quarta-feira, 5 de agosto de 2020

A Moça Tecelã

Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear.

Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor de luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte.

Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava.

Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela.

Mas se durante muitos dias o vento e  o frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza.

Assim, jogando a lançadeira de um lado para o outro e batendo os grandes pentes do tear para a frente e para trás, a moça passava seus dias.

Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a lã cor de leite que entremeava o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranquila.

Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.

Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou como seria bom ter um marido ao lado.

Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe daria companhia. E aos poucos seu desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato engraxado. Estava justamente acabando de entremear o último fio da ponta dos sapatos, quando bateram à porta.

Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi entrando na sua vida.

Aquela noite, deitada contra o ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade.

E feliz foi, por algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque, descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar.

- Uma casa melhor é necessária, - disse para a mulher. E parecia justo, agora que eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer.

Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente. - Por que ter casa, se podemos ter palácio? - perguntou. Sem querer resposta, imediatamente ordenou que fosse de pedra com arremates de prata.

Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol. A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia. Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira.

Afinal, o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre.

- É para que ninguém saiba do tapete, - disse. E antes de trancar a porta à chave advertiu: - Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos!

Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.

E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou como seria bom estar sozinha de novo.

Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas exigências. E descalça para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear.

Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins. Depois desteceu os criados e o palácio e  todas as maravilhas que continha. E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela.

A noite acabava quando o marido, estranhando a cama dura, acordou, e espantado olhou em volta. Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu.

Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte.

Conto de Marina Colasanti retirado do livro Doze Reis e a Moça no Labirinto do Vento, Editora Nórdica, 5ª Edição, 1985.

terça-feira, 4 de agosto de 2020

As Formigas

Quando minha prima e eu descemos do táxi, já era quase noite. Ficamos imóveis diante do velho sobrado de janelas ovaladas, iguais a dois olhos tristes, um deles vazado por uma pedrada. Descansei a mala no chão e apertei o braço da prima.

- É sinistro.

Ela me impeliu na direção da porta. Tínhamos outra escolha? Nenhuma pensão nas redondezas oferecia um preço melhor a duas pobres estudantes com liberdade de usar o fogareiro no quarto, a dona nos avisara por telefone que podíamos fazer refeições ligeiras com a condição de não provocar incêndio. Subimos a escada velhíssima, cheirando a creolina.

- Pelo menos não vi sinal de barata - disse minha prima.

A dona era uma velha balofa, de peruca mais negra do que a asa da graúna. Vestia um desbotado pijama de seda japonesa e tinha as unhas aduncas recobertas por uma crosta de esmalte vermelho-escuro, descascado nas pontas encardidas. Acendeu um charutinho.

- É você que estuda medicina? - perguntou soprando a fumaça na minha direção.

- Estudo direito. Medicina é ela.

A mulher nos examinou com indiferença. Devia estar pensando em outra coisa quando soltou uma baforada tão densa que precisei desviar a cara. A saleta era escura, atulhada de móveis velhos, desparelhados. No sofá de palhinha furada no assento, duas almofadas que pareciam ter sido feitas com os restos de um antigo vestido, os bordados salpicados de vidrilho.

- Vou mostrar o quarto, fica no sótão - disse ela em meio a um acesso de tosse. Fez um sinal para que a seguíssemos. - O inquilino antes de vocês também estudava medicina, tinha um caixotinho de ossos que esqueceu aqui, estava sempre mexendo neles.

Minha prima voltou-se:

- Um caixote de ossos?

A mulher não respondeu, concentrada no esforço de subir a estreita escada de caracol que ia dar no quarto. Acendeu a luz. O quarto não podia ser menor, com o teto em declive tão acentuado que nesse trecho teríamos que entrar de gatinhas. Duas camas, dois armários e uma cadeira de palhinha pintada de dourado. No ângulo onde o teto quase se encontrava com o assoalho, estava um caixotinho coberto com um pedaço de plástico. Minha prima largou a mala e, pondo-se de joelhos, puxou o caixotinho pela alça de corda. Levantou o plástico. Parecia fascinada.

- Mas que ossos tão miudinhos! São de criança?

- Ele disse que eram de adulto. De um anão.

- De um anão? É mesmo, a gente vê que já estão formados... Mas que maravilha, é raro à beça esqueleto de anão. E tão limpo, olha aí - admirou-se ela. Trouxe na ponta dos dedos um pequeno crânio de uma brancura de cal. - Tão perfeito, todos os dentinhos!

- Eu ia jogar tudo no lixo, mas se você se interessa pode ficar com ele. O banheiro é aqui ao lado, só vocês é que vão usar, tenho o meu lá embaixo. Banho quente extra. Telefone também. Café das sete às nove, deixo a mesa posta na cozinha com a garrafa térmica, fechem bem a garrafa - recomendou coçando a cabeça. A peruca se deslocou ligeiramente. Soltou uma baforada final: - Não deixem a porta aberta senão meu gato foge.

Ficamos nos olhando e rindo enquanto ouvíamos o barulho dos seus chinelos de salto na escada. E a tosse encatarrada.

Esvaziei a mala, dependurei a blusa amarrotada num cabide que enfiei num vão da veneziana, prendi na parede com durex, uma gravura de Grassman e sentei meu urso de pelúcia em cima do travesseiro. Fiquei vendo minha prima subir na cadeira, desatarraxar a lâmpada fraquíssima que pendia de um fio solitário no meio do teto e no lugar atarraxar uma lâmpada de duzentas velas que tirou da sacola. O quarto ficou mais alegre. Em compensação, agora a gente podia ver que a roupa de cama não era tão alva assim, alva era a pequena tíbia que ela tirou de dentro do caixotinho. Examinou-a. Tirou uma vértebra e olhou pelo buraco tão reduzido como o aro de um anel. Guardou-as com a delicadeza com que se amontoam ovos numa caixa.

- Um anão. Raríssimo, entende? E acho que não falta nenhum ossinho, vou trazer as ligaduras, quero ver se no fim da semana começo a montar ele.

Abrimos uma lata de sardinha que comemos com pão, minha prima tinha sempre alguma lata escondida, costumava estudar até de madrugada e depois fazia sua ceia. Quando acabou o pão, abriu um pacote de bolacha maria.

- De onde vem esse cheiro? - perguntei farejando. Fui até o caixotinho, voltei, cheirei o assoalho. - Você não está sentindo um cheiro meio ardido?

- É de bolor. A casa inteira cheira assim - ela disse. E puxou o caixotinho para debaixo da cama.

No sonho, um anão louro de colete xadrez e cabelo repartido no meio entrou no quarto fumando charuto. Sentou-se na cama da minha prima, cruzou as perninhas e ali ficou sério, vendo-a dormir. Eu quis gritar, tem um anão no quarto! mas acordei antes. A luz estava acesa. Ajoelhada no chão, ainda vestida, minha prima olhava fixamente algum ponto no assoalho.

- Que é que você está fazendo aí? - perguntei.

- Essas formigas. Apareceram de repente, já enturmadas. Tão decididas, está vendo?

Levantei e dei com as formigas pequenas e ruivas que entravam em trilha espessa pela fresta debaixo da porta, atravessaram o quarto, subiam pela parede do caixotinho de ossos e desembocavam lá dentro, disciplinadas como um exército em marcha exemplar.

- São milhares, nunca vi tanta formiga assim. E não tem trilha de volta, só de ida - estranhei.

