segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Ângela RoRo

Há quem diga que Ângela RoRo não existiria sem Maysa. Pode ser. Dos olhos verdes abissais à voz rouca que lhe emprestou o sobrenome artístico, esta Ângela (que, como  outra grande cantora, também é Maria) guarda em comum com Maysa o gosto pela densidade, pelos climas noturnos, por aquilo que na longa e nobre linhagem das cantoras-compositoras brasileiras convenciounou-se chamar "dor-de-cotovelo". Só que em RoRo, ao contrário de Maysa e, por exemplo, Dolores Duran, essa dor frequentemente vem marcada por um humor irônico e até debochado.

A verdade é que Ângela RoRo concentra em seu trabalho várias tendências - do samba-canção ao blues, do rock and roll ao bolero. Surgindo como um furacão em 1979, seu primeiro disco logo se impôs na maré de novas cantoras da mesma época. E que surgiam - geração pós-tropicalista, portanto aberta a todas as influências - também como consequência do movimento feminista dos anos 60-70, quando muitas mulheres trocavam a pia pela máquina de escrever. Ou pelo violão. Impossível ver Ângela RoRo dissociada desse fenômeno. Nas muitas entrevistas polêmicas que deu, sua voz é inconfundível. Tanto pela rouquidão quanto pelas coisas - atrevidas, sempre - que diz. Uma artista e uma pessoa sem engodos.

Cantando músicas de outros compositores ("Escândalo", de Caetano Veloso, que é a cara dela, ou o clássico "Demais", de Aloysio de Oliveira e Tom Jobim) ou suas próprias, essa Ângela irreverente e jamais inconsequente é, antes de mais nada, muito particular. Tanto que, nos últimos anos, preferiu continuar solitariamente o próprio caminho a aventurar-se por outros talvez mais gratificantes mas, com certeza, muito mais descartáveis. Ela não é das que passam com facilidade.

Referência fundamental às novas cantoras-compositoras que surgem a cada dia, Ângela RoRo traz consigo o mesmo segredo de Billie Holiday: impossível ouvi-la sem um copo de uísque (real ou imaginário), sem a  lembrança de algum amor perdido. Nas fogueiras da paixão em que sempre ardeu, em meio a difíceis sabedorias, a obra e a vida de Ângela RoRo têm aprendido que, apesar de todas as quedas, viver pode ser uma coisa bela. De uma beleza cegante, só concedida aos que - como ela - têm a coragem de  jogar-se nas aventuras do amor. Que, também pouco importa, pode ser real ou ilusório.

A essa voz e seus graves profundos, quase sempre basta apenas um piano. Mas de quem a ouve, exige muito mais: que o amor tenha doído, alguma vez, em algum momento. Para esses amorosos desorientados de fim de século é que Ângela RoRo canta. Nada mais adequado como trilha sonora de um tempo em que, embora as mãos toquem-se cada vez menos, a cada um de nós só resta mesmo é viver. Como ela, sem engodos.

Texto de Caio Fernando Abreu que está na contracapa da coletânea Personalidade (versão LP) lançada em 1991.

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