segunda-feira, 22 de junho de 2020

Vista Pro Mar

Eu não nasci do mar
Mas sou daqui
Já mergulhei pra não sair

Quem é de preamar
Se encontra aqui
Não há mais maré baixa
Em mim

Eu sou de remar
Sou de insistir
Mesmo que sozinho

Só vai se afogar
Quem não reagir
Mesmo que sozinho


Música que abre o CD Vista Pro Mar, do Silva, lançado em 2014. Composição dele e do irmão Lucas Silva.

Hoje

Se permita ser
Qualquer coisa menos superficial 
Qualquer coisa que elevem os teus sonhos
Mas fujam do mundo imoral

Deixa eu te dizer
Que o amor é fogo que arde forte para dois
Que muda tudo, finda o peito,
E só depois
Te enche de pleno prazer

A gente sofre a dor da sorte
E se parte para vencer
É pura morte, desventura
Viver de vaidade para quê

Hoje a gente vê
Que o dia é duro para chegar até o final
Que cada um possui uma dose de demônios
E a luta é um feito fatal

Fácil perceber
Que o padrão virou doença secular
Moldar o corpo se tornou tão instintivo
E a mente parou de malhar

A gente sofre a dor da sorte
E se parte para vencer
É pura morte, desventura,
Viver de vaidade para quê?

Tudo tem um jeito
Tudo tem um preço
O apreço é o preço da hora
É tudo questão de ser

Somos o que somos
Somos quem seremos
Somos o aqui, o agora
Somos iguais ao morrer

A gente sofre a dor da sorte
E se parte para vencer
É pura morte, desventura
Viver de vaidade para quê?

A gente sofre a dor da sorte
E se parte para vencer
É pura morte, desventura
Viver de vaidade para quê?

Música que abre o CD Arsênico, de Romero Ferro, lançado em 2015.

sexta-feira, 19 de junho de 2020

Amor Mais Que Discreto

Talvez haja entre nós o mais total interdito
Mas você é bonito o bastante
Complexo o bastante
Bom o bastante
Pra tornar-se ao menos por um instante
O amante do amante
Que antes de te conhecer eu não cheguei a ser
Eu sou um velho, mas somos dois meninos
Nossos destinos são mutuamente interessantes
Um instante, alguns instantes, o grande espelho
E aí a minha vida ia fazer mais sentido
E a sua talvez mais que a minha
Talvez bem mais que a minha
Os livros, filmes, filhos ganhariam colorido
Se um dia afinal eu chegasse a ver que você vinha
E isso é tanto que pinta no meu canto
Mas pode dispensar a fantasia
O sonho em branco e preto
Amor mais que discreto
Que é já uma alegria
Até mesmo sem ter o seu passado, seu tempo
Seu agora, seu antes, seu depois
Sem ser remotamente sequer imaginado
Sequer imaginado, sequer imaginado sequer
Por qualquer de nós dois

Música de Caetano Veloso que faz parte do CD Tomada, de Filipe Catto, lançado em 2015.

Avesso


Nós já temos encontro marcado
Eu só não sei quando
Se daqui a dois dias
Se daqui a mil anos
Com dois canos pra mim apontados
Ousaria te olhar, ousaria te ver
Num insuspeitável bar, pra decência não nos ver
Perigoso é te amar, doloroso querer
Somos homens pra saber o que é melhor pra nós
O desejo a nos punir, só porque somos iguais
A idade Média é aqui
Mesmo que me arranquem o sexo, minha honra, meu prazer
Te amar eu ousaria
E você, o que fará se esse orgulho nos perder?

No clarão do luar, espero
Cá nos braços do mar me entrego
Quanto tempo levar, quero saber se você
É tão forte que nem lá no fundo irá desejar
O que eu sinto, meu Deus, é tão forte!
Até pode matar
O teu pai já me jurou de morte por eu te desviar
Se os boatos criarem raízes
Ousarias me olhar?
Ousarias me ver?
Dois meninos num vagão e o mistério do prazer
Perigoso é me amar, obscuro querer
Somos grandes para entender, mas pequenos pra opinar
Se eles vão nos receber
É mais fácil condenar ou noivados pra fingir
Mesmo que chegue o momento que eu não esteja mais aqui
E meus ossos virem adubo
Você pode me encontrar no avesso de uma dor
No clarão do luar, espero
Cá nos braços do mar me entrego
Quanto tempo levar, quero saber se você
É tão forte que nem lá no fundo irá desejar...

