domingo, 16 de agosto de 2020

Minhas Queridas Formigas

É só eu estender e pegar aquela montanha, mas não quero. Me contento em ficar olhando, que ela é bonita a gente olhando sem pegar. Esse negócio de pegar para ver é com criança e eu já estou bem velho. E tudo o que pego mato logo, porque meus dedos são duros e poderosos demais; tudo é delicado para eles. O outro dia peguei um franguinho que tinha vindo para o meu quintal, sem querer apertei o pescoço dele - só devagar, para ele não gritar tanto. Morreu. Dei ele para as minhas formigas, que há muito tempo elas andavam com uma fome danada, comendo todas as folhas das minhas árvores. E eu gosto muito das minhas formigas e das minhas árvores. Às vezes vêm outras formigas aqui, mas eu faço feitiço, um que minha mãe me ensinou, e elas vão embora. É só pegar uma galinha ou outro bicho qualquer, morto, e enterrar no formigueiro. Elas não aguentam o mau cheiro da carne estragada, fogem pra bem longe, vão abrir formigueiro noutro lugar. No ano passado eu queria acabar com um formigueiro de umas saúvas muito safadas, não tinha achado nem um cachorrinho sem dono para enterrar. Aí apareceu aquele negrinho, filho dos crentes. Botei ele mesmo no formigueiro. As formigas foram todas embora. Parece que elas foram parar justamente na casa dos crentes, porque eles deram de chorar, e não andavam mais nem pela casa deles, o dia todo ficavam nas ruas, a falar com os outros, acho que perguntando por um meio de acabar com as bichinhas. Vieram até aqui, mas não falaram nas formigas não. Para disfarçar, perguntaram se eu não tinha visto o negrinho. Eu disse que não, ora essa. E disse que não, porque no dia em que vieram cá eu não tinha visto mesmo. Eu só tinha visto ele na véspera, quando botei em baixo da terra. E de lá não saíra. Mas eles queriam saber do menino nada. Queriam era saber de quem eram as formigas terríveis. Eu que não sou bobo, não ia dizer nada. Elas vieram aqui porque quiseram, as minhas formigas são outras, são daquele formigueiro do meio do quintal. Eu conheço todas elas; elas não entram na minha casa, me respeitam. Formiga dos outros entra. Agora eu vou dar de espantar elas também com roupa de cigano. Roupa de cigano também é bom. A gente enterra a roupa do cigano no formigueiro, elas vão embora. Cigano é povo que gosta de andar por tudo quanto é parte. Formiga pega da roupa deles e dá de andar feito louca, não para em lugar nenhum. Vai cada vez mais pra longe de onde saiu. Aliás, elas ficam sempre saindo, que é como os ciganos fazem. O professor Ático Vilas Boas me disse uma vez que a roupa de cigano serve até para a  gente fazer vizinho mau se mudar. É só a gente jogar a roupa do cigano para dentro da casa dele. Eu nunca experimentei com vizinho. Eu tenho uma roupa de cigano comigo. Tirei daquela ciganinha morena que o outro dia, há uns três meses, veio aqui para ler a minha mão. Ela não sabia ler mão nada. Ela pegou a minha mão e começou a dizer que eu era rico, muito rico. Isso todo mundo sabe. Todo mundo anda querendo botar a mão na minha riqueza. A cigana deu de falar bobageiras, foi me irritando. Depois ela viu que eu não queria mesmo dar nada, começou a se esfregar em mim, perguntou se eu não queria levar ela para o meu quarto. Ora, eu sei que ela queria era ver os meus trens, para ver se eu tinha alguma coisa para ser levada. Então eu disse que ela podia entrar, levei ela para