- Só de ida.

Contei-lhe meu pesadelo com o anão sentado em sua cama.

- Está debaixo dela - disse minha prima e puxou para fora o caixotinho. Levantou o plástico. - Preto de formiga. Me dá o vidro de álcool.

- Deve ter sobrado alguma coisa aí nesses ossos e elas descobriram, formiga descobre tudo. Se eu fosse você, levava isso lá pra fora.

- Mas os ossos estão completamente limpos, eu já disse. Não ficou nem um fiapo de cartilagem, limpíssimos. Queria saber o que essas bandidas vêm fuçar aqui.

Respingou fartamente o álcool em todo o caixote. Em seguida, calçou os sapatos e como uma equilibrista andando no fio de arame, foi pisando firme, um pé diante do outro na trilha de formigas. Foi e voltou duas vezes. Apagou o cigarro. Puxou a cadeira. E ficou olhando dentro do caixotinho.

- Esquisito. Muito esquisito.

- O quê?

- Me lembro que botei o crânio em cima da pilha, me lembro que até calcei com a omoplatas para não rolar. E agora ele está aí no chão do caixote, com uma omoplata de cada lado. Por acaso você mexeu aqui?

- Deus me livre, tenho nojo de osso. Ainda mais de anão.

Ela cobriu o caixotinho com o plástico, empurrou-o com o pé e levou o fogareiro para a mesa, era a hora do seu chá. No chão, a trilha de formigas mortas era agora uma fita escura que encolheu. Uma formiguinha que escapou da matança passou perto do meu pé, já ia esmagá-la quando vi que levava as mãos à cabeça, como uma pessoa desesperada. Deixei-a sumir numa fresta do assoalho.

Voltei a sonhar aflitivamente mas dessa vez foi o antigo pesadelo em torno dos exames, o professor fazendo uma pergunta atrás da outra e eu muda diante do único ponto que não tinha estudado. Às seis horas o despertador disparou veementemente. Travei a campainha. Minha prima dormia com a cabeça coberta. No banheiro, olhei com atenção para as paredes, para o chão de cimento, à procura delas. Não vi nenhuma. Voltei pisando na ponta dos pés e então entreabri as folhas da veneziana. O cheiro suspeito da noite tinha desaparecido. Olhei para o chão: desaparecera também a trilha do exército massacrado. Espiei debaixo da cama e não vi o menor movimento de formigas no caixotinho coberto.

Quando cheguei por volta das sete da noite, minha prima já estava no quarto. Achei-a tão abatida que carreguei no sal da omelete, tinha a pressão baixa. Comemos num silêncio voraz. Então me lembrei:

- E as formigas?

- Até agora, nenhuma.

- Você varreu as mortas?

Ela ficou me olhando.

- Não varri nada, estava exausta. Não foi você que varreu?

- Eu?! Quando acordei, não tinha nem sinal de formiga nesse chão, estava certa que antes de deitar você juntou tudo... Mas então quem?!

Ela apertou os olhos estrábicos, ficava estrábica quando se preocupava.

- Muito esquisito mesmo. Esquisitíssimo.

Fui buscar o tablete de chocolate e perto da porta senti de novo o cheiro, mas seria bolor? Não me parecia um cheiro assim inocente, quis chamar a atenção de minha prima para esse aspecto mas estava tão deprimida que achei melhor ficar quieta. Espargi água-de-colônia flor de maçã por todo o quarto (e se ele cheirasse como pomar?) e fui deitar cedo. Tive o segundo tipo de sonho que competia nas repetições com o sonho da prova oral: nele, eu marcava encontro com dois namorados ao mesmo tempo. E no mesmo lugar. Chegava o primeiro e minha aflição era levá-lo embora dali antes que chegasse o segundo. O segundo, desta vez, era o anão. Quando só restou o oco de silêncio e sombra, a voz da minha prima me fisgou e me trouxe para a superfície. Abri os olhos com esforço. Ela estava sentada na beira da minha cama, de pijama e completamente estrábica.

- Elas voltaram.

- Quem?

- As formigas. Só atacam de noite, antes da madrugada. Estão todas aí de novo.

A trilha da véspera, intensa, fechada, seguia o antigo percurso da porta até o caixotinho de ossos por onde subia na mesma formação até desformigar lá dentro. Sem caminho de volta.

- E os ossos?

Ela se enrolou no cobertor, estava tremendo.

- Aí é que está o mistério. Aconteceu uma coisa, não entendo mais nada! Acordei pra fazer pipi, devia ser umas três horas. Na volta senti que no quarto tinha algo mais, está me entendendo? Olhei pro chão e vi a fila dura de formiga, você lembra? não tinha nenhuma quando chegamos. Fui ver o caixotinho, todas trançando lá dentro, lógico, mas não foi isso o que quase me fez cair pra trás, tem uma coisa mais grave: é que os ossos estão mesmo mudando de posição, eu já desconfiava mas agora estou certa, pouco a pouco eles estão... estão se organizando.

- Como, organizando?

Ela ficou pensativa. Comecei a tremer de frio, peguei uma ponta do seu cobertor. Cobri meu urso com o lençol.

Você lembra, o crânio entre as omoplatas, não deixei ele assim. Agora é a coluna vertebral que já está quase formada, uma vértebra atrás da outra, cada ossinho tomando seu lugar, alguém do ramo está montando o esqueleto, mais um pouco e... Venha ver!

- Credo, não quero ver nada. Estão colando o anão, é isso?

Ficamos olhando a trilha rapidíssima, tão apertada que nela não caberia sequer um grão de poeira. Pulei-a com o maior cuidado quando fui esquentar o chá. Uma formiguinha desgarrada (a mesma daquela noite?) sacudia a cabeça entre as mãos. Comecei a rir e tanto que, se o chão não estivesse ocupado, rolaria por ali de tanto rir. Dormimos juntas na minha cama. Ela dormia ainda quando saí para a primeira aula. No chão, nem sombra de formiga, mortas e vivas, desapareciam com a luz do dia.

Voltei tarde essa noite, um colega tinha se casado e teve festa. Vim animada, com vontade de cantar, passei da conta. Só na escada é que me lembrei: o anão. Minha prima arrastara a mesa para a porta e estudava com o bule, fumegando no fogareiro.

- Hoje não vou dormir, quero ficar de vigia - ela avisou.

O assoalho ainda estava limpo. Me abracei ao urso.

- Estou com medo.

Ela foi buscar uma pílula para atenuar minha ressaca, me fez engolir a pílula com um gole de chá e ajudou a me despir.

- Fico vigiando, pode dormir sossegada. Por  enquanto não apareceu nenhuma, não está na hora delas, é daqui a pouco que começa. Examinei com a lupa debaixo da porta, sabe que não consigo descobrir de onde brotam?

Tombei na cama, acho que nem respondi. No topo da escada o anão me agarrou pelos pulsos e rodopiou comigo até o quarto, acorda, acorda! Demorei para reconhecer minha prima que me segurava pelos cotovelos. Estava lívida. E vesga.

- Voltaram - ela disse.

Apertei entre as mãos a cabeça dolorida.

- Estão aí?

Ela falava num tom miúdo como se uma formiguinha falasse com sua voz.

- Acabei dormindo em cima da mesa, estava exausta. Quando acordei, a trilha já estava em plena. Então, fui ver o caixotinho, aconteceu o que eu esperava...

- Que foi? Fala depressa, o que foi?