Música do CD "Leve", de Jorge Vercilo, lançado em 2000.

quinta-feira, 18 de junho de 2020

Trecho 232 de O Livro do Desassossego

" Quanto mais avançamos na vida, mais nos convencemos de duas verdades que todavia se contradizem. A primeira é de que, perante a realidade da vida, soam pálidas todas as ficções da literatura e da arte. Dão, é certo, um prazer mais nobre que os da vida; porém são como os sonhos, em que sentimos sentimentos que na vida se não sentem, e se conjugam formas que na vida se não encontram; são contudo sonhos, de que se acorda, que não constituem memórias nem saudades, com que vivamos depois uma segunda vida.
A segunda é de que, sendo desejo de toda alma nobre o percorrer a vida por inteiro, ter experiência de todas as coisas, de todos os lugares e de todos os sentimentos vividos, e sendo isto impossível, a vida só subjetivamente pode ser vivida por inteiro, só negada pode ser vivida na sua substância total.
Estas duas verdades são irredutíveis uma à outra. O sábio abster-se-á de as querer conjugar, e abster-se-á também de repudiar uma ou outra. Terá contudo que seguir uma, saudoso da que não segue; ou repudiar ambas, erguendo-se acima de si mesmo em um nirvana próprio.
Feliz quem não exige da vida mais do que ela espontaneamente lhe dá, guiando-se pelo instinto dos gatos, que buscam o sol quando há sol, e quando não há sol o calor, onde quer que esteja. Feliz quem abdica da sua personalidade pela imaginação, e se deleita na contemplação das vidas alheias, vivendo, não todas as impressões, mas o espetáculo externo de todas as impressões alheias. Feliz, por fim, esse que abdica de tudo, e a quem, porque abdicou de tudo, nada pode ser tirado nem diminuído.
O campônio, o leitor de novelas, o puro asceta - estes três são os felizes da vida, porque são estes três que abdicam da personalidade - um porque vive do instinto, que é impessoal, outro porque vive da imaginação, que é esquecimento, o terceiro porque não vive,e, não tendo morrido, dorme.
Nada me satisfaz, nada me consola, tudo - quer haja sido, quer não - me sacia. Não quero ter a alma e não quero abdicar dela. Desejo o que não desejo e abdico do que não tenho. Não posso ser nada nem tudo: sou a ponte de passagem entre o que não tenho e o que não quero. "

Trecho 232 de "O Livro do Desassossego", de Fernando Pessoa.

quarta-feira, 17 de junho de 2020

O Último Dia


Meu amor
O que você faria se só te restasse um dia?
Se o mundo fosse acabar
Me diz, o que você faria?

Ia manter sua agenda
De almoço, hora, apatia?
Ou esperar os seus amigos
Na sua sala vazia?

Corria prum shopping center
Ou para uma academia?
Pra se esquecer que já não dá tempo
Pro tempo que já se perdia

Andava pelado na chuva?
Corria no meio da rua?
Entrava de roupa no mar?
Trepava sem camisinha?

Abria a porta do hospício?
Trancava a da delegacia?
Dinamitava o meu carro?
Parava o tráfego e ria?

Música de Billy Brandão e Paulinho Moska, que faz parte do CD Pensar é Fazer Música, de Paulinho Moska, lançado em 1995.