o meu quarto. Lá, apertei o pescoço dela; ela não resistiu. Ninguém resiste. Meus dedos são duros e fortes demais da conta. Apertei devagarinho, ela estrebuchou, mas não deu muito trabalho. Eu estava mesmo precisando de um corpo para acabar com um novo formigueiro de umas formigas invasoras. Ela tinha um corpo moreno bem bonito, mas já estava morta, que é que eu podia fazer mais? Além de tudo, eu estava precisando era de acabar com as formigas que não eram minhas. Guardei as roupas para o primeiro formigueiro que aparecesse e levei a cigana morena para os fundos. Enterrei de noite e de manhã já não tinha mais nenhuma formiga no quintal. Só as minhas mesmo. Elas sabem que eu só faço isso por causa delas, não é? Se vêm outras por aqui, onde é que vou poder arranjar comida para todas? Meus braços são muito longos, mas não gosto de esticá-los muito não. É chato. Às vezes, quando elas estão com muita fome mesmo, que começam até a comer as folhas das minhas árvores, estico o braço até o quintal dos outros e arranjo um bicho e mesmo uma planta qualquer para elas. Mas os vizinhos não gostam muito e reclamam demais. Por causa de um vaso de flores ou de um gatinho, como gritam. Um até disse uma vez que ia me matar. Isso foi há muitos anos. Depois ele veio na minha casa para pedir desculpas, porque queria ver se eu arranjava algum dinheiro para ele. Foi só  saber que sou rico e mudou logo. Mandei ele voltar no dia seguinte, mas fiz ele jurar que vinha sem dizer nada a ninguém. Eu disse que tinha gostado dele, que só ele ter vindo para pedir desculpas já mostrava que era um homem de bem, e tal e coisa, mas que eu tinha um medo de que todo mundo acabasse sabendo que eu andava soltando a minha fortuna por aí. Que ele viesse em segredo, eu daria o dinheiro. Nem era emprestado. Emprestar para quê? A riqueza era muita e era para isso que eu desejava ela, para distribuir com os outros. Na certa ele pensou que estava lidando com um doido, que joga dinheiro fora, feito o Munir Calixto, o Domingos Félix de Souza, o Paulo Gomide Leite ou o Bariani Ortêncio. Veio de noite, às escondidas, satisfeito, quase chorando de alegria. Foi com ele que acabei com um formigueiro que não tinha mais tamanho, que estava dando cabo de todas as minha árvores. Ninguém nem não veio procurar por ele aqui. Também,  se viesse, eu ia dizer que não sabia de nada. Não gosto de falar muito com estranhos. É chato. E quanto mais gente fala, mais eles querem saber. Concordam com tudo o que a gente diz, só porque sabem que a gente tem dinheiro. Ser rico e poderoso é assim; não tem ninguém sincero por perto. Só as minhas queridas formigas é que são sinceras, não me importunam. Só comem mesmo das minhas folhas, quando a fome é grande. Por isto é que estou com vontade de comprar uma geladeira. Assim poderei ir armazenando os bichos que arranjar e até os meninos que de vez em quando pulam para o meu quintal e eu pego quando me dizem que não tem família. Sempre tive pena dos meninos sem família, coitados. Guardar fora do gelo é ruim, dá um mau cheiro danado. E as minhas formigas não gostam muito de carne estragada, acho que é porque elas têm nojo dos vermes que se acumulam nela. Eu também não gosto. Nem não como carne de gado por causa disso. A gente nunca sabe se mastigou direito, ela vai para o estômago mal mastigada, acaba apodrecendo lá dentro. Coisa nojenta! Nem não gosto de pensar...

