sexta-feira, 14 de agosto de 2020

O Goleiro do Time

Quando Maria José mudou de casa, de bairro e de cidade, achou que seria a coisa mais triste do mundo. Deixou para trás um punhado de colegas queridos, uma escola desbotada, esburacada, suja mas gostosa e uma casa com quintal, árvores e espaço. Deixou tudo isso em troca de outra casa, apertadinha e pequena, de outro bairro e de outra cidade, maior que a sua.
Pouco tempo depois, Mari José ganhou duas coisas na nova cidade. Duas coisas deliciosas, na opinião dela: um apelido e uma posição no time de futebol dos meninos do bairro. O apelido era Zeca, que ela adorou, pois não suportava seu nome. A posição no time era a de goleiro, que ela também adorou, porque assim não precisava ficar correndo atrás da bola nem dos meninos. A bola, pelo contrário, toda hora viria em sua direção.
Adorava ouvir, na voz do Marcel, filho da Dona Marisa da vendinha, a escalação do time: Zeca no gol; Neneca, Marcel, Benê e Chaponildo na defesa; Paulinho, Paulão da Dona Cida e Betinho no meio do campo; Eldorado, Jorginho e Silas no ataque.
Adorava também exibir para todos a fotografia do timo, de uniforme novo, amarelo como o da Seleção. E ela ali, a terceira da fila de cima, dos que estavam de pé, entre o Betinho e o Neneca. O cabelo despenteado, preso atrás num rabo-de-cavalo feito às pressas, o rosto vermelho de sol e a pose de maioral do mundo.
E não era para menos. No gol, ela não deixava passar nada, muito menos a bola. Estava sempre no lugar em que a bola queria passar. A torcida, carinhosa, gritando:
- Pega essa, Zeca!
- Boa, Zeca!
- Não deixa não, Zeca!
Zeca não deixava mesmo. Uma vez, contra um time de quinta categoria, do mesmo bairro, ela pegou até pênalti. Quando terminou o jogo, um punhado de gente veio abraçá-la. Veio até um menino atrevido que em vez do abraço sincero quis fazer gracinha para o lado dela, querendo aproveitar das coisas de menina. Ela empurrou com força o atrevido.
- Vai fazer isso na sua mãe.
Coitada da mãe do menino. Mas mãe de goleiro também é coitada. É só deixar a  bola entrar...
O tempo foi passando depressa, mais depressa que a corrida da bola de pé em pé. O time da Zeca continuava firme, ganhando jogos, conquistando simpatias e aplausos por todos os lugares onde se apresentava. Acabou ficando conhecido como o time que tinha uma menina no gol. E a menina acumulando alegrias e fechando o gol.
Um dia, muitas vitórias depois, num jogo difícil, o juiz marcou pênalti contra o time da Zeca. Ela no gol, cara a cara com a bola e o jogador adversário. Só os dois e a bola. Um tinha a missão de marcar o gol: perder pênalti é imperdoável. O outro, quer dizer, a outra tinha a difícil tarefa de defender o pênalti. Quando o juiz autorizou o chute, o atacante deu uns dez passos para trás, tomou impulso, uma incrível velocidade e chutou com toda a força do mundo. A bola fez uns ssssss no ar e foi direto ao gol... só que no caminho encontrou o goleiro e o peito do goleiro. Pois é, a bola bateu com tanta força no peito do goleiro que o jogou ao chão.
Correram todos do time para socorrer a Zeca. Ela parecia meio desacordada. O Paulão da Dona Cida sugeriu:
- Faz uma massagem nela, gente!
- Deixa que eu faço! -pediu o Benê.
E foi logo erguendo a camisa da Zeca. Mas... debaixo da camisa número um, na altura do peito magro, dois seios salientes e bonitos apareceram diante dos olhos dos jogadores.
- Ela é uma moça! - exclamaram todos.
O Benê abaixou depressa a camisa da Zeca e ficaram ali, sem saber o que fazer, esperando que ela se recuperasse. O jogo acabou no zero a zero, mas na cabeça dos meninos ficaram dezenas de dúvidas e perguntas.
Depois desse jogo, ninguém mais apareceu para treinar nem para jogar. Por isso marcaram uma reunião para discutir o caso da Zeca. Poderia uma moça ser goleiro de um time de moleques? Essa era a grande dúvida. Fizeram até votação para decidir.
Duas semanas depois, um grupo de meninos do time foi até a casa da Zeca, levando um pacote para ela. Quando ela chegou, abriu o pacote e encontrou uma camisa de goleiro, com o número um atrás e um grosso acolchoado na frente. Tinha também um bilhete:
                                    PARA O GOLEIRO MAIS IMPORTANTE    
               DO MUNDO. SERÁ O NOSSO GOLEIRO
             ATÉ O DIA QUE QUISER. 
Zeca adorou. Pegou o blusão e foi para frente do espelho do guarda-roupa. Achando-se o goleiro mais importante do mundo, decidiu que seria goleiro do time de meninos até o fim do mundo.

Conto de Edson Gabriel Garcia retirado do livro Treze Contos, Atual Editora, 14ª Edição, 1996. Coleção Conte Outra Vez.

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