terça-feira, 16 de junho de 2020

Trecho 381 de O Livro do Desassossego

"Ninguém ainda definiu, com linguagem com que compreendesse quem o não tivesse experimentado, o que é o tédio. O a uns chamam tédio, não é mais aborrecimento; o que a outros o chamam, não é senão mal-estar; há outros, ainda, que chamam tédio ao cansaço. Mas o tédio, embora participe do cansaço, e do mal-estar, e do aborrecimento, participa deles como a água participa do hidrogênio e oxigênio, de que se compõe. Inclui-os sem a eles se assemelhar.
Se uns dão assim ao tédio um sentido restrito e incompleto, um ou outro lhe presta uma significação que em certo modo o transcende - como quando se chama tédio ao desgosto íntimo e espiritual da variedade e da incerteza do mundo. O que faz abrir a boca, que é o aborrecimento; o que faz mudar de posição, que é o mal-estar; o que faz não se poder mexer, que é o cansaço - nenhuma destas coisas é o tédio; mas também o não é o sentimento profundo da vacuidade das coisas, pelo qual a aspiração frustrada se liberta, a ânsia desiludida se ergue, e se forma na alma a semente da qual nasce o místico ou o santo.
O tédio é, sim, o aborrecimento do mundo, o mal-estar de estar vivendo, o cansaço de se ter vivido; o tédio é, deveras, a sensação carnal da vacuidade prolixa das coisas. Mas o tédio é, mais do que isto, o aborrecimento de outros mundos, quer existam quer não; o mal-estar de ter que viver, ainda que outro, ainda que de outro modo, ainda que noutro mundo; o cansaço, não só de ontem e de hoje, mas de amanhã também, da eternidade, se a houver, e do nada, se é ele que é a eternidade. Nem é só a vacuidade das coisas e dos seres que dói na alma quando ela está em tédio: é também a vacuidade de outra coisa qualquer, que não as coisas e os seres, a vacuidade da própria alma que sente o vácuo, que se sente vácuo, e que nele de si enoja e se repudia.
O tédio é a sensação física do caos, e de que o caos é tudo. O aborrecido, o mal-estante, o cansado sentem-se presos numa cela estreita. O desgostoso da estreiteza da vida sente-se algemado numa cela grande. Mas o que tem tédio sente-se preso em liberdade fruste numa cela infinita. Sobre o que se aborrece, ou tem mal-estar, ou fadiga, podem desabar os muros da cela, e soterrá-lo. Ao  que se desgosta da pequenez do mundo podem cair as algemas, e ele fugir, ou doer de as não poder tirar, e ele, com sentir a dor, reviver-se sem desgosto. Mas os muros da cela infinita não nos podem soterrar, porque não existem; nem nos podem sequer fazer viver pela dor as algemas que ninguém nos pôs.
E é isto que eu sento ante a beleza plácida desta tarde que finda imperecivelmente. Olho o céu alto e claro, onde coisas vagas, róseas, como sombras de nuvens, são uma penugem impalpável de uma vida alada e longínqua. Baixo os olhos sobre o rio, onde a água, não mais que levemente trêmula, é de um azul que parece espelhado de um céu mais profundo. Ergo de novo os olhos ao céu, há já, entre o que de vagamente colorido se esfia sem farrapos no ar invisível, um tom algendo de branco baço, como se alguma coisa também das coisas, onde são mais altas e frustes, tivesse um tédio material próprio, uma impossibilidade de ser o que é, um corpo imponderável de angústia e de  desolação.
Mas quê? Que há no ar alto mais que o ar alto, que não é nada? Que há no céu mais que uma cor que não é dele? Que há nesses farrapos de menos que nuves, de que já duvido, mais que uns reflexos de luz materialmente  incidentes de um sol submisso? que há em tudo isto senão eu? Ah, mas o tédio é isso, é só isso. É que em tudo isso - céu, terra, mundo, - o que há em tudo isto não é senão eu!"

Trecho número 381 do Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa.

segunda-feira, 15 de junho de 2020

O Dia Em Que A Terra Parou


"Essa noite eu tive um sonho de sonhador
Maluco que sou, eu sonhei...
Com o dia em que a terra parou
Com o dia em que a terra parou

Foi assim num dia em que todas as pessoas do planeta inteiro
Resolveram que ninguém is sair de casa
Em todo o planeta ninguém saiu de casa.
Ninguém.