Se eu esticasse o braço abriria aquela janela lá em frente. Uma vez abri, vi um casal se beijando na sala. Ela é muito bonita, está sempre recebendo visitas de rapazes.Os pais não sabem de nada, porque eles entram de noite, quando todo mundo está dormindo. Eu, que não durmo nunca, vejo tudo. Um deles, uma noite, ficou no meu portão esperando ela abrir a janela. Fiquei com pena del, mandei entrar para vigiar da minha janela. Ele gostou tanto, que quase me beijou a mão. Sou assim: gosto de ajudar gente desinteressada. Ele ficou na janela, perto de mim, um tempão. Cheguei a pensar que ele bem me serviria se tivesse formigueiro novo no meu quintal. Mas não tinha, coitado. Ele não pôde ser útil para mim, embora se tivesse oferecido muito para o que precisasse dele. Como a moça estava demorando a abri a janela, estiquei o meu braço todo-poderoso e abri. Tinha outro sujeito lá, com ela. Coitado do rapaz; foi-se embora, triste, nunca mais o vi por aqui. A moça nunca soube quem abrira a janela. Quando ela ia fugir com um tipo gordo e esquisito, eu soube, porque ouvira quando eles combinavam tudo naquela sala. Na noite em que ele parou o carro, quase em frente da minha casa, eu estiquei o braço e virei o carro. Depois, toquei fogo. Todo mundo da rua correu para ver o incêndio. Gostaram muito do espetáculo. Até eu bati palmas e ri à ufa. O sujeito gordo corria de uma parte para outra, a moça chorava e os pais dela gritavam feito loucos. Tinha muita gente na casa deles naquele dia. Parece que ela tinha marcado encontro com todos os rapazes que entravam pela sua janela, pois reconheci uns dez, que todos tinham ido para assistir à sua fuga com o gordo. Foi a maior festa a que a rua assistiu. Pena é que não tenham sabido que fora eu o autor da brincadeira. Não gosto de falar dessas coisas com desconhecidos; eles começam a fazer perguntas, a rir, trocam olhares de zombaria. Conheço bem essa gente. Meus olhos enxergam longe e quando quero vejo através das paredes. Quem vai acreditar nisto? Ninguém. Mas eu vejo. É só querer, que tenho que me concentrar um pouco. Quando precisei de saber o que estavam tramando contra mim, no dia em que desapareceu um garotinho louro, muito sujo, que andava por aí, eu me concentrei e ouvi tudo o que faziam e cochichavam contra mim, na sala ao lado do meu quarto. Estavam comentando que eu era louco, que eu não sabia o que fazia e bem que poderia ter matado o garoto. Outros diziam que eu era inofensivo, mas que devia ser examinado pelo doutor Samir Helou, que é muito mais louco do que eu, porque tem mania de automóveis e de velocidade. Eu nem não tenho carro nem gosto de correr. Gosto é de ficar aqui em casa, parado, pensando nas minhas queridas formigas. O garotinho tinha entrado porque não havia nenhum formigueiro invasor no meu quintal. Aposto que o doutor Samir nem tem formigueiro dele mesmo. Diabo, nem sempre posso ter formigueiro para mudar do meu terreno, e as minhas queridas formigas andavam bem alimentadas com um galo índio que eu tinha arranjado para elas. Se eu já tivesse a geladeira, vá lá, mas ficar com um menino a se estragar dentro de casa, ah, isto não! Então mandei que ele desse o fora. Ele correu pela porta da frente mesmo e nunca mais voltou. Que é que eu podia saber dele? Foi isso o que eu disse a eles, acrescentando que ouvira e vira o que eles andaram falando e fazendo na minha sala. Eles ficaram tão impressionados que deram o fora sem nem ao menos aceitar o cafezinho que eu lhes oferecera. Felizmente, porque eu não tinha café em casa. Aliás, eu nunca tive, porque não gosto de café; só tomo chá das folhas das minhas laranjeiras. Não é muito bom a gente andar por aí, mostrando que pode fazer certas coisas,  porque aguça muito a curiosidade dos outros. Depois do que disse, foi o diabo para mim. A novidade correu asinha. deu de vir gente em minha casa todo dia, que quase fiquei doido. Todos querendo que eu adivinhasse futuro, que dissesse o que outras pessoas andavam fazendo ou pensando, em outros lugares. Quando eu simpatizava com as pessoas, fazia o que me pediam. Nunca erro quando me concentro. Quando eu não simpatizava, mandava voltar de noite, para usar nas formigas. Disse para o padeiro que a mulher dele tinha outro homem e ele viu que tinha mesmo. Eu adivinho de verdade. Agora tem vindo menos gente aqui, tem dia até que nem não vem ninguém. Eu soube que foi o Padre Pereira que andou proibindo e ameaçando todo mundo, só porque eu tinha curado um menino de uma doença que os médicos não conheciam e ainda fiz uma paralítica andar. Que é que tem fazer isso? Nunca nem não disse a ninguém que era santo, isso não. Nem não gosto de santos, detesto todos eles. São feitos de barro, não prestam para espantar nem para alimentar formigas. Só gosto de quem serve para essas coisas, que um dia pode ser útil para mim. Mas faço o que quero fazer e ninguém pode me impedir. Aquele padre não devia falar certas coisas de mim, que ele não me conhece. Fiquei não gostando dele. Se ele vier aqui, eu mostro para o que ele serve. Ele vai ver quem eu sou e do que eu sou capaz. Talvez até eu use ele num formigueiro novo. Pena é que o meu quintal ande tão cheio de ossos. As formigas nem não querem mais vir para aqui. É capaz até de não ter mais nenhuma, fora as minhas mesmo, porque o pedacinho de terra delas é sagrado. Lá eu não enterro nada. Ponho a carne por fora, com cascas de laranja, que assim elas gostam mais, depois que eu as habituei a gostar de carne. Mas tem de ser carne de bicho pequeno, que gente não serve.: cheira muito mal. Gente só serve para pôr embaixo da terra, para espantar formigas invasoras. Uma ou outra, quando se cuida bem, pode ser. A maioria não. Gente espanta as formigas e ainda aduba as minhas terras. Ah, ia me esquecendo disso! Ainda aduba as minhas terras! E quem gosta disso são as minhas queridas árvores, as minhas queridas árvores!

Conto de Anatole Ramos retirado do livro Antologia do Conto Goiano I - dos anos dez aos sessenta. Organizadoras: Darcy França Denófrio e Vera Maria Tietzmann Silva, CEGRAF/UFG, 2ª Edição, 1993.

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