quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Como uma rainha de Micenas

Tendo falecido a esposa muito amada, desejou que partisse para a última viagem com o fausto de uma rainha. Rodeou-lhe o pescoço de gargantilhas e colares que desciam sobre o peito ocultando as vestes. Encheu-lhe de anéis os dedos que não mais dobrariam falanges. E brincos, pulseiras, enfeites cobriram aquele corpo agora mais resplandecente do que em vida. Depois, para que nada lhe faltasse na longa travessia, depositou ao seu redor jarros, pratos, taças, talheres do mais puro ouro, sem esquecer pentes e um espelho para a sua vaidade.

A ideia de aparta-se da esposa para sempre era-lhe, porém, insuportável. Querendo-a pelo menos ao alcance da sua saudade, mandou construir no canto mais frondoso do jardim uma capela, em cuja cripta de pórfiro abrigou o esquife, separado dele apenas por um portãozinho de ferro batido.

E disposto a enfrentar o luto interminável, começou o aprendizado de uma nova vida em que a voz amada não ecoaria.

Talvez justamente devido a esse silêncio, cedo surpreendeu-se com a rapidez com que aprendia. A vida parecia-lhe de fato mais nova a cada dia. Nem bem um ano tinha-se esgotado, quando lhe ocorreu que, como ele tanto havia avançado, também a esposa teria a essa altura cumprido parte de sua viagem. Pelo que já não lhe seriam necessárias algumas das coisas que consigo levara para uso simbólico. Em ranger de ferros, entrou na cripta e selecionou uns poucos pratos, um frasco, sem dúvida devidamente usados no além.

Desse modo, foi sucessivamente recolhendo os objetos de ouro que, gastos pela defunta e já sem serventia para ela, afiguravam-se como muito proveitosos para si. Um garfo hoje, uma taça amanhã, um pente agora, um jarro depois, acabou enfim chegando às joias pessoais.

Na semiescuridão da cripta, pulseiras e adereços brilhavam frouxamente, folgados os anéis nos dedos descarnados, pousada ainda a tiara sobre a fronte. Joias demais, pensou ele contrito. Sem dúvida, nada condizentes com uma mulher que, onde quer que se encontrasse, estaria entrando na velhice. Assim pensando, retirou as mais pesadas. Voltando tempos depois para buscar as menos comprometedoras. E por último as insignificantes. Até chegar ao despojamento total.

No esquife, agora, restava apenas o espelho de ouro. Mas de que serve um espelho para uma mulher simples e velha, já despida de vaidades? perguntou-se.

Tendo pronta a resposta, pegou o espelho pelo cabo, e saiu sem fechar o portão atrás de si.

Conto de Marina Colasanti retirado do livro Contos de Amor Rasgados, Editora Rocco, 1986.

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