O empregado não saiu pro seu trabalho
Pois sabia que o patrão não tava lá
Dona de casa não saiu pra comprar pão
Pois sabia que o padeiro também não tava lá
E o guarda não saiu para prender
Pois sabia que o ladrão também não tava lá
E o ladrão não saiu para roubar
Pois sabia que não ia ter onde gastar

No dia em que a terra parou...
No dia em que a terra parou...
No dia em que a terra parou...
No dia em que a terra parou...

E nas igrejas nem um sino a badalar
Pois sabiam que os fiéis também não tavam lá
E os fiéis não saíram pra rezar
Pois sabiam que o padre também não tava lá
E o aluno não saiu para estudar
Pois sabia o professor também não tava lá
E o professor não saiu pra lecionar
Pois sabia que não tinha nada pra ensinar

No dia em que a terra parou...
No dia em que a terra parou...
No dia em que a terra parou...
No dia em que a terra parou...

E o comandante não saiu para o quartel
Pois sabia que o soldado também não tava lá

E o soldado não saiu pra ir pra guerra
Pois sabia que o inimigo também não tava lá
E o paciente não saiu pra se tratar
Pois sabia que o doutor também não tava lá
E o doutor não saiu pra medicar
Pois sabia que não tinha mais doença pra curar

No dia em que a terra parou...
No dia em que a terra parou...
No dia em que a terra parou...
No dia em que a terra parou...

Essa noite eu tive um sonho de sonhador
Maluco que sou, acordei...

No dia em que a terra parou...
No dia em que a terra parou...
No dia em que a terra parou...
No dia em que a terra parou..."


Música de Raul Seixas e Cláudio Roberto que dava título ao então LP de Raul Seixas lançado em 1977. Antecipou uma situação que seria vivida no ano de 2020. Como aqueles filmes de ficção das décadas de 60 ou 70, ninguém imaginava que isso fosse acontecer. No início dos anos 90, Caetano fez uma música que também falava nessa falta de normalidade cotidiana...

Fora da Ordem


"Vapor Barato, um mero serviçal do narcotráfico,
Foi encontrado na ruína de uma escola em construção
Aqui tudo parece que é ainda construção e já é ruína
Tudo é menino e menina no olho das rua
O asfalto, a ponte, o viaduto ganindo pra lua
Nada continua
E o cano da pistola que as crianças mordem
Reflete todas as cores da paisagem da cidade que é muito mais bonita e
Muito mais intensa do que no cartão postal.

Alguma coisa está fora da ordem
Fora da nova ordem mundial.

Escuras coxas duras tuas duas de acrobatas mulata,
Tua batata da perna moderna, a trupe intrépida em que fluis
Te encontro em Sampa de onde mal se vê quem sobe ou desce a rampa
Alguma coisa em nossa transa é quase luz forte demais
Parece pôr tudo à prova, parece fogo, parece, parece paz
Parece paz
Pletora de alegria, um show de Jorge Benjor dentro de nós
É muito, é grande, é total.

Alguma coisa está fora da ordem
Fora da nova ordem mundial.

Meu canto esconde-se como um bando de Ianomâmis na floresta
Na minha testa caem, vêm colocar-se plumas de um velho cocar
Estou de pé em cima do monte de imundo lixo baiano
Cuspo chicletes do ódio no esgoto exposto do Leblon
Mas retribuo a piscadela do garoto de frete do Trianon
Eu sei o que é bom
Eu não espero pelo dia em que todos os homens concordem
Apenas sei de diversas harmonias bonitas possíveis sem juízo final.

Alguma coisa está fora da ordem
Fora da nova ordem mundial"

Música que abre o CD de 1991 de Caetano Veloso. Olhando hoje, parece visionário, assim como outro grande compositor, que também antecipou esse momento atual: Raul Seixas! Em 2017, Maria Alcina fez um disco totalmente dedicado à obra de Caetano, intituluado Espírito de Tudo. Fora da Ordem foi incluída no repertório!

