terça-feira, 18 de agosto de 2020

O moço que não tinha nome

Era um moço que não tinha nome. Nem nunca tinha tido. Um moço que, não tendo nome, também não tinha rosto.

- Psiu! - chamavam-no as pessoas.

E ele, acostumado desde pequeno, atendia. Porém, quando se aproximava, quem o tinha chamado via em lugar do rosto dele seu próprio rosto refletido, como num espelho. E enchia-se de espanto.

Assim, sem olhos ou sorriso que fossem seus, ninguém conseguia escolher um nome que a ele se ajustasse, tornando-o único, impossível de ser confundido com qualquer outro.

Era muita ausência para ele carregar. E cedo decidiu que, tão logo estivesse crescido, dono enfim da sua vida, partiria à procura do rosto que lhe pertencia e que, certamente, havia de estar perdido em alguma parte do mundo.

Chegada a idade, juntou suas coisas, saiu da aldeia e começou a andar.

Andou e andou. Nos castelos que lhe davam hospedagem, examinava ansioso os quadros e as tapeçarias, aproximava-se atento das esculturas, mesmo as mais miúdas que enfeitavam às vezes uma sopeira de prata ou o cabo de um talher. Quem sabe, entre tantos cavalheiros retratados, entre tantos homens pintados e bordados, não estaria algum cujo rosto, por engano ou descuido, fosse o seu? Até sobre os bastidores das damas se debruçava, na esperança de que o ponto que vinham de fazer estivesse arrematando um nariz, o traço de uma sobrancelha que a ele caberia.

Desse modo viajava, fazendo seu rumo como quem atravessa um rio pulando de pedra em pedra. Passava de uma cidade a outra, de uma casa a outra sempre procurando, nas famílias que se reuniam ao redor das lareiras, nas multidões das feiras, e até nos broches de esmalte que enfeitavam os decotes, nos camafeus e nas pedras entalhadas dos anéis.

Sem nunca, naqueles anos todos, afastar seu caminho da procura.

E nesse caminho, um dia, encontrou a moça que voltava da fonte.

Ia tão atenta para não entornar o cântaro equilibrado no alto da cabeça, que nem o viu chegar pela trilha. E quando ele se aproximou, oferecendo-se para carregar o cântaro, foi com surpresa agradecida que encarou o rosto vazio. Mais do que com espanto.

Andando devagar, para prolongar a caminhada, o moço acompanhou-a até em casa. Mas na manhã seguinte, bem cedo, foi esperá-la na fonte. E quando ela chegou, novamente se ofereceu para carregar o cântaro.

Assim aconteceu também no outro dia, e nos que vieram depois. Agora já se demoravam sentados à beira da nascente, conversando sem pressa, enquanto o tempo escorria junto com o regato. E a  cada novo encontro, ela olhava os próprios olhos refletidos nele e os via ficarem mais brilhantes, olhava sua boca e só lhe via sorrisos.

Pouco a pouco, a ausência do rosto foi perdendo a importância. O moço tinha tantas coisas para contar, tanta doçura na voz, que ela passou a achá-lo mais e mais bonito. Era como se nada lhe faltasse. Nem mesmo o nome. Pois não precisava chamá-lo, já que sempre o encontrava à sua espera, não importava a hora em que chegasse.

Porém, na fonte, começavam a boiar as primeiras folhas mortas. O regato, que tinha levado o verão lentamente levou o outono. E afinal o inverno chegou, engolindo as tardes em seu ventre frio. Breve a fonte gelaria. E a moça percebeu que, sem água para buscar, não teria mais desculpa para sair de casa.

Envolta no xale, ainda foi à fonte durante alguns dias. Mas naquela manhã em que as beiradas do regato começavam a fazer-se de cristal, o medo de perder o moço atravessou-a como um vento. Quis retê-lo, chamá-lo. Em ânsia estendeu-lhe as mãos. E quase sem sentir, num sopro, Amado! foi o nome que lhe deu.

Ondejou seu reflexo no rosto do moço. Lentamente, seus olhos espelhados perderam a nitidez, desfez-se o contorno dos lábios. Naquele vazio, só restava uma névoa, trazidos de longe pelo chamado de um nome, começaram a aflorar duas sobrancelhas espessas, depois a aresta de um nariz, a sólida linha de um queixo, a ampla testa. Traços cada vez mais nítidos, desenhando o rosto enfim encontrado.

Pingentes de gelo formavam-se nas folhas. Adensavam-se as nuvens. Mas ele, o homem que agora tinha rosto e nome, sorria como um sol.

Conto de Marina Colasanti retirado do livro Longe Como O Meu Querer, Editora Ática, Série Sinal Aberto, 1997.

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