quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Alexandre e Cesária

No sertão do Nordeste vivia antigamente um homem cheio de conversas, meio caçador e meio vaqueiro, alto, magro, já velho, chamado Alexandre. Tinha um olho torto e falava cuspindo a gente, espumando como um sapo-cururu, mas isto não impedia que os moradores da redondeza, até pessoas de consideração, fossem ouvir as histórias fanhosas que ele contava.

Tinha uma casa pequena, meia dúzia de vacas no curral, um chiqueiro de cabras e roça de milho na vazante do rio. Além disso possuía uma espingarda e a mulher. A espingarda lazarina, a melhor espingarda do mundo, não mentia fogo e alcançava longe, alcançava tanto quanto a vista do dono; a mulher, Cesária, fazia renda e adivinhava os pensamentos do marido. Em domingos e dias santos a casa de enchia de visitas - e Alexandre, sentado no banco do alpendre, fumando um cigarro de palha muito grande, discorria sobre acontecimentos da mocidade, às vezes se enganchava e apelava para a memória de Cesária. Cesária tinha sempre uma resposta na ponta da língua. Sabia de cor todas as aventuras do marido, a do bode que se transformava em cavalo, a da guariba mãe de família, da cachorra morta por um caititu acuado, pobrezinha, a melhor cachorra de caça que já houve. E aquele negócio de onça-pintada que numa noite ficara mansa como bicho de casa? Era medonho. Alexandre tinha realizado ações notáveis e falava bonito, mas guardava muitas coisas no espírito e sucedia misturá-las. Cesária escutava e aprovava balançando a cabeça, curvada sobre a almofada trocando os bilros, pregando alfinetes no papelão de renda. E quando o homem se calava ou algum ouvinte fazia perguntas inconvenientes, levantava os olhos miúdos por cima dos óculos e completava a narração. Esse casal admirável não brigava, não discutia. Alexandre estava sempre de acordo com Cesária, Cesária estava sempre de acordo com Alexandre. O que um dizia o outro achava certo. E assim, tudo se combinando, descobriam casos interessantes que se enfeitavam e pareciam tão verdadeiros como a espingarda lazarina, o curral, o chiqueiro das cabras e a  casa onde moravam. Alexandre, como já vimos, tinha um olho torto. Enquanto ele falava, cuspindo a gente, o olho certo espiava as pessoas, mas o olho torto ficava longe, parado, procurando outras pessoas para escutar as histórias que ele contava. A princípio esse olho torto lhe causava muito desgosto e não gostava que falassem nele. Mas com o tempo se acostumou e descobriu que enxergava melhor por ele que pelo outro, que era direito. Consultou a mulher:

- Não é, Cesária?

Cesária achou que era assim mesmo. Alexandre via até demais por aquele olho: Não se lembrava do veado que estava no monte? Pois é. Um homem de olhos comuns não teria percebido o veado com aquela distância. Alexandre ficou satisfeito e começou a referir-se ao olho enviesado com orgulho. O defeito desapareceu, e a história do espinho foi nascendo, como tinham nascido todas as histórias dele, com a colaboração de Cesária. São essas histórias que vamos contar aqui, aproveitando a linguagem de Alexandre e os apartes de Cesária.

Apresentação do livro Histórias de Alexandre, de Graciliano Ramos, Editora Record, 2007.

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