domingo, 14 de junho de 2020

Trecho 260 de O Livro do Desassossego

" A arte consiste em fazer os outros sentir o que nós sentimos, em os libertar deles mesmos, propondo-lhes a nossa personalidade para especial libertação. O que sinto, na verdadeira substância com o que sinto, é absolutamente incomunicável; e quanto mais profundamente o sinto, tanto mais incomunicável é. Para que eu, pois, possa transmitir a outrem o que sinto, tenho que traduzir os meus sentimentos na linguagem dele, isto é, quer dizer tais coisas como sendo as que sinto, que ele, lendo-as, sinta exatamente o que eu senti. E como este outrem é, por hipótese de arte, não esta ou aquela pessoa, mas toda a gente, isto é, aquela pessoa que é comum a todas as pessoas, o que, afinal, tenho que fazer é converter os meus sentimentos num sentimento humano típico, ainda que pervertendo a verdadeira natureza daquilo que senti.
Tudo quanto é abstrato é difícil de compreender, porque é difícil de conseguir para ele a atenção de quem o leia. Darei, por isso, um exemplo simples, em que as abstrações que formei se concretizarão. Suponha-se que, por um motivo qualquer, que pode ser o cansaço de fazer contas ou o tédio de não ter que fazer, cai sobre mim uma tristeza vaga da vida, uma angústia de mim que me perturba e inquieta. Se vou traduzir esta emoção por frases que de perto a cinjam, quanto mais de perto a cinjo, mais a dou como propriamente minha, menos, portanto, a comunico a outros. E, se não há comunicá-la a outros, é mais justo e mais fácil senti-la sem a escrever.
Suponha-se, porém, que desejo comunicá-la a outros, isto é, fazer dela arte, pois a arte é a comunicação aos outros da nossa identidade íntima com eles; sem o que nem há comunicação nem necessidade de a fazer. Procuro qual será a emoção humana vulgar que tenha o tom, o tipo, a forma desta emoção em que estou agora, pelas razões inumanas e particulares de ser um guarda-livros cansado ou um lisboeta aborrecido. E verifico que o tipo de emoção vulgar que produz, na alma vulgar, esta mesma emoção é a saudade da infância perdida.
Tenho a chave para a porta do meu tema. Escrevo e choro a minha infância perdida; demoro-me comovidamente sobre os pormenores de pessoas e mobília da velha casa da província; evoco a felicidade de não ter direitos nem deveres, de ser livre por não saber pensar nem sentir - e esta evocação, se for bem feita como prosa e visões, vai despertar no meu leitor exatamente a emoção que eu senti, e que nada tinha com infância.
Menti? Não, compreendi. Que a mentira, salvo a que é infantil e espontânea, e nasce da vontade de estar a sonhar, é tão-somente a noção da existência real dos outros e da necessidade de conformar a essa existência a nossa, que se não pode conformar a ela. A mentira é simplesmente a linguagem ideal da alma, pois, assim como nos servimos de palavras, que são sons articulados de uma maneira absurda, para em linguagem real traduzir os mais íntimos e sutis movimentos da emoção e do pensamento, que as palavras forçosamente não poderão nunca traduzir, assim nos servimos da mentira e da ficção para nos entendermos uns com os outros, o que, com a verdade, própria e intransmissível, se nunca poderia fazer.
A arte mente porque é social. E há só duas grandes formas de arte - uma que se dirige à nossa alma profunda, a outra que se dirige à nossa alma atenta. A primeira é poesia, o romance a segunda. A primeira começa a mentir na própria estrutura; a segunda começa a mentir na própria intenção. Uma pretende dar-nos a verdade por meio de linhas variadamente regradas, que mentem à inerência da fala; outra pretende dar-nos a verdade por uma realidade que todos sabemos bem que nunca houve.
Fingir é amar. Nem vejo nunca um lindo sorriso ou um olhar significativo que não medite, de repente, e seja de quem for o olhar ou o sorriso, qual é, no fundo da alma em cujo rosto se sorri ou olha, o estadista que nos quer comprar ou a prostituta que quer que a compremos. Mas o estadista que nos compra amou, ao menos, o comprar-nos; e a prostituta, a quem compremos, amou ao menos, o comprarmo-la. Não fugimos, por mais que queiramos, à fraternidade universal. Amamo-nos todos uns aos outros, e a mentira é o beijo que trocamos.

Trecho número 260 de "O Livro do Desassossego", de Fernando Pessoa.