que há em mim e basta
Outro tempo começou pra mim agora

Vou deixar a rua me levar
Ver a cidade se acender
A lua vai banhar esse lugar
E eu vou lembrar você

É, mas tenho ainda muita coisa pra arrumar
Promessas que me fiz e que ainda não cumpri
Palavras me aguardam o tempo exato pra falar
Coisas minhas talvez você nem queira ouvir

Música do CD Estampado, de Ana Carolina, lançado em 2003.

domingo, 6 de janeiro de 2013

Hoje a noite não tem luar

            A. Monroy Fernandez/C. Villa de la Torre
              versão: Carlos Colla

Ela passou do meu lado
' Oi amor ', eu lhe falei
' Você está tão sozinha '
Ela então sorriu pra mim
Foi assim que a conheci
Naquele dia junto ao mar
As ondas vinham beijar a praia
O sol brilhava de tanta emoção
Um rosto lindo como o verão
E um beijo aconteceu
Nos encontramos à noite
Passeamos por aí
E num lugar escondido
Outro beijo lhe pedi
Lua de prata no céu
O brilho das estrelas no chão
Tenho certeza que não sonhava
A noite linda continuava
E a voz tão doce que me falava
O mundo pertence anós
E hoje a noite não tem luar
E eu estou sem ela
Já não sei onde procurar
Não sei onde ela está
Hoje a noite não tem luar
E eu estou sem ela
Já não sei onde procurar
Onde está meu amor

Música do CD Acústico da Legia Urbana gravado em 1992 e lançado apenas em 1999, três anos após a morte de Renato Russo.

O enigma das duas luas

                Maria Maura Fadel


A poesia de Alphonsus de Guimaraens revela a dicotomia presente no delírio, que pode ser interpretada como metáfora da cisão psíquica e dos dois polos do transtorno bipolar:

                     Ismália

" Quando Ismália enlouqueceu
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu, 
Viu outra no mar.
No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...
E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...
E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...
As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar... "

A insanidade de Ismália, apresentada na poesia homônima do mineiro Alphonsus Henriques da Costa Guimaraens (1870-1921), ressalta a dicotomia psíquica. Na torre - que pode ser entendida metaforicamente como um lugar inacessível a outras - a moça sonha, conteúdos inconscientes a invadem e seu desejo é marcado pelo delírio. Embora não caiba aqui traçar o diagnóstico, é possível falar em cisão psíquica e associá-lo à palavra esquizofrenia -  termo de origem grega cunhado em 1911 pelo psiquiatra suíço Eugen Bleuler, que remete à ideia de " mente partida ". Também não seria despropositado estabelecer relação com o transtorno bipolar, fortemente marcado por dois polos: o da depressão e o da mania.

A obra de Guimaraens, que tem como forte característica a presença do tema da morte (possivelmente uma influência da perda da noiva, quando o poeta tinha 18 anos), também revela a divisão. Céu e mar podem ser entendidos tanto como representações de dois extremos - tendo entre eles o vazio da razão no qual a personagem se lança - quanto da realidade que se mistura à fantasia, confundindo-as. Em seu desvario, Ismália desconhece limites, alucina e atira-se em direção às águas. É possível inferir que, ao fim da queda, o elemento a invade, assim como os conteúdos inconscientes que durante o surto tomam o ego, fazendo com que os limites entre instâncias mentais desapareçam e delírio e realidade se misturem - céu e mar se encontrem.

Há na doença mental um enigma, uma espécie de vivência onírica na qual se perde; as imagens, os sons e os sentidos escapam e se escondem. Descobrimos com Freud, no início do século 20, porém, que existe no discurso do louco algo a ser revelado, uma lógica própria que merece ser ouvida, sem perder de vista que tanto no caso do transtorno bipolar (TB) quanto na esquizofrenia o paciente se enreda no mistério sobre de si antes mesmo de receber o diagnóstico.

Mas é preciso estar atento: em meio ao sofrimento vivido não só pelo paciente mas também por aqueles que o amam e o acompanham, muitas vezes se apaga qualquer vestígio de poesia. E a torre torna-se inacessível, alta demais.

Qual o papel dos profissionais da área da saúde diante desses transtornos reconhecidos pela ciência como incuráveis? Podemos pensar que caiba a psicólogos, psicanalistas, médicos, acompanhantes terapêuticos, terapeutas ocupacionais e assistentes sociais tecer uma " rede multidisciplinar de proteção " em conjunto com a família e principalmente com o próprio paciente. Um amparo que leve em conta ingredientes fundamentais como informação e responsabilização, capazes de preservar o encanto do céu, mas também de tornar mais nítido o reflexo no mar - sem que a atração pela lua seja fatal. 

Matéria publicada na edição especial 2 " Doenças do Cérebro - Esquizofrenia " da revista Mente Cérebro da Duetto Editorial.

A autora é psicóloga e psicanalista. 

Dschinghis Khan - Moskau