quarta-feira, 17 de junho de 2020

O Último Dia


Meu amor
O que você faria se só te restasse um dia?
Se o mundo fosse acabar
Me diz, o que você faria?

Ia manter sua agenda
De almoço, hora, apatia?
Ou esperar os seus amigos
Na sua sala vazia?

Corria prum shopping center
Ou para uma academia?
Pra se esquecer que já não dá tempo
Pro tempo que já se perdia

Andava pelado na chuva?
Corria no meio da rua?
Entrava de roupa no mar?
Trepava sem camisinha?

Abria a porta do hospício?
Trancava a da delegacia?
Dinamitava o meu carro?
Parava o tráfego e ria?

Música de Billy Brandão e Paulinho Moska, que faz parte do CD Pensar é Fazer Música, de Paulinho Moska, lançado em 1995.

terça-feira, 16 de junho de 2020

Trecho 381 de O Livro do Desassossego

"Ninguém ainda definiu, com linguagem com que compreendesse quem o não tivesse experimentado, o que é o tédio. O a uns chamam tédio, não é mais aborrecimento; o que a outros o chamam, não é senão mal-estar; há outros, ainda, que chamam tédio ao cansaço. Mas o tédio, embora participe do cansaço, e do mal-estar, e do aborrecimento, participa deles como a água participa do hidrogênio e oxigênio, de que se compõe. Inclui-os sem a eles se assemelhar.
Se uns dão assim ao tédio um sentido restrito e incompleto, um ou outro lhe presta uma significação que em certo modo o transcende - como quando se chama tédio ao desgosto íntimo e espiritual da variedade e da incerteza do mundo. O que faz abrir a boca, que é o aborrecimento; o que faz mudar de posição, que é o mal-estar; o que faz não se poder mexer, que é o cansaço - nenhuma destas coisas é o tédio; mas também o não é o sentimento profundo da vacuidade das coisas, pelo qual a aspiração frustrada se liberta, a ânsia desiludida se ergue, e se forma na alma a semente da qual nasce o místico ou o santo.
O tédio é, sim, o aborrecimento do mundo, o mal-estar de estar vivendo, o cansaço de se ter vivido; o tédio é, deveras, a sensação carnal da vacuidade prolixa das coisas. Mas o tédio é, mais do que isto, o aborrecimento de outros mundos, quer existam quer não; o mal-estar de ter que viver, ainda que outro, ainda que de outro modo, ainda que noutro mundo; o cansaço, não só de ontem e de hoje, mas de amanhã também, da eternidade, se a houver, e do nada, se é ele que é a eternidade. Nem é só a vacuidade das coisas e dos seres que dói na alma quando ela está em tédio: é também a vacuidade de outra coisa qualquer, que não as coisas e os seres, a vacuidade da própria alma que sente o vácuo, que se sente vácuo, e que nele de si enoja e se repudia.
O tédio é a sensação física do caos, e de que o caos é tudo. O aborrecido, o mal-estante, o cansado sentem-se presos numa cela estreita. O desgostoso da estreiteza da vida sente-se algemado numa cela grande. Mas o que tem tédio sente-se preso em liberdade fruste numa cela infinita. Sobre o que se aborrece, ou tem mal-estar, ou fadiga, podem desabar os muros da cela, e soterrá-lo. Ao  que se desgosta da pequenez do mundo podem cair as algemas, e ele fugir, ou doer de as não poder tirar, e ele, com sentir a dor, reviver-se sem desgosto. Mas os muros da cela infinita não nos podem soterrar, porque não existem; nem nos podem sequer fazer viver pela dor as algemas que ninguém nos pôs.
E é isto que eu sento ante a beleza plácida desta tarde que finda imperecivelmente. Olho o céu alto e claro, onde coisas vagas, róseas, como sombras de nuvens, são uma penugem impalpável de uma vida alada e longínqua. Baixo os olhos sobre o rio, onde a água, não mais que levemente trêmula, é de um azul que parece espelhado de um céu mais profundo. Ergo de novo os olhos ao céu, há já, entre o que de vagamente colorido se esfia sem farrapos no ar invisível, um tom algendo de branco baço, como se alguma coisa também das coisas, onde são mais altas e frustes, tivesse um tédio material próprio, uma impossibilidade de ser o que é, um corpo imponderável de angústia e de  desolação.
Mas quê? Que há no ar alto mais que o ar alto, que não é nada? Que há no céu mais que uma cor que não é dele? Que há nesses farrapos de menos que nuves, de que já duvido, mais que uns reflexos de luz materialmente  incidentes de um sol submisso? que há em tudo isto senão eu? Ah, mas o tédio é isso, é só isso. É que em tudo isso - céu, terra, mundo, - o que há em tudo isto não é senão eu!"

