segunda-feira, 31 de agosto de 2020

A história de Sadkó

Há muito, muito tempo, na bela cidade de Nóvgorod, à beira do lago Ilmen, viviam muitos comerciantes e mercadores, que levavam vida opulenta, de comemorações, festins e banquetes, nos quais se regalavam e se entretinham com música, cantos e danças, em contínua ostentação de riqueza e prosperidade.

Naquela época, vivia na mesma cidade um jovem de nome Sadkó, pobre e sozinho no mundo, cuja única riqueza era o seu talento musical e sua gusli, harpa de vinte e três cordas, das quais sabia tirar as mais belas e encantadoras melodias. Por isso, Sadkó era muito requisitado para as festas dos ricaços, que gostavam de ouvi-lo e sempre o recompensavam com algumas delícias das suas mesas e algumas moedas dos seus bolsos com o que ele ia levando a vida despreocupado.

Mas chegou um tempo em que os convites começaram a rarear, e um dia cessaram de todo. Sadkó esperou uma semana inteira, mas os inconstantes senhores pareciam tê-lo esquecido, e o pobre moço, sentindo-se abandonado pela sorte, foi curtir sua tristeza à beira do lago plácido, onde se pôs a tocar a sua gusli, para tentar esquecer as mágoas.

Porém, coisa estranha: assim que ele começou a dedilhar seu instrumento, o lago, sempre tão sereno, começou a ficar agitado. As águas se encrespavam em ondas cada vez mais violentas, como se um vento fortíssimo as tangesse, embora o ar estivesse calmo. Sadkó parou de tocar e voltou para a sua casinha, na esperança de receber novo convite para se apresentar em algum banquete ou casamento.

Mas outra semana transcorreu sem nenhum convite, e Sadkó, abatido, retornou à margem do lago, tentando, apesar do medo, abafar com música e tristeza. E de novo, assim que vibraram as cordas da sua gusli, o lago começou a se agitar como se estivesse fervendo, em ondas ainda maiores do que na primeira vez.

Assustado, Sadkó voltou para a cidade, pensando que, quem sabe agora, os ricos mercadores se lembrariam dele. Mas nada disse aconteceu, e algum tempo depois, desanimado, Sadkó foi outra vez para a beira do lago, tentado também pela curiosidade, não obstante o temor que sentia. E desta vez, assim que ele começou a tanger a sua harpa, aconteceu o inesperado: a superfície do lago se rompeu, e, diante dos olhos atônitos do moço, emergiu majestoso o Rei das Águas, que se dirigiu ao rapaz com palavras benevolentes:

- Sadkó - disse a imponente figura -, não tenhas medo. Eu ouvi a tua música, e ela me agradou, tão bela e suave, e desejo recompensar-te pelo prazer que me deste. Volta agora à cidade de Nóvgorod e espera que os mercadores te convidem de novo. Isso ocorrerá logo, e quando te chamarem, tu irás, e lhes dirás que sabes que neste lago existem peixes com escamas e nadadeiras de ouro. E quando eles duvidarem das tuas palavras, tu lhes proporás uma aposta: dirás que apostas a tua própria cabeça, se não conseguires provar o que dizes. Mas se o conseguires, eles terão de te dar três armazéns dos mais ricos tecidos do mercado, em troca de cada peixe daqueles que tiveres pescado.

Sadkó arregalou os olhos, incrédulo e assustado. Mas o Rei das Águas continuou:

- Nada receies, Sadkó. Eles aceitarão a aposta, pois não acreditarão nas tuas palavras, e tu a ganharás, pois quando vieres ao lago com a tua rede de seda, que tu próprio deverás tecer, eu colocarei nela três belos peixes de escamas e nadadeiras de ouro. Adeus, Sadkó.

E o majestoso Rei das Águas desapareceu nas profundezas do lago e Sadkó voltou à cidade, cheio de esperança. E tudo aconteceu como o Rei das Águas lhe havia prometido. No dia seguinte, Sadkó foi convidado para tocar num banquete, e lá, após algumas taças de vinho, ele se vangloriou perante os mercadores de que seria capaz de pescar no lago Ilmen peixes com escamas e nadadeiras de ouro. Os ricos senhores zombaram dele, mas quando ele insistiu, e apostou sua própria cabeça contra três armazéns dos mais preciosos tecidos da cidade em troca de cada um dos peixes pescados, eles aceitaram a aposta. E, no dia seguinte, acompanharam Sadkó, que durante a noite tecera a sua rede de seda, até as margens do lago Ilmen.

Sadkó lançou a rede, com o coração aos pulos, e logo a puxou, sentindo-a pesada - e eis que dentro dela se debatiam, faiscando, três belos peixes de escamas e nadadeiras de ouro!

Sadkó ganhara a aposta e era agora um homem rico - na verdade, o homem mais rico de Nóvgorod, pois era dono de nove armazéns dos mais belos e preciosos tecidos de todo o principado. E Sadkó começou a levar uma vida de rei. Casou-se com uma linda donzela e foi morar num palácio deslumbrante, teve filhos e filhas. E tornou-se dono e proprietário de uma frota de trinta navios mercantes, que singravam os verdes mares, trazendo as mais finas mercadorias - joias, tapetes, peles, tecidos, perfumes - de todas as partes do mundo.