Ela firmou o olhar oblíquo no caixotinho debaixo da cama.

- Estão mesmo montando ele. E rapidamente, entende? O esqueleto está inteiro, só falta o fêmur. E os ossinhos da mão esquerda, fazem isso num instante. Vamos embora daqui.

- Você está falando sério?

- Vamos embora, já arrumei as malas.

A mesa estava limpa e vazios os armários escancarados.

- Mas sair assim, de madrugada? Podemos sair assim?

- Imediatamente, melhor não esperar que a bruxa acorde. Vamos, levanta.

- E para onde a gente vai?

- Não interessa, depois a gente vê. Vamos, vista isto, temos que sair antes que o anão fique pronto.

Olhei de longe a trilha: nunca elas me pareceram tão rápidas. Calcei os sapatos, descolei a gravura da parede, enfiei o urso no bolso da japona e fomos arrastando as malas pelas escadas, mais intenso o cheiro que vinha do quarto, deixamos a porta aberta. Foi o gato que miou comprido ou foi um grito?

No céu, as últimas estrelas já empalideciam. Quando encarei a casa, só a janela vazada nos via, o outro olho era penumbra.

Conto de Lygia Fagundes Telles retirado do livro Mistérios, Editora Nova Fronteira, 4ª Edição, 1981.

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Ângela RoRo

Há quem diga que Ângela RoRo não existiria sem Maysa. Pode ser. Dos olhos verdes abissais à voz rouca que lhe emprestou o sobrenome artístico, esta Ângela (que, como  outra grande cantora, também é Maria) guarda em comum com Maysa o gosto pela densidade, pelos climas noturnos, por aquilo que na longa e nobre linhagem das cantoras-compositoras brasileiras convenciounou-se chamar "dor-de-cotovelo". Só que em RoRo, ao contrário de Maysa e, por exemplo, Dolores Duran, essa dor frequentemente vem marcada por um humor irônico e até debochado.

A verdade é que Ângela RoRo concentra em seu trabalho várias tendências - do samba-canção ao blues, do rock and roll ao bolero. Surgindo como um furacão em 1979, seu primeiro disco logo se impôs na maré de novas cantoras da mesma época. E que surgiam - geração pós-tropicalista, portanto aberta a todas as influências - também como consequência do movimento feminista dos anos 60-70, quando muitas mulheres trocavam a pia pela máquina de escrever. Ou pelo violão. Impossível ver Ângela RoRo dissociada desse fenômeno. Nas muitas entrevistas polêmicas que deu, sua voz é inconfundível. Tanto pela rouquidão quanto pelas coisas - atrevidas, sempre - que diz. Uma artista e uma pessoa sem engodos.

Cantando músicas de outros compositores ("Escândalo", de Caetano Veloso, que é a cara dela, ou o clássico "Demais", de Aloysio de Oliveira e Tom Jobim) ou suas próprias, essa Ângela irreverente e jamais inconsequente é, antes de mais nada, muito particular. Tanto que, nos últimos anos, preferiu continuar solitariamente o próprio caminho a aventurar-se por outros talvez mais gratificantes mas, com certeza, muito mais descartáveis. Ela não é das que passam com facilidade.

Referência fundamental às novas cantoras-compositoras que surgem a cada dia, Ângela RoRo traz consigo o mesmo segredo de Billie Holiday: impossível ouvi-la sem um copo de uísque (real ou imaginário), sem a  lembrança de algum amor perdido. Nas fogueiras da paixão em que sempre ardeu, em meio a difíceis sabedorias, a obra e a vida de Ângela RoRo têm aprendido que, apesar de todas as quedas, viver pode ser uma coisa bela. De uma beleza cegante, só concedida aos que - como ela - têm a coragem de  jogar-se nas aventuras do amor. Que, também pouco importa, pode ser real ou ilusório.

A essa voz e seus graves profundos, quase sempre basta apenas um piano. Mas de quem a ouve, exige muito mais: que o amor tenha doído, alguma vez, em algum momento. Para esses amorosos desorientados de fim de século é que Ângela RoRo canta. Nada mais adequado como trilha sonora de um tempo em que, embora as mãos toquem-se cada vez menos, a cada um de nós só resta mesmo é viver. Como ela, sem engodos.

Texto de Caio Fernando Abreu que está na contracapa da coletânea Personalidade (versão LP) lançada em 1991.

Mônica

Garota, não vá se distrair,
E acreditar que o mundo vive com a inocência desse seu olhar...
Você se engana e se dá mal, com um tipinho anormal,
E a sociedade vai te condenar...

Morreu violentada porque quis!
Saía, falava, dançava...
Podia estar quieta e ser feliz...
Calada, acuada, castrada...

Agora não dá mais para sonhar...
O seu diário na TV,
Não há segredos mais pra ocultar,
Todos vão saber que era criança,
Que amava muito os pais,
Que tinha um gato e outros pecados mais...

Aída Curi era rock, Aracelli, balão mágico,
Cláudia Lessin, a geração de Reich...
O que eu não vou classificar
É a dor do pai, a dor da mãe,
Que ela poderia ser, mas não vai...

Queremos o seguinte no jornal:
Quem mata menina se dá mal!
Sendo gente bem ou marginal...
Quem fere uma imrã tem seu final!

Música de Ângela RoRo do seu então LP de 1985, intitulado Eu Desatino...

** Aída Curi, Aracelli e Cláudia Lessin foram barbaramente assassinadas: a primeira no final dos anos 50 e as outras na década de 70. Julgamentos ridículos marcaram os episódios e ninguém foi seriamente punido pelos crimes...

Ângela RoRo 1984

Meus queridos, meu desejo é nossa paz!

Um dos lados interessantes da vida terrena humana é o acumular de sensações, informações e conhecimento através dos tempos.

A sabedoria é a junção em funcionamento de tais elementos. Minha engenhoca e eu até hoje chegou à conclusão de que a única forma de se viver e até de se alcançar a felicidade é ser aberto para questões, ter fé, ser honesto e sadio, e ter uma coragem lúcida ao se imolar a cada respirar! Nem que para isso seja preciso doer o sacrifício, pois nada funciona sem o desgaste; portanto, é melhor se utilizar de tal num sentido positivo e construtor.

Estes últimos três anos têm sido para mim uma verdadeira prova de fogo, pois socialmente fui destituída de crédito, afeição e respeito, em vias da injúria, oportunismo e maldade, causando sérios problemas psico-emocionais e até de ordem física em minha pequena pessoa. E assim venho tendo experiências profundas em relação à vida, pois confesso ter tido infância das mais felizes e admito ser minha vida a ventura mais singela e gostosa que pude saborear. Apenas posso dizer e cantar as alegrias e as dores naturalmente como elas existem, ponderar e agir conforme o bem me acelera e o mal me apavora!

Eu só e só nós podemos fazer algo que nos salve diariamente, antes que a desordem e o caos tenham tomado uma proporção absurda e inadequada ao poder íntimo e acanhado do ser humano, tão pretensioso! E se de todo for bem difícil, quase impossível, e quando a vergonha e a dor nos arrastarem para um estado de letargia ou histeria negativas, o que realmente devemos fazer é saber por que elas nos levam e de onde vieram, para que possamos convidá-las para o chá e entrarmos em acordo, pois todos os inconvenientes, sofrimentos e cruéis seres são sensíveis ao convite à dança, especialmente se tratando do ritmo do amor, sedutor e controlador da miséria! Viva a natureza! Viva a paz! Viva o trabalho! Viva o esforço! Viva a comunidade! Viva o amor!

