quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

A Névoa

                Maria Maura Fadel

Mal se mexeu na cama, apenas encolheu o corpo e aproximou os joelhos do peito. Uma fresta de luz conseguiu enganar a janela e invadir o quarto - cruel, desafiou a moça, agrediu seus olhos. Ela sentiu algo sem nome, um misto de medo e raiva. Para se proteger, fechou os olhos e tentou adormecer de novo - desta vez, porém, não funcionou. Ansiava pelo estado de sonolência que a mantinha, às vezes, por horas, no limiar da vigília até que, sem que notasse, se embrenhava no poço vazio do sono quase sempre vazio de sonhos.

Temia o despertar a cada dia. Por isso enganava as manhãs, abria os olhos só depois do meio-dia e ia se deixando ficar até que as horas arrastadas se escoassem. Por isso empenhava-se em manter o corpo inerte, escondida da vida, como se uma fina película pudesse separá-la do mundo lá fora. Porém, por mais que quisesse, em alguns momentos em que era impossível mergulhar no torpor - e então subia " à tona " com movimentos lentos, pesados.

E havia ainda a névoa ao seu redor - densa e compacta, prendia seus movimentos. Aconchegou-se nas cobertas e abraçou o emaranhado de panos amarrotados e sentiu os cheiros que emanavam de seu corpo, da pele e das entranhas. Parecia irônico que ela, que havia algum tempo se preocupava tanto com a higiene pessoal, procurava manter-se apresentável e cheirosa com sabonetes, cremes e colônias de boa qualidade, agora não se animasse sequer para tomar um banho. Os cinco ou seis passos que a separavam do banheiro pareciam traduzir uma distância incomensurável. Ficaria na cama. Além disso, a ideia que em outro momento seria inconfessável até para si mesma agora fazia sentido: seus odores não a incomodavam. Pelo contrário, eram sua companhia, acalentavam a concretude de sua dor, lembravam-na a cada momento de algo que se decompunha em sua alma.

Ficar encolhida no escuro era o que tinha de mais seguro, de mais confortável - se é que seria possível falar em segurança e conforto quando seu mundo estava em escombros e o desejo era pouco mais que uma nesga de lembrança de algo remoto, distante... Não tinha vontades, nem de comer, nem de viver. Sentia-se inútil, incapaz, e o mundo ao redor tornara-se extremamente desinteressante. As partidas de seu time preferido no campeonato de futebol, que a faziam vibrar nos dias de jogos decisivos desde que era pequena, agora não era parte de sua vida. Noticiários, internet? Nem pensar. Também não queria assistir a nehum filme, menos ainda sair com os amigos. Aliás, que amigos? Duas ex-colegas do trabalho tinham ido visitá-la, mas ela não abriu a porta. Não, não...

Não queria saber de ninguém daquela empresa - se não a desejam como funcionária, depois de todos aqueles anos, lá ela também não queria proximidade com nada que a lembrasse da demissão. Além do mais, não queria mesmo ver ninguém, as pessoas simplesmente a irritavam com seus olhares de recriminação disfarçada e tentativas tolas de reconfortá-la, dizendo " o quanto sua vida era maravilhosa ", que " precisava reagir, sair daquele quarto ", afinal, " havia tanta gente em condição pior, como as criancinhas passando fome na África "... Ora, que se danem as criancinhas passando fome na África, pensava. Em seguida, se recriminava, considerando o quanto era mal-agradecida, o quanto sua vida não valia a pena, o quanto nunca tinha valido, o quanto nunca valeria...

Num átimo de segundo até considerou que seria bom levantar da cama, substituir o moletom cinza que já se tornara uma espécie de " uniforme ", dia e noite fazendo as vezes de pijama. Não se mexia. E assim, deitada de lado, no escuro, parecia menor e mais frágil. Mas isso não importava. Nada importava. Além do mais, havia névoa...

Matéria publicada na edição especial 1 " Doenças do Cérebro - Depressão " -  da revista Mente Cérebro da Duetto Editorial.

A autora é psicóloga e psicanalista. 

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