Mas, à medida que foi ficando mais rico, Sadkó foi ficando também cada vez mais cheio de si, mais cheio de soberba e orgulho, e mais insensível, e até se divertia em arruinar os outros mercadores e comerciantes com a sua concorrência insustentável.

E o tempo foi passando. Até que, certa vez, quando Sadkó voltava de uma das suas viagens para terras distantes, a bordo do navio-capitânia da sua bela frota, viu de repente o mar, até então sereno, encapelar-se furiosamente debaixo de uma tempestade de violência nunca vista. Os navios dançavam como cascas de nozes sobre as ondas revoltas, e a turbulência era tal que parecia querer afundar todos os trinta navios; o perigo era real e iminente.

E súbito Sadkó se deu conta de que nunca agradecera ao Rei das Águas o favor que este lhe prestara. Disse então aos seus marinheiros que achava que o Rei das Águas estava zangado, e que exigia o pagamento de um tributo. E mandou atirar ao mar um grande barril cheio de prata. Mas o mar não se acalmou, e Sadkó mandou atirar nas ondas um grande tonel cheio de ouro. Porém, o mar continuava a se agitar, furioso, e Sadkó pressentiu que o Rei das Águas exigia um sacrifício humano.

Então Sadkó mandou que seus homens tirassem a sorte, e a sorte caiu para ele mesmo. Por três vezes eles jogaram a sorte, e nas três vezes caiu para Sadkó o sacrifício a ser feito. Era o seu destino inexorável, e Sadkó então deixou ordens para distribuir os seus bens em quatro partes: uma parte para as igrejas, outra parte para os pobres, a terceira para a sua esposa e filhos, e a quarta para os seus companheiros de viagem. E, levando apenas as ricas roupas no seu corpo e a sua inseparável harpa gusli, Sadkó se despediu dos companheiros e se atirou às ondas revoltas do mar encapelado, pensando que ia morrer.

E perdeu os sentidos. Mas quando voltou a si, viu-se no fundo do mar, diante dos portões abertos do palácio do Rei das Águas, que veio ao seu encontro para recebê-lo. E a majestosa figura lhe disse que, depois de tanto tempo, ficara com saudade dos maviosos sons da sua harpa gusli e queria que Sadkó tocasse para ele - por isso o trouxera para o seu palácio.

Sadkó então tocou para o Rei das Águas, e o Rei das Águas, entusiasmado, começou a dançar. E dançava tão freneticamente que na superfície de todos os mares as águas se agitavam e desencadeavam ondas e vagalhões enormes. Tempestades violentas afundavam os navios nos sete mares e causavam grandes desgraças e catástrofes no mundo inteiro. E Sadkó não podia parar de tocar, e o Rei das Águas dançava cada vez mais e mais.

E então, após três dias e três noites nesse terror, de repente Sadkó sentiu a mão de um ancião de barbas grisalhas tocar no seu ombro, e este sussurrou ao seu ouvido:

- Para de tocar, Sadkó, quebra as cordas do teu instrumento e diz ao Rei das Águas que a gusli não tem conserto. Só assim ele para de dançar, e cessarão os naufrágios e as desgraças que estão assolando os mares por causa desta dança selvagem.

Sadkó se deu conta, subitamente, do que estava acontecendo, viu os navios afundados e as pessoas mortas, as viúvas e os órfãos, e, obedecendo ao conselho do ancião, fez um esforço sobre-humano e parou de tocar, e rompeu as cordas da sua preciosa harpa. E a dança enlouquecida do Rei das Águas teve fim, e a paz e a calma voltaram aos sete mares.

O Rei das Águas, satisfeito e apaziguado, ainda convidou Sadkó a ficar na sua corte, e até lhe ofereceu a mão de uma das suas filhas em casamento. Mas Sadkó disse que tinha esposa e filhos em terra, e então, depois de um festivo banquete de despedida, ele caiu num sono profundo.

Quando Sadkó despertou, no dia seguinte, viu-se deitado à beira do lago Ilmen, perto de Nóvgorod. E, com grande surpresa, viu seus trinta navios chegando inteiros a terra firme.

Os marinheiros, ao verem-no ali, incólume, se espantaram muito, pois pensavam que ele tivesse morrido afogado quando se atirara ao mar revolto durante aquela borrasca...

Foi tudo como uma magia - mas aconteceu mesmo. E Sadkó voltou ao seu palácio, onde ofereceu uma grande festa de retorno, e dali em diante deixou a soberba e o orgulho e viveu uma vida moderada e caridosa, no seio da sua família, benquisto e respeitado por toda a cidade de Nóvgorod.

Texto retirado do livro Sete Contos Russos, recontados por Tatiana Belinky, Companhia das Letrinhas, 3ª Edição, 1997.

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