Meus infinitos agradecimentos à Pelmex, Letícia, Glauber, Vovó Josina, Mamãe, Papai e tia Tereza. Aliás, falando em família, que é comumente a viagem inicial e marcante de cada pessoa, devo gritar que Papai e Mamãe são e foram as coisas mais lindas que já me aconteceram. Leais, destemidos, bravos, guerreiros, sábios, espontâneos, sérios, malucos, livres, pagãos, honestos, mísitcos, íntegros, fabulosos, amantes dedicados, fervorosos, legítimos, sadios, bons e crentes no dia de amanhã por ser o dia seguinte! A gratidão!

A malícia e a pureza andam juntas pelos paraísos da vida!

Hoje já acho fácil compreender a irmandade entre o prazer e a  divindade, coisa que outrora, confesso, por formação me  chegava com certo paradoxo. E como é bom saber que o gostoso é sagrado e o sagrado é absolutamente recheado de gostosura...

Espontaneamente agradeço a herança generosamente deixada por todas as ancestrais mulheres que foram anjos, à sabedoria de minha uterina Mãe, minha uterante Vó e às minhas ultra-amantes, especialmente e só por ela, minha amada, cujo corpo é entrega, cuja cabeça é questionamento e cuja alma é minha namorada!

Depositar culpa ou pretexto em males sociais para amenizar o remorso de males pessoais é nocivo e idiota, pois que assim seria eu uma guerrilheira homicida e não esta simbólica boêmia suicida.

Portanto, meus queridos, eu vou à luta maior que é ser feliz, e  deixar uma partícula de prazer neste mundo de dores!

Povo que não goza pensando em Deus, pois só Deus, a energia total, é responsável pela exuberância da vida, é povo triste, revoltado, rancoroso, limitado e impotente!

Vamos à luta! Vamos à pureza do gozo! Vamos dar a volta por cima, cuspindo em todos os valores absurdos e mesquinhos, e  fazermos nossa lei sob a luz divina, e na nobreza de nossos corações soltarmos as amarras do medo e partirmos seguros e sãos em direção à liberdade de ser, amar e gozar!

Somos anjos carnais, a vergonha não nos cabe!

É de nosso direito a comida, o ar puro, o voto, o respeito, a vida! Viva Gandhi! Viva Ché! Viva Joana D'Arc! Viva Jesus! Viva Leila Diniz! Viva a gente!

Texto publicado no encarte do então LP de 1984 de Ângela RoRo intitulado A Vida É Mesmo Assim...

domingo, 2 de agosto de 2020

O problema de agradar a todos

Às vezes acontece de você se desesperar porque descobre que não pode agradar a todos? Fica com a impressão de que passa a vida se esforçando para agradar e ajudar os outros para, no fim, ser sempre mal compreendido ou mal interpretado? Se isto lhe acontece, reflita sobre esta frase de Montaigne: "Um homem precisa de ouvidos fortes para ouvir o que se diz sobre ele, quando é julgado com liberdade."

A verdade é que, por mais que você se esforce para ser justo, cuidadoso e consciente, sempre há alguém que interpreta mas as suas atitudes ou suas ações. Se aparece alguém que gasta muito na tentativa de ajudar os amigos, imediatamente começam os mexericos, acusando-o de desperdício, ou de extravagância. Mas se aparece alguém que conta cuidadosamente seus vinténs, preocupado em resguardar-se para o futuro, não faltará quem o acuse de sovina.

Se você é menos liberal que alguém em relação a algum assunto, imediatamente será taxado de "conservador" ou "antiquado". Mas se você é mais liberal, é o  outro que passa a ser taxado de "preconceituoso" e "ultrapassado".

O que há, na minha opinião, é a tendência geral que todos nós temos de condenar nos outros defeitos que condenamos em nós mesmos.

Se alguém não faz alguma coisa, há quem o critique por não ter feito; mas se faz, há críticas também porque faz. Quando um homem que sempre agiu de determinada maneira muda sua atitude, há quem o critique por ter mudado, quem o critique por ter deixado de ser (ou fazer) como antes e, claro, que o critique por ter passado a ser (ou fazer) o que está sendo (ou fazendo) agora.

Por isso é que, na minha opinião, o caminho mais acertado é reconhecer que ninguém, em tempo algum, consegue agradar a todos. Acho mesmo que ninguém consegue agradar a ninguém, por muito tempo, nem mesmo a si próprio.

Será que você, por exemplo, jamais teve um momento de arrependimento por algo que fez ou deixou de fazer?

Também aqui o meu conselho é de que cada um faça o possível para agir conscienciosamente, de acordo com o que lhe parecer mais acertado, de acordo com suas convicções, com a mente sempre aberta para a possibilidade de estar errado. E, enquanto isto, esperar com fé que nossos erros sejam perdoados. Sejamos tolerantes para com os outros para merecermos, nós também, a tolerância para nossos erros.

Seja o que você É, e saiba: fatalmente, seu modo de ser acabará por desagradar a alguém. Agradeça as críticas que lhe fizeram, faça bom uso das críticas construtivas e vá em frente, dando sempre o melhor de si. Se você aprender a viver em harmonia com seu verdadeiro EU, as críticas que fatalmente receberá não o farão sofrer tanto.

Texto de Daniel Carvalho Luz retirado do livro Insight, DVS Editora, 2001.

sábado, 1 de agosto de 2020

Sargento Garcia

I

- Hermes - o rebenque estalou contra a madeira gasta da mesa. Ele repetiu mais alto, quase gritando, quase com raiva: - Eu chamei Hermes. Quem é essa lorpa?

Avancei do fundo da sala.

- Sou eu.

- Sou eu, meu sargento. Repita.

Os olhos olhavam, nus como eu. Só se ouvia o ruído das pás do ventilador girando enferrujadas no teto, mas eu sabia que riam baixinho, cutucando-se excitados. Atrás dele, a parede de reboco descascado, a janela pintada de azul-marinho aberta sobre um pátio cheio de cinamomos caiados de branco até a metade. Nenhum vento nas copas imóveis. E moscas amolecidas pelo calor, tão tontas que se chocavam no ar, entre o cheiro de bosta quente de cavalo e corpos sujos de machos. De repente, mais nu que os outros, eu: no centro da sala. O suor escorria pelos sovacos.

- Ficou surdo, idiota?

- Não. Não, não, seu sargento.

- Meu sargento.

- Meu sargento.

- Por que não respondeu quando chamei?

- Não ouvi. Desculpe, eu...

- Não ouvi, meu sargento. Repita.

- Não ouvi. Meu sargento

Parecia divertido, o olho verde frio, de cobra, quase oculto sob as sobrancelhas unidas em ângulo agudo sobre o nariz. Começava a odiar aquele bigode grosso como um manduruvá cabeludo rastejando em volta da boca, cortina de veludo negro entreaberta sobre os lábios molhados.

- Tem cera nos ouvidos, pamonha?

Olhou em volta, pedindo aprovação, dando licença. Um alívio percorreu a sala. Os homens riam livremente agora. Podia ver, à minha direita, o alemão de costela quebrada, a ponta quase furando a barriga sacudida por um riso banguela. E o saco murcho do crioulo parrudo.

- Não, meu sargento.

- E no rabo?

