quarta-feira, 19 de agosto de 2020

As Formigas (A Conversa)

Foi a coisa mais bacana a primeira vez que as formigas conversaram com ele. Foi a que escapuliu da procissão que conversou: ele estava olhando para ver aonde que ela ia, e aí ela falou para ele não contar pro padre que ela tinha escapulido - o padre ele já tinha visto que era o formigão da frente, o maior de todos, andando posudo.

Isso aconteceu numa manhã de muita chuva em que ele ficara no quentinho das cobertas com preguiça de se levantar, virado para o outro canto, observando as formigas descendo em fila na parede. Tinha um rachado ali perto por causa da chuva, era de lá que elas saíam, a casa delas.

Toda manhã aquela chuva sem parar, pingando na lata velha lá fora no jardim, barulhinho gostoso que ele ficava ouvindo, enrolado no cobertor, olhando as formigas e conversando com elas, o quarto meio escuro, tudo escuro de chuva.

A conversa ficava interessante quando ele lembrava de perguntar uma porção de coisas e elas também perguntavam pra ele. (Conversavam baixinho para os outros não escutarem.) Mas às vezes não lembrava nada para conversarem, e ficava chato, ele acabava dormindo - formiga tinha hora que era feito gente mesmo.

O bom é que ninguém precisava gritar nem também mentir, como as pessoas estavam sempre fazendo. E também poder ficar olhando assim, sem falar nada, só olhando, sem precisar falar. Gente, se tinha outra perto, logo uma tinha que falar, ninguém aguentava ficar calado: vaca amarela, pulou a janela, cagou na tigela, mexeu, mexeu, quem falar primeiro come a bosta dela: logo uma falava ou ficava fazendo hum, hum, e ria - ninguém aguentava. Ficar só assim olhando, tão bom, que ele nem sabia direito se estava acordado mesmo ou sonhando, as formigas uma atrás da outra, descendo, a fila certinha.

Uma tarde entrou no quarto e viu a mancha de cimento novo na parede, brutal, incompreensível.

- Pra quê que o senhor fez isso? Pra quê que o senhor fez assim com minhas formigas?

O pai não entendia, e o menino chorando, chorando. Então o pai deu no espalho. Mas a mãe pediu para ele ter paciência: nesse tempo de chuva as crianças ficam muito excitadas porque não podem sair à rua e não têm onde brincar.

De manhã o menino acordava e olhava para a mancha de cimento na parede. Ficava olhando, até que sentia um bolo na garganta e cobria a cabeça com o cobertor.

Conto de Luiz Vilela retirado do livro Contos da Infância e da Adolescência, Série Rosa dos Ventos, 1996.

Nenhum comentário:

Postar um comentário