Trecho número 381 do Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa.

segunda-feira, 15 de junho de 2020

O Dia Em Que A Terra Parou


"Essa noite eu tive um sonho de sonhador
Maluco que sou, eu sonhei...
Com o dia em que a terra parou
Com o dia em que a terra parou

Foi assim num dia em que todas as pessoas do planeta inteiro
Resolveram que ninguém is sair de casa
Em todo o planeta ninguém saiu de casa.
Ninguém.

O empregado não saiu pro seu trabalho
Pois sabia que o patrão não tava lá
Dona de casa não saiu pra comprar pão
Pois sabia que o padeiro também não tava lá
E o guarda não saiu para prender
Pois sabia que o ladrão também não tava lá
E o ladrão não saiu para roubar
Pois sabia que não ia ter onde gastar

No dia em que a terra parou...
No dia em que a terra parou...
No dia em que a terra parou...
No dia em que a terra parou...

E nas igrejas nem um sino a badalar
Pois sabiam que os fiéis também não tavam lá
E os fiéis não saíram pra rezar
Pois sabiam que o padre também não tava lá
E o aluno não saiu para estudar
Pois sabia o professor também não tava lá
E o professor não saiu pra lecionar
Pois sabia que não tinha nada pra ensinar

No dia em que a terra parou...
No dia em que a terra parou...
No dia em que a terra parou...
No dia em que a terra parou...

E o comandante não saiu para o quartel
Pois sabia que o soldado também não tava lá

E o soldado não saiu pra ir pra guerra
Pois sabia que o inimigo também não tava lá
E o paciente não saiu pra se tratar
Pois sabia que o doutor também não tava lá
E o doutor não saiu pra medicar
Pois sabia que não tinha mais doença pra curar

No dia em que a terra parou...
No dia em que a terra parou...
No dia em que a terra parou...
No dia em que a terra parou...

Essa noite eu tive um sonho de sonhador
Maluco que sou, acordei...

No dia em que a terra parou...
No dia em que a terra parou...
No dia em que a terra parou...
No dia em que a terra parou..."


Música de Raul Seixas e Cláudio Roberto que dava título ao então LP de Raul Seixas lançado em 1977. Antecipou uma situação que seria vivida no ano de 2020. Como aqueles filmes de ficção das décadas de 60 ou 70, ninguém imaginava que isso fosse acontecer. No início dos anos 90, Caetano fez uma música que também falava nessa falta de normalidade cotidiana...

Fora da Ordem


"Vapor Barato, um mero serviçal do narcotráfico,
Foi encontrado na ruína de uma escola em construção
Aqui tudo parece que é ainda construção e já é ruína
Tudo é menino e menina no olho das rua
O asfalto, a ponte, o viaduto ganindo pra lua
Nada continua
E o cano da pistola que as crianças mordem
Reflete todas as cores da paisagem da cidade que é muito mais bonita e
Muito mais intensa do que no cartão postal.

Alguma coisa está fora da ordem
Fora da nova ordem mundial.

Escuras coxas duras tuas duas de acrobatas mulata,
Tua batata da perna moderna, a trupe intrépida em que fluis
Te encontro em Sampa de onde mal se vê quem sobe ou desce a rampa
Alguma coisa em nossa transa é quase luz forte demais
Parece pôr tudo à prova, parece fogo, parece, parece paz
Parece paz
Pletora de alegria, um show de Jorge Benjor dentro de nós
É muito, é grande, é total.

Alguma coisa está fora da ordem
Fora da nova ordem mundial.

Meu canto esconde-se como um bando de Ianomâmis na floresta
Na minha testa caem, vêm colocar-se plumas de um velho cocar
Estou de pé em cima do monte de imundo lixo baiano
Cuspo chicletes do ódio no esgoto exposto do Leblon
Mas retribuo a piscadela do garoto de frete do Trianon
Eu sei o que é bom
Eu não espero pelo dia em que todos os homens concordem
Apenas sei de diversas harmonias bonitas possíveis sem juízo final.