Surpreso, suspenso, o coro de risos. As pás do ventilador voltaram a arranhar o silêncio, feito filme de mocinho, um segundo antes do tiro. Ele olhou os homens, um a um. O riso recomeçou, estridente. A ponta da costela vibrava no ar, um acidente no roça com minha irmón. Imóveis, as folhas bem de cima dos cinamomos. O saco murcho, como se não houvesse nada dentro, faixa preta, morou? Uma mosca esvoaçou perto do meu olho. Pisquei.

- Esquece. E não pisca, bocó. Só quando eu mandar.

Levantou-se e veio vindo devagar em minha direção. A camiseta branca, com grandes manchas de suor embaixo dos braços peludos, cruzados sobre o peito, a ponta do rebenque curto de montaria, ereto e tenso, batendo ritmicamente nos cabelos quase raspados, duros de brilhantina, colado no crânio. Num salto, o rebenque enveredou em direção à minha cara, desviou-se e menos de um palmo, zunindo, para bater com força nas botas. Estremeci. Era ridícula a sensação de minha bunda exposta, branca e provavelmente trêmula, na frente daquela meia dúzia de homens pelados. O manduruvá contraiu-se, lesma respingada de sal, a cortina afastou-se para um lado. Um brilho de ouro dançou sobre o canino.

- Está com medo, molóide?

- Não, meu sargento. É que...

O rebenque estalou outra vez na bota. Couro contra couro. Seco. A sala inteira pareceu tremer comigo. Na parede, o retrato de Castello Branco oscilou. Os risos cessaram. Mas, junto com o zumbido de sangue quente na minha cabeça, as pás ferrugentas do ventilador e o voo gordo das moscas, localizava também um ofegar seboso, nojento. Os outros esperavam. Eu esperava. Era assim um cristão na arena? pensei sem querer. O leão brincando com a vítima, patas vadias, antes de desferir o golpe mortal.

- Quem fala aqui sou eu, correto?

- Correto, sargento. Meu sargento.

- Limite-se a dizer sim, meu sargento, ou não, meu sargento. Correto?

- Sim, meu sargento.

Muito perto. Cheiro de suor de gente e cavalo, bosta quente, alfafa, cigarro e brilhantina. Sem mover a cabeça, senti seus olhos de cobra percorrendo meu corpo inteiro, vagarosamente. Leão entediado, general espartano, tão minucioso que podia descobrir a cicatriz de arame farpado escondida na minha coxa direita, os três pontos de uma pedrada, entre os cabelos, e pequenas marcas, mesmo as que eu desconhecia, todas as verrugas e os sinais mais secretos da minha pele. Moveu o cigarro com os dentes. A brasa quente passou raspando junto à minha face. O mamilo do peito saliente roçou meu ombro. Voltei a estremecer.

- Mocinho delicado, hein? É daqueles bem-educados, é? Se te pego num cortado brabo, tu vai ver o que é bom pra tosse, perobão.

Os homens remexiam-se, inquietos. Romanos, queriam sangue. O rebenque, a bota.

- Sen - tido!

Estiquei a coluna. O pescoço doía, retesado. As mãos pareciam feitas apenas de ossos crispados, sem pele, carne nem músculos. Pisou o cigarro com o salto da bota. Cuspiu de lado!

- Descan - sar!

Girou rápido sobre os calcanhares, voltando para a mesa. Cruzei as mãos nas costas, tentando inutilmente esconder a bunda nua. Além da copa dos cinamomos, o céu azul não tinha nenhuma nuvem. Mas lá embaixo, na banda do rio, o horizonte começava a  ficar avermelhado. Com um tapa, alguém esmagou uma mosca.

- Silêncio, idiotas!

Olhou para o meu peito. Baixou os olhos. Um pouco mais.

- Então tu é que é o tal de Hermes?

- Sim, meu sargento.

- Tem certeza?

- Sim, meu sargento.

- Mas de onde foi que tu tirou esse nome?

- Não sei, meu sargento.

Sorriu. Pressenti o ataque. Sempre vencia. E quase admirei a sua capacidade de comandar as reações daquela manada bruta da qual, para ele, eu devia fazer parte, presa suculenta, carne indefesa e fraca. Como um idiota, pensei em Débora Kerr no meio dos leões, cinemascope, cor de luxe, túnica branca, rosas nas mãos, um quadro antigo na casa de minha avó, Cecília entre os leões, ou Jean Simmons, figura de catecismo, os-cristãos-eram-obrigados-a-negar-sua-fé-sob-pena-de-morte, o padre Lima casou com a filha do barbeiro, que deve ter virado mula-sem-cabeça, a filha, não o padre, nem o barbeiro. O silêncio crescendo. Um cavalo esmolambado cruzou o espaço vazio da janela, palco, tela, minha cabeça galopava, Steve Reeves ou Victor Macture, sozinho na arena, estrangulando o leão, os cantos da boca, não era assim, as-comissuras-dos-lábios-voltadas-para-baixo-num-esforço-hercúleo, o trigo venceu a ferocidade do monstro de guampas. A mosca pousou bem na ponta do meu nariz.

- Por acaso tu é filho das macegas?

Minha cara incendiava. Ele apagou o cigarro dentro do pequeno capacete militar invertido, sustentado por três espingardas cruzadas.  E me olhou de frente, firme, pela primeira vez, fundo, sobrancelhas agudas sobre o nariz, forte, um falcão atento à presa. A mosca levantou voo da ponta do nariz. Não me fira, pensei com força, tenho dezessete anos, gosto de desenhar, meu quarto tem um Anjo da Guarda com a moldura quebrada, a janela dá para um jasmineiro, no verão eu fico tonto, meu sargento, me dá assim como um nojo doce, a noite inteira, todas as noites, todo o verão, vezenquando saio nu na janela com uma coisa que não entendo direito acontecendo nas minhas veias, depois abro As Mil e Uma Noites e tento ler, meu sargento, sois um bom dervixe, habituado a uma vida tranquila, distante dos cuidados do mundo, na manhã seguinte minha mãe diz sempre que tenho olheiras, bate na porta quando vou ao banheiro e repete repete que aquele disco da Nara Leão é muito chato, que eu devia parar de desenhar tanto, porque já tenho dezessete anos e nenhuma vergonha na cara, meu sargento, nenhum amigo, meu sargento, só esta tontura seca de estar começando a viver, todas as manhãs, meu sargento, para todo o sempre, amém. Feito cometas, faíscas cruzaram na frente dos meus olhos. Tive medo de cair. Mas as folhas mais altas dos cinamomos começaram a se mover. O sol quase caindo no Guaíba. E não sei se pelo olhar dele, se pelo nariz livre da mosca, pela minha história, pela brisa vinda do rio ou puro cansaço, parei de odiá-lo naquele exato momento. Como quem muda uma estação de rádio. Esta, sentia impreciso, sem interferências.

- Pois, seu Hermes, então tu é o tal que tem pé chato, taquicardia e pressão baixa? O médico me disse. Arrimo de família, também?

- Sim, meu sargento - menti apressado, o médico amigo de meu pai. Uma suspeita cruzou minha cabeça: se descobrisse? Mas tive certeza: ele já sabia. O tempo todo. Desde o começo. Movimentei os ombros. Mais leves. Olhei fundo no fundo frio do olho dele.

- Trabalha?

- Sim, meu sargento - menti outra vez.

- Onde?

- Num escritório.

- Estuda?

- Sim, meu sargento.

- O quê?

