quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Parque de Diversões

Alto, louro, olhar reto sobre a cabeça da multidão, ele estava ali, ao lado da motocicleta homicida, enquanto o alto-falante anunciava numa voz dramática: CAPITÃO TONY, O MAIOR ACRÓBATA DO SÉCULO! (e a voz dramática acentuava propositalmente a proparoxítona para acentuar o valor da acrobacia). Nós, pobres mortais solidários no medo de morrer, acotovelávamo-nos para melhor vê-lo, camisa aberta ao frio, culote e botas fixando pernas de músculos de pedra, que brincavam sobre a máquina, erguendo-a de súbito sobre as rodas traseiras, como um cavalo mecânico que empinasse. O motor tonitroava, falhava, tonitroava de novo, e o Capitão Tony imperturbável. Aquilo era apenas uma amostra. O resto se passaria dentro do pavilhão, se tivéssemos a coragem para entrar e o sangue-frio para não cerrar os olhos.

Entramos. O Capitão Tony tinha a certeza do próprio fascínio. Olhava-nos do alto do seu desprezo pela morte. E nós tremíamos. O espetáculo tardava. A tensão nervosa dos espectadores atingia o grau exato de tangibilidade para o grito. Soberbo, dentro da arena de madeira em que a  máquina o esperava para o suicídio, o Capitão Tony passeava, calmo, fumando aquilo que nós todos supúnhamos ser o último cigarro de sua vida. Ele nos ignorava, simplesmente nos ignorava, e só o olhar duro, esverdeado e fixo, de quando em quando fuzilava os nossos olhos, que aplaudiam tímidos. Ele nos responsabilizava pela sua morte, era isso. Mas queria que aplaudíssemos. Se perdesse, porventura, a vida nesse ato, quanto teria rendido a função do globo da morte com as moedas que a excitação do público atiraria sobre um morto performático?... Os aplausos, certamente, se ouviriam até nos confins do mundo, onde, nesse mesmo instante, algum matador estava sendo atravessado pelos punhais vingativos de um touro agonizante, enquanto o povo, de polegares abaixados, exigia: OLÉ!

A música de fora do pavilhão havia parado. A voz dramática se calara. A essa altura, a bilheteria devia estar fechada e a morte do homem não valia mais um níquel. O cigarro sofreu a derradeira tragada e foi pisoteado como cabeça de cobra que perdera o bote. O Capitão subiu na motocicleta, depois dardejou um último olhar acusativo sobre nós, que, debruçados sobre a amurada protegida esperávamos excitadamente tensos. Alguém teve a ousadia de comentar: "É simples. Apenas uma questão de força da gravidade". Mas o motor da máquina já abalava os alicerces do pavilhão de madeira. Gritos abafados, ninguém queria dar parte de fraco. Simplesmente uma questão de gravidade, mas o que acontecia era que o Capitão Tony começava a brincar com as nossas mortes. A motocicleta desenfreava. Arrancava e subia vertiginosa, o home feito uma peça de engrenagem colada sobre o selim, robô incorporado à máquina que traçava sulcos invisíveis sobre as paredes concêntricas de madeira. Na vertigem, só o olhar esverdeado continuava fixo, acusando e agredindo. A morte descrevia círculos sobre ele. Mas o olhar continuava reto. E nós morríamos. Nós é que morríamos a cada volta da motocicleta, soluçando um perdão em covardia. E perguntando se desse ritmo se fizessem os Ulisses*, se dessa pobre carne louca se gerassem os Siegfrieds*, se dessa cavalgada no vazio se nutriram os Rolands* e os Cids*. Os campeões da imortalidade mítica: não o Capitão Tony, sem outras aventuras senão aquela, realíssima, ao redor da própria morte, operário de um circo sem alegria, herói espúrio de uma civilização sem epopeias.

* Ulisses, Siegfried, Roland, Cid - Heróis famosos de poemas épicos, respectivamente, das literaturas grega, alemã, francesa e espanhola.


Crônica de Ilka Brunhilde Laurito retirada do livro Parque de Diversões, Atual Editora, 1995. Coleção Transas & Tramas.

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