Alguma coisa está fora da ordem
Fora da nova ordem mundial"

Música que abre o CD de 1991 de Caetano Veloso. Olhando hoje, parece visionário, assim como outro grande compositor, que também antecipou esse momento atual: Raul Seixas! Em 2017, Maria Alcina fez um disco totalmente dedicado à obra de Caetano, intituluado Espírito de Tudo. Fora da Ordem foi incluída no repertório!

domingo, 14 de junho de 2020

Trecho 260 de O Livro do Desassossego

" A arte consiste em fazer os outros sentir o que nós sentimos, em os libertar deles mesmos, propondo-lhes a nossa personalidade para especial libertação. O que sinto, na verdadeira substância com o que sinto, é absolutamente incomunicável; e quanto mais profundamente o sinto, tanto mais incomunicável é. Para que eu, pois, possa transmitir a outrem o que sinto, tenho que traduzir os meus sentimentos na linguagem dele, isto é, quer dizer tais coisas como sendo as que sinto, que ele, lendo-as, sinta exatamente o que eu senti. E como este outrem é, por hipótese de arte, não esta ou aquela pessoa, mas toda a gente, isto é, aquela pessoa que é comum a todas as pessoas, o que, afinal, tenho que fazer é converter os meus sentimentos num sentimento humano típico, ainda que pervertendo a verdadeira natureza daquilo que senti.
Tudo quanto é abstrato é difícil de compreender, porque é difícil de conseguir para ele a atenção de quem o leia. Darei, por isso, um exemplo simples, em que as abstrações que formei se concretizarão. Suponha-se que, por um motivo qualquer, que pode ser o cansaço de fazer contas ou o tédio de não ter que fazer, cai sobre mim uma tristeza vaga da vida, uma angústia de mim que me perturba e inquieta. Se vou traduzir esta emoção por frases que de perto a cinjam, quanto mais de perto a cinjo, mais a dou como propriamente minha, menos, portanto, a comunico a outros. E, se não há comunicá-la a outros, é mais justo e mais fácil senti-la sem a escrever.
Suponha-se, porém, que desejo comunicá-la a outros, isto é, fazer dela arte, pois a arte é a comunicação aos outros da nossa identidade íntima com eles; sem o que nem há comunicação nem necessidade de a fazer. Procuro qual será a emoção humana vulgar que tenha o tom, o tipo, a forma desta emoção em que estou agora, pelas razões inumanas e particulares de ser um guarda-livros cansado ou um lisboeta aborrecido. E verifico que o tipo de emoção vulgar que produz, na alma vulgar, esta mesma emoção é a saudade da infância perdida.
Tenho a chave para a porta do meu tema. Escrevo e choro a minha infância perdida; demoro-me comovidamente sobre os pormenores de pessoas e mobília da velha casa da província; evoco a felicidade de não ter direitos nem deveres, de ser livre por não saber pensar nem sentir - e esta evocação, se for bem feita como prosa e visões, vai despertar no meu leitor exatamente a emoção que eu senti, e que nada tinha com infância.
Menti? Não, compreendi. Que a mentira, salvo a que é infantil e espontânea, e nasce da vontade de estar a sonhar, é tão-somente a noção da existência real dos outros e da necessidade de conformar a essa existência a nossa, que se não pode conformar a ela. A mentira é simplesmente a linguagem ideal da alma, pois, assim como nos servimos de palavras, que são sons articulados de uma maneira absurda, para em linguagem real traduzir os mais íntimos e sutis movimentos da emoção e do pensamento, que as palavras forçosamente não poderão nunca traduzir, assim nos servimos da mentira e da ficção para nos entendermos uns com os outros, o que, com a verdade, própria e intransmissível, se nunca poderia fazer.
A arte mente porque é social. E há só duas grandes formas de arte - uma que se dirige à nossa alma profunda, a outra que se dirige à nossa alma atenta. A primeira é poesia, o romance a segunda. A primeira começa a mentir na própria estrutura; a segunda começa a mentir na própria intenção. Uma pretende dar-nos a verdade por meio de linhas variadamente regradas, que mentem à inerência da fala; outra pretende dar-nos a verdade por uma realidade que todos sabemos bem que nunca houve.
Fingir é amar. Nem vejo nunca um lindo sorriso ou um olhar significativo que não medite, de repente, e seja de quem for o olhar ou o sorriso, qual é, no fundo da alma em cujo rosto se sorri ou olha, o estadista que nos quer comprar ou a prostituta que quer que a compremos. Mas o estadista que nos compra amou, ao menos, o comprar-nos; e a prostituta, a quem compremos, amou ao menos, o comprarmo-la. Não fugimos, por mais que queiramos, à fraternidade universal. Amamo-nos todos uns aos outros, e a mentira é o beijo que trocamos.