- Pré-Vestibular, meu sargento.

- Vai fazer o quê? Engenharia, Direito, Medicina?

- Não, meu sargento.

- Odontologia? Agronomia? Veterinária?

- Filosofia, meu sargento.

Uma corrente tensa percorreu os outros. Esperei que atacasse novamente. Ou risse. Tornou a me examinar, lento. Respeito, aquilo? Ou pena? O olhar se deteve, abaixo do meu umbigo. Acendeu outro cigarro. Continental sem filtro, eu podia ver, com o isqueiro em forma de bala. Espiou pela janela. Devia ter visto o céu avermelhado sobre o rio, o laranja do céu, o quase roxo das nuvens amontoadas no horizonte. Voltou os olhos para mim. Pupilas tão contraídas que o verde parecia vidro liso, fácil de quebrar.

- Pois seu filósofo, o senhor está dispensado de servir à Pátria. Seu certificado fica pronto daqui a três meses. Pode se vestir. - Olhou em volta, o alemão, o crioulo. - E vocês, seus analfabetos, criem vergonha nessas caras porcas e mirem-se no exemplo aí do moço. Como se não bastasse ser arrimo de família, ainda vai sair um dia filosofando por aí, enquanto vocês vão continuar pastando até a morte.

Caminhei para a porta, tão vitorioso que meu passo era uma folha vadia, dançando na brisa da tardezinha. Abriram caminho para que eu passasse, lerdos, vencidos. Antes de entrar na outra sala, ouvi o rebenque estalando contra a bota.

- Sen - tido! Estão pensando que isso aqui é o cu da mãe Joana?


II

Parado no portão de ferro, olhei direto para o sol. Meu truque antigo: o em volta tão claro que atingia seu oposto e se tornava escuro, enchendo-se de sombras e reflexos que se uniam aos poucos, organizando-se em forma de objetos, ou apenas dançavam, soltos no espaço à minha frente, sem formar coisa alguma. Eram esses que me interessavam, os que dançavam vadios no ar, sem fazer parte das nuvens, das árvores nem das casas. Eu não sabia para onde iam, depois que meu olho novamente acostumado à luz colocava cada coisa em seu lugar, assim: casa - paredes, janelas e portas; árvores - tronco, galhos e folhas; nuvem - fiapos estirados ou embolados, vezenquando brancos, vezenquando coloridos. Cada coisa, cada coisa: inteira, na união de todas as suas infinitas partes. Mas e a sombra e os reflexos, esses que não se integravam em forma alguma, onde ficavam guardados? Para onde ia a parte das coisas que não cabia na própria coisa? Para o fundo do meu olho, esperando o ofuscamento para vir outra vez à tona? Ou entre as próprias coisas-coisas, no espaço vazio entre o fim de uma parte e o começo de outra? Como um por trás do real, feito espírito de sombra ou luz, claro-escuro escondido no mais de-dentro de um tronco ou no pequeno espaço entre um tijolo e outro no meio de dois fiapos de nuvem - onde? As cigarras chiavam no pátio. Respirei fundo, erguendo um pouco os ombros para engolir mais ar. Meu corpo inteiro nunca tinha me parecido tão novo. Comecei a descer o morro, o quartel ficava para trás. Bola de fogo suspensa, o sol sobre o rio. Sacudi um pé de jasmim-do-cabo, a chuva adocicada despencou na minha cabeça. Na primeira curva, o Chevrolet antigo parou a meu lado. Como um grande morcego cinza.

- Vai pra cidade?

Como se estivesse surpreso, espiei para dentro.Ele estava debruçado na janela, o sol invadindo o meio sorriso, fazendo brilhar o remendo dourado no canino esquerdo.

- Quer carona?

- Vou tomar o bonde logo ali na Azenha.

- Te deixo lá - disse. E abriu a porta do carro.

Entrei. O cigarro moveu-se de um lado para outro da boca, enquanto a mão engatava a primeira. Um vento entrando pela janela fazia meu cabelo voar. Ele segurou o cigarro, Continental sem filtro, eu tinha visto, entre o polegar e o indicador amarelados, cuspiu pela janela, depois me olhou.

- Ficou com medo de mim?

Não era mais leão, nem general espartano. A voz macia, um homem comum sentado na direção de seu carro. Tirei do bolso a caixinha de chicletes, abri devagar, sem oferecer. Mastiguei. A camada de açúcar partiu-se, uma coisa gelada abriu minha garganta. Engoli o vento.

- Não sei - e quase acrescentei meu sargento. Sorri por dentro. - Bom, no começo fiquei um pouco. Depois vi que o senhor estava do meu lado.

- Senhor, não. Garcia, a bagualada toda me chama de Garcia. Luiz Garcia de Souza. Sargento Garcia. - Simulou uma continência, tornou a cuspir, tirando primeiro o cigarro da boca. - Quer dizer então que tu achou que eu estava do teu lado. - Eu quis dizer qualquer coisa, mas ele não deixou. O carro chegava ao fim do morro. - É que logo vi que tu era diferente do resto. - Olhou para mim. Sem frio nem medo, me encolhi no banco. - Tenho que lidar com gente grossa o dia inteiro. Nem te conto. Aí quando aparece um moço mais fino, assim que nem tu, a gente logo vê. - Passou os dedos no bigode. - Então quer dizer que tu vai ser filósofo, é? Mas me conta, qual é a tua filosofia de vida?

O chiclete agora era uma pasta branca cheia de casquinhas quebradiças entre meus dentes.

- De vida? Não sei, outro dia andei lendo um cara aí. Leibniz, aquele das mônadas, conhece?

- Das o quê?

Me ajeitei no banco.

- As mônadas. É um cara aí, dizia que tudo no Universo são. Assim como janelas fechadas, como caixas. Mônadas, entende? Separadas umas das outras. - Franziu a testa. Interessado. Ou sem entender nada. Continuei. - Incomunicáveis, entende? Umas coisas assim meio sem ter nada a ver umas com as outras.

- Tudo?

- É, tudo. As casas, as pessoas cada uma delas. Os animais, as plantas, tudo. Cada um uma mônada. Fechada.

Pisou no freio. Estendi as mãos para a frente. Pareceu não ver.

- Mas tu acredita mesmo nisso?

- Eu acho que.

- Pois pra te falar a verdade, eu aqui não entendo desses troços. Passo o dia inteiro naquele quartel, com aquela bagualada mais grossa que dedo destroncado. E com eles a gente tem é que tratar assim mesmo, no braço, trazer ali, no cabresto, de rédea curta, senão te montam pelo cangote e a vida vira um inferno. Não tenho tempo pra perder pensando nessas coisas aí do Universo. Mas acho bacana. - A voz amaciou, depois tornou a endurecer. - Minha  filosofia de vida é simples: pisa nos outros antes que te pisem. Não tem essas mônicas daí. Mas tu tem muita estrada pela frente, guri. Sabe que idade eu tenho? - Examinou meu rosto. Eu não disse nada. - Pois tenho trinta e três. Do teu tamanho andava por aí meio desorientado, matando contrabandista na fronteira. O quartel é que me pôs nos eixos, senão tinha virado bandido. A vida me ensinou a ser um cara aberto. Admito tudo. Só não aguento comunista. Mas graças a Deus a revolução já deu um jeito nesse putedo todo. Aprendi a me virar, seu filósofo. A me defender no braço e no grito. - Jogou fora o cigarro. A voz macia outra vez. - Mas contigo é diferente.

