domingo, 6 de janeiro de 2013

O enigma das duas luas

                Maria Maura Fadel


A poesia de Alphonsus de Guimaraens revela a dicotomia presente no delírio, que pode ser interpretada como metáfora da cisão psíquica e dos dois polos do transtorno bipolar:

                     Ismália

" Quando Ismália enlouqueceu
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu, 
Viu outra no mar.
No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...
E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...
E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...
As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar... "

A insanidade de Ismália, apresentada na poesia homônima do mineiro Alphonsus Henriques da Costa Guimaraens (1870-1921), ressalta a dicotomia psíquica. Na torre - que pode ser entendida metaforicamente como um lugar inacessível a outras - a moça sonha, conteúdos inconscientes a invadem e seu desejo é marcado pelo delírio. Embora não caiba aqui traçar o diagnóstico, é possível falar em cisão psíquica e associá-lo à palavra esquizofrenia -  termo de origem grega cunhado em 1911 pelo psiquiatra suíço Eugen Bleuler, que remete à ideia de " mente partida ". Também não seria despropositado estabelecer relação com o transtorno bipolar, fortemente marcado por dois polos: o da depressão e o da mania.

A obra de Guimaraens, que tem como forte característica a presença do tema da morte (possivelmente uma influência da perda da noiva, quando o poeta tinha 18 anos), também revela a divisão. Céu e mar podem ser entendidos tanto como representações de dois extremos - tendo entre eles o vazio da razão no qual a personagem se lança - quanto da realidade que se mistura à fantasia, confundindo-as. Em seu desvario, Ismália desconhece limites, alucina e atira-se em direção às águas. É possível inferir que, ao fim da queda, o elemento a invade, assim como os conteúdos inconscientes que durante o surto tomam o ego, fazendo com que os limites entre instâncias mentais desapareçam e delírio e realidade se misturem - céu e mar se encontrem.

Há na doença mental um enigma, uma espécie de vivência onírica na qual se perde; as imagens, os sons e os sentidos escapam e se escondem. Descobrimos com Freud, no início do século 20, porém, que existe no discurso do louco algo a ser revelado, uma lógica própria que merece ser ouvida, sem perder de vista que tanto no caso do transtorno bipolar (TB) quanto na esquizofrenia o paciente se enreda no mistério sobre de si antes mesmo de receber o diagnóstico.

Mas é preciso estar atento: em meio ao sofrimento vivido não só pelo paciente mas também por aqueles que o amam e o acompanham, muitas vezes se apaga qualquer vestígio de poesia. E a torre torna-se inacessível, alta demais.

Qual o papel dos profissionais da área da saúde diante desses transtornos reconhecidos pela ciência como incuráveis? Podemos pensar que caiba a psicólogos, psicanalistas, médicos, acompanhantes terapêuticos, terapeutas ocupacionais e assistentes sociais tecer uma " rede multidisciplinar de proteção " em conjunto com a família e principalmente com o próprio paciente. Um amparo que leve em conta ingredientes fundamentais como informação e responsabilização, capazes de preservar o encanto do céu, mas também de tornar mais nítido o reflexo no mar - sem que a atração pela lua seja fatal. 

Matéria publicada na edição especial 2 " Doenças do Cérebro - Esquizofrenia " da revista Mente Cérebro da Duetto Editorial.

A autora é psicóloga e psicanalista. 

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