terça-feira, 8 de janeiro de 2013

À beira do precipício

              Maria Maura Fadel

Pela terceira vez o semáforo ficou verde, depois amarelo e finalmente vermelho, mas os carros continuaram parados. Mais uma vez ele pensou no absurdo que era levar quase duas horas para cumprir um trajeto que poderia, tranquilamente, ser feito em 30 minutos em um dia com pouco movimento. Irritado, tirou as mãos do volante e esfregou os olhos com força. Tentou respirar fundo, mas o ar estava escasso. Calor intenso, irritante. Talvez nem estivesse tão quente, ponderou, mas sua sensação era de sufocamento. Abriu os vidros e o som da avenida agrediu seus ouvidos. À sua frente havia um mar de veículos até onde a vista alcançava.

E aí, tio, vai água?, perguntou o menino sardento de voz esganiçada e cabelos espetados, parado do lado de fora, vasculhando o interior do carro com olhos atentos. As palavras inesperadas o arrancaram de seus pensamentos de maneira abrupta. Sentiu um arrepio ao longo da espinha, como se estivesse sob grande risco. Quando ele se recompôs do susto, ia responder que sim, queria uma garrafa, mas o vendedor já ia longe, ziguezagueando entre os carros. Enquanto acompanhava o garoto levando uma caixa de isopor desaparecer atrás de um caminhão, muitos metros adiante, um pensamento se sobrepôs às sensações. " Estou preso aqui ", repetiu baixinho. Mal acabou de pronunciar as palavras, uma dor aguda atingiu sua têmpora esquerda, fazendo a cabeça inteira latejar. Pressentia que estava em perigo e precisava urgente se livrar do mal-estar. " Talvez eu esteja ficando louco ", considerou, com uma ponta de irritação, sentindo-se traído pelo corpo e pelas emoções, durante tanto tempo mantidos sob controle.

" Preciso me acalmar, preciso me acalmar, preciso me acalmar ",  murmurava com insistência. As palavras, entretanto, pareciam surtir efeito contrário. O doloroso desconforto que o rondava havia dias - meses, talvez, nem sabia mais dizer - tomava forma. A fisgada, agora, o atingia no peito. Sentindo a boca seca e o coração pulsando forte e descompassado, tentou alcançar o telefone celular no bolso do paletó, mas o cinto de segurança impedia movimentos. Tateou a fivela, procurando destravá-la, mas seus dedos gelados não lhe obedeciam.

O ar ficava mais rarefeito a cada segundo e o desespero foi se alastrando, tomando conta de sua alma. Lágrimas escorriam por seu rosto sem que pudesse controlá-las. Esfregou o peito, procurando afastar a dor, agora difusa, e agarrou o tecido da camisa social empapada de suor. Seu corpo todo tremia. Preso naquele carro, numa versão contemporânea de catacumba, ele sucumbia anônimo, envolto em monóxido de carbono, asfalto e indiferença.Perdia-se de si mesmo, como se caminhasse rumo a um precipício de forma automática, dissociada de qualquer possibilidade de desejo. Já não era sujeito de sua própria vida - a vida, aliás, se esvaía, constatou, apavorado. Tentou gritar, implorar por ajuda, mas a voz embotada não saía de sua garganta.

Agora sabia, o colapso era iminente. Mais uma vez, quase sem forças, procurou o celular. Precisava pedir socorro, precisava sobreviver. Conseguiu agarrar o aparelho no exato momento em que um som estridente chamou sua atenção. Já não sabia especificar se o ruído estava dentro ou fora de sua cabeça. Fechou os olhos por um segundo e se deu conta de que o motorista no carro esporte, atrás do seu, buzinava desesperadamente. Só então percebeu que a fila andara alguns metros. Se tivesse se esforçado, talvez pudesse ter acelerado, mas não o fez. Preferiu direcionar suas forças para outra ação. Apertou a tecla de discagem automática e após alguns segundos ouviu a voz de sua mulher. Esgotado, sentindo o mundo girar, reuniu suas últimas fagulhas de energia para avisar: " Estou morrendo... ". A despeito dos gritos do outro lado da linha e da motorista do carro de trás ainda buzinando freneticamente, deixou o telefone escorregar de suas mãos. Lentamente destravou a porta e saiu caminhando com passos incertos em meio aos carros. Precisava sobreviver...

Matéria publicada na edição especial 3 " Doenças do Cérebro - Estresse e Ansiedade " da revista  Mente Cérebro da Duetto Editorial.

A autora é psicóloga e psicanalista. 

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