Mastiguei com mais força o chiclete.

- Diferente como?

Olhava direto pra mim. Embora o vento entrasse pela janela aberta, uma coisa morna tinha se instalado dentro do carro, naquele ar enfumaçado entre ele e eu. Podia haver pontes entre as mônadas, pensei. E mordi a ponta da língua.

- Assim, um moço fino, educado. Bonito. - Fez uma curva mais rápida. O pneu guinchou. - Escuta, tu tem mesmo que ir embora agora já?

- Agora, já-já, não. Mas se eu chegar em casa muito tarde minha mãe fica uma fúria.

Mais duas quadras e chegaríamos no ponto do bonde, em frente ao cinema Castelo. Bem depressa, tinha que dizer ou fazer alguma coisa, só não sabia o quê, meu coração galopava esquisito, as mãos molhadas. Olhei para ele. Continuava olhando para mim. As casas baixas da Azenha passavam amontoadas, meio caídas umas sobre as outras, uma parede rosa, uma janela azul, uma porta verde, um gato preto numa janela branca, uma mulher de lenço amarelo na cabeça, chamando alguém, a lomba do cemitério, uma menina pulando corda, os ciprestes ficando para trás. Estendeu a mão. Achei que ia fazer uma mudança, mas os dedos desviaram da alavanca para  pousar sobre a minha coxa.

- Escuta, tu não tá afim de dar uma chegadinha comigo num lugar aí?

- Que lugar? - Temi que a voz desafinasse. Mas saiu firme.

Aranha lenta, a mão subiu mais, deslizou pela parte interna da coxa. E apertou, quente.

- Um lugar aí, coisa fina. A gente pode ficar mais à vontade, sabe como é? Ninguém incomoda. Quer?

Tínhamos ultrapassado o ponto do bonde. Bem no fundo, lá onde o riacho encontrava com o Guaíba, só a parte superior do sol estava fora d'água. Devia estar amanhecendo no Japão - antípodas, mônadas -, nessa hora eu sempre pensava assim. Me vinha a sensação de que o mundo era enorme, cheio de coisas desconhecidas. Boas nem más. Coisas soltas, feito aqueles reflexos e sombras, metidos no meio de outras coisas, como se nem existissem, esperando só a hora de a gente ficar ofuscado para sair flutuando no meio do que se podia tocar. Assim: dentro do que se podia tocar, escondido, vivia também o que só era visível quando o olho ficava tão inundado de luz que enxergava esse invisível no meio do tocável. Eu não sabia.

- Me dá um cigarro - pedi. Ele acendeu. Tossi. Meu pai com o cinturão dobrado, agora tu vai me fumar todo esse maço, desgraçado, parece filho de bagaceira. A mão quente subiu mais, afastou a camisa, um dedo entrou no meu umbigo, apertou, juntou-se aos outros, aranha peluda, tornou a baixar, caminhando entre as minhas pernas.

- Claro que quer. Estou vendo que tu não quer outra coisa, guri.

Pegou na minha mãe. Conduziu-a até o meio das pernas dele. Meus dedos se abriram um pouco. Duro, tenso, rijo. Quase estourando a calça verde. Moveu-se quando toquei. E inchou mais. Cavidades-porosas-que-se-enchem-de-sangue-quando-excitadas. Meu primo gritou na minha cara: maricão, mariquinha. O vento descabelava o verde da Redenção, os coqueiros da João Pessoa. Mariquinha, maricão, quiá-quiá-quiá. E não, eu não sabia.

- Nunca fiz isso.

Parecia contente.

- Mas não me diga. Nunca? Nem quando era piá? Uma sacanagenzinha ali, na beira da sanga? Nem com mulher? Com china na zona? Não acredito. Nem nunca barranqueou égua? Tamanho homem.

- É verdade.

Diminuiu a marcha.

- Pois eu te ensino. Quer?

Traguei fundo. Uma tontura me subiu na cabeça. De dentro das casas, das árvores e das nuvens, as sombras e os reflexos guardados espiavam, esperando que eu olhasse outra vez direto para o sol. Mas ele já tinha caído no rio. Durante a noite, os pontos de luz dormiam quietos, escondidos, guardados no meio das coisas. Ninguém sabia. Nem eu.

- Quero - eu disse.


III

Vontade de parar, mas tinha um andar incontrolável nas pernas, a cabeça em várias direções, subindo a ladeira atrás dele, tu sabe como é, tem sempre gente espiando a vida alheia, melhor eu ir na frente, no portão azul, vem vindo devagar, como se não me conhecesse, como se nunca tivesse me visto em toda a tua vida. Como se nunca o tivesse visto em toda a minha vida, seguindo aquela mancha verde, mãos nos bolsos, cigarro aceso, de repente sumindo portão adentro, com um rápido olhar para trás, gancho que me fisgava. Mergulhei atrás dele. Subi os degraus de cimento, empurrei a porta entreaberta, madeira velha, vidro rachado, penetrei na sala escura, com cheiro de mofo e cigarro, flores murchas boiando em água viscosa.

- O de sempre, então? - ela perguntava, e quase imediatamente corrigi, dentro da minha cabeça, olhando melhor, e mais atento, ele, dentro de um robe colorido, desses meio estofadinhos, cheio de manchas vermelhas, não sei se tomate, batom ou sangue. - O senhor, hein, sargento? - Piscou íntimo, íntima, para o sargento, para mim. - Esta é a vítima?

- Conhece Isadora?

A mão molhada, cheia de anéis, as longas unhas vermelhas, meio descascadas, como a porta. Apertei. Ela riu.

- Isadora, queridinho. Nunca ouviu falar? Isadora Duncan, a bailarina. Uma mulher finíssima, maravilhosa, a minha ídola, eu adoro tanto que adotei o nome. Já pensou se eu usasse o Valdemir que minha mãezinha me deu? Coitadinha, tão bem intencionada. Mas o nome, ai, o nome. Coisa mais cafona. Aí mudei.
Se deus quiser, um dia ainda vou morrer estrangulada pela minha própria écharpe. Tem Coisa mais chique?

- Bacana - eu disse.

O sargento ria, esfregando as mãos.

- Não repare, Isadora. Ele está meio encabulado. Diz que é a primeira vez.

- Nossa. Taludinho assim. E nunca fez, é? Nunquinha? - A mão no meu ombro, pedra de anel arranhando leve meu pescoço. Revirou os olhos. - Conta a verdade pra tua Isadora, somente a verdade, nada mais que a verdade. Nunca fez? - Tentei sorrir. O canto da minha boca tremeu. Falava sem parar, olhinhos meio estrábicos, sombreados de azul. - Mas olha, relaxa que vai dar tudo certinho. Sempre tem uma primeira na vida, é um momento histórico, queridinho. Merece até uma comemoração. Uma cachacinha, sargento? Tem aí daquela divina que o senhor gosta.

- O moço tá com pressa.

Isadora piscou, maliciosa, os cílios duros de tinta respingando pequenos pontinhos pretos na face.

- Pressa? Eu, hein? Sei. Não é todo dia que a gente tem carne fresquinha. De primeira, não é, sargento? - Ele riu. Ela rodou a chave nas mãos e, por um instante, pensei numa baliza, na frente de um desfile de sete de setembro, jogando para o alto um pequeno bastão cheio de fitas coloridas. - Tá bem, tá bem. Vou levar os pombinhos para a suíte nupcial. Que tal o quarto sete? Número de sorte, não é? Afinal, a primeira vez é uma só na vida. - Passou por mim enfiando-se no corredor. - Tenho certeza que o mocinho vai adorar, ficar freguês de caderno. Ninguém esquece uma mulher como Isadora.