Trecho número 260 de "O Livro do Desassossego", de Fernando Pessoa.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

De Cada Lado


O mundo é resultado dos contrários
Da força dos leões e dos otários
Da selva dimonistas e sectários
Das pedras no caminho
O mundo é uma flor e é o espinho
Viver é ser na multidão sozinho
Um passo para frente é outro abandonado
No mundo uma ilusão de cada lado
Casa de ferreiro, espeto de pau
Casa de misericórdia, miséria total
Casa de candango, candombe e cal
Casa de abstinência, folia total
Deixa nossa porta aberta
Deixa de brincar de fé, se vai jogar o jogo
Deixa de bater o pé, se é pra fazer de novo
Deixa de como é que é, se tudo é perigoso
Logo venha o que vier

Música de Magno Mello, Kadu Vianna e Pedro Moraes que abre o CD " O que eu tenho pra dizer ", lançado em 2010 por Izzy Gordon.

O Ponto


No começo era um ponto
Que surgiu, pontuou
E assim, ponto a ponto
Ao ponto se juntou
Uma teia de pontos
Juntos tanto e a ponto
De tudo ser só um ponto
É só um ponto de vista
Um ponto de partida
A que ponto chega o artista
Nessa louca arte da vida?
Não me aponte tanto assim
Nem me classifique em pontos
Um ponto final é o fim
Pra explicar já são dois pontos
Não me toque nesse ponto
Que esse ponto vai doer
Quando chega a esse ponto
A ponto de enlouquecer
É melhor por logo um ponto
Um ponto pra resolver
É só um ponto de vista
O ponto de partida
A que ponto chega o artista
Nessa louca arte da vida?

Música de Jairo Cechin que faz parte do CD "Quem Sou Eu", de Ully Costa, lançado em 2012.


As Sílabas


Cantiga diga lá
A dica de cantar
O dom que o canto tem
Que tem que ter se quer encantar
Só que as sílabas se embalam
Como sons que se rebelam
Que se embolam numa fila
E se acumulam numa bola
Tem sílabas contínuas:
Ia indo ao Piauí
Tem sílabas que pulam:
Vox populi
Tem sílaba que escapa
Que despenca
Rola a escada
E no caminho
Só se ouve
Aquele boi bumbá
Tem sílaba de ar
Que sopra sai o sopro
E o som não sai
Tem sílaba com "s"
Não sobe não desce
Tem sílaba legal
Consoante com vogal
Tem sílaba que leve oscila
E cai como uma luva na canção
Cantiga diga lá 
A dica de cantar 
Cantiga diga lá
A dica de cantar
O dom que o canto tem
Que tem que ter se quer encantar

Música de Luiz Tatit que abre o CD "As Sílabas", de Suzana Salles, lançado em
2001.

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Partículas de Amor

Ao te conhecer
Desacreditei
Como pode uma beleza assim
Toda solar, me derreteu
Virei água do mar
Evaporei
E agora eu sou partículas de amor
Vento que sopra na crista
Bolha de espuma replica
Onde você estiver eu estarei
Maresia no ar a te acompanhar

Faixa 02 do CD das coisas que surgem, de Márcia Castro; música de Lucas Santana e Gui Amabis.

Atalhos

        Márcia Castro/Arruda


" A força da água
Que sai de você
Me leva tão longe
Me faz te querer
Na intensidade das coisas que surgem
Pessoas, palavras que me acontecem

A força da água
Que vem de você
Você de mil noites
De ombros e abraços

De explosões solares
Do fundo do poço
Do fundo do poço
Ao próximo passo

Não existem os atalhos
Que não deixem suas marcas
Não existem os atalhos

As estrelas são da noite
E as manhãs do orvalho
E existem os atalhos "

música que abre o CD das coisas que surgem de Márcia Castro