O sargento me empurrou. Entre a farda verde e o  robe cheio de manchas, imprensado no corredor estreito, eu. Isadora cantava, que queres tu de mim que fazes junto a mim se tudo está perdido amor? Um ruído seco, ferro contra ferro. A cama com lençóis encardidos, um rolo de papel higiênico cor-de-rosa sobre o caixote que servia de mesinha de cabeceira. Isadora enfiou a cabeça despenteada pelo vão da porta.

- Divirtam-se, crianças. Só não gritem muito, senão os vizinhos ficam umas feras.

A cabeça desapareceu. A porta fechou. Sentei na cama, mãos nos bolsos. Ele chegou muito perto. Volume esticando a calça, bem próximo do meu rosto. O cheiro, cigarro, suor, bosta de cavalo. Enfiou a mão pela gola da minha camisa, baixou os dedos, beliscou o mamilo. Estremeci. Gozo, nojo ou medo, não saberia. Os olhos dele se contraíram.

- Tira a roupa.

Joguei as peças, uma por uma, sobre o assoalho sujo. Deitei de costas. Fechei os olhos. Ardiam, como se tivesse acordado de manhã muito cedo. Então um corpo pesado caiu sobre o meu e uma boca molhada, uma boca funda feito poço, uma língua ágil lambeu meu pescoço, entrou no ouvido, enfiou-se pela minha boca, um choque seco de dentes, ferro contra ferro, enquanto dedos hábeis desciam por minhas virilhas, inventando um caminho novo. Que culpa tenho eu se até o pranto que chorei se foi por ti não sei - a voz de Isadora vinha de longe, como se saísse de dentro de um aquário, Isadora afogada, a maquiagem derretida colorindo a água, a voz aguda misturada com gemidos, metendo-se entre aquele bafo morno, cigarro, suor, bosta de cavalo, que agora comandava meus movimentos, virando-me de bruços sobre a cama. O cheiro azedo dos lençóis. Tranquei a respiração. Os olhos abertos, vi a trama grossa do tecido. Com os joelhos, lento, firme, ele abria caminho entre as minhas coxas, procurando passagem. Punhal em brasa, farpa, lança afiada. Quis gritar, mas as duas mãos se fecharam sobre a minha boca. Empurrou, gemendo. Sem querer, imaginei uma lanterna rasgando a escuridão de uma caverna escondida, há muitos anos, uma caverna secreta. Mordeu minha nuca. Com o corpo, procurei jogá-lo para fora de mim.

- Seu puto - ele gemeu. - Veadinho sujo. Bichinha louca.

Agarrei o travesseiro com as duas mãos e, num arranco, consegui deitar de costas. Minha cara roçou a barba dele. Tornei a ouvir a voz de Isadora, que mais me podes dar que mais me tens a dar a marca de uma nova dor. Molhada, nervosa, a língua voltou a entrar no meu ouvido. As mãos agarraram minha cintura. Comprimiu o corpo inteiro contra o meu. Podia sentir os pelos molhados do peito dele melando a minha pele. Quis empurrá-lo outra vez mas, entre o pensamento e o gesto, ele juntou-se ainda mais a mim, e depois um gemido mais fundo, e depois um estremecimento no corpo inteiro, e depois um líquido grosso morno viscoso espalhou-se pela minha barriga. Ele soltou o corpo. Como um saco de areia úmida jogado sobre mim.

A madeira amarela do teto, eu vi, o fio comprido, o bico de luz na ponta, suspenso, apagado. Aquele cheiro adocicado boiando na penumbra cinza do quarto.

Quando estendeu a mão para o rolo de papel higiênico, consegui deslizar o corpo pela beirada da cama e, de repente, estava no meio do quarto, enfiando a roupa, abrindo a porta, olhando para trás a tempo de vê-lo passar um pedaço de papel pela própria barriga, uma farda verde em cima da cadeira, ao lado das botas negras, brilhantes, e antes que erguesse os olhos afundei no túnel escuro do corredor, a sala deserta com suas folhas podres, a voz de Isadora ainda mais remota, se foi por ti não sei, barulho de copos na cozinha, o vidro rachado, a madeira descascada da porta, os quatro degraus de cimento, o portão azul, alguém gritando alguma coisa, mas longe, tão longe como se eu estivesse na janela de um trem em movimento, tentando apanhar um farrapo de voz na plataforma da estação cada vez mais recuada, sem conseguir juntar os sons em palavras, como uma língua estrangeira, como uma língua molhada, nervosa entrando rápida pelo mais secreto de mim para acordar alguma coisa que não devia acordar nunca, que não devia abrir os olhos nem sentir cheiros nem gostos nem tatos, uma coisa que devia permanecer para sempre surda cega muda naquele mais de dentro de mim, como os reflexos escondidos, que nenhum ofuscamento se fizesse outra vez, porque devia ficar enjaulada amordaçada ali no fundo pantanoso de mim, feito bicho numa jaula fedida, entre grades e ferrugens, quieta, domada, fera esquecida da própria ferocidade, para sempre e sempre assim.

Embora eu soubesse que, uma vez desperta, não voltaria a dormir.

Dobrei a esquina, passei na frente do colégio, sentei na praça onde as luzes recém-começavam a acender. A bunda nua de pedra da estátua. Zeus. Zeus ou Júpiter, repeti. Enumerei: Palas-Atena ou Minerva, Posseidon ou Netuno, Hades ou Plutão, Afrodite ou Vênus, Hermes ou Mercúrio. Hermes, repeti, o mensageiro dos deuses, ladrão e andrógino. Nada doía. Eu não sentia nada. Tocando o pulso com os dedos podia perceber as batidas do coração. O ar entrava e saía, lavando os pulmões. Por cima das árvores do parque ainda era possível ver algumas nuvens avermelhadas, o rosa virando roxo e cinza, até o azul mais escuro e o negro da noite. Vai chover amanhã, pensei, vai cair tanta e tanta chuva que será como se a cidade toda tomasse banho. As sarjetas, os bueiros, os esgotos levariam para o rio todo o pó, toda a lama, toda a merda de todas as ruas.

Queria dançar sobre os canteiros, cheio de uma alegria tão maldita que os passantes jamais compreenderiam. Mas não sentia nada. Era assim, então. E  ninguém me conhecia.

Subi correndo no primeiro bonde, sem esperar que parasse, sem saber para onde ia. Meu caminho, pensei confuso, meu caminho não cabe nos trilhos de um bonde. Pedi passagem, sentei, estiquei as pernas. Porque ninguém esquece uma mulher como Isadora, repeti sem entender. Debruçado na janela aberta, olhando as casas e os verdes do Bonfim. Eu não o conhecia. Eu nunca o tinha visto em toda a minha vida. Uma vez desperta não voltará a dormir. O bonde guinchou na curva. Amanhã, decidi, amanhã sem falta começo a fumar.

Conto de Caio Fernando Abreu retirado do livro Morangos Mofados, Editora Brasiliense, série Circo de Letras. 8ª Edição, 1987. Esse texto recebeu o prêmio Status de Literatura 1980. Status foi uma revista destinada ao público masculino. Não existe mais...