Artrítica, a visão cada vez mais encurtando, Arminda foi deixando de subir as ladeiras da cidadezinha para diariamente assistir à missa das 18 horas.
Inconformada, todas as tardes depois que o sol punha em chamas o horizonte mais distante, fazendo reverberar o canavial por sobre os morros e o sino agitava-se conclamando os fiéis, com dificuldade ela descia os degraus de sua casa e encaminhava-se à esquina de onde avistava por entre o casario a torre da igreja afunilando-se para o céu.
Retirava o terço do bolso da saia, os olhos fixos na torre, a cruz no alto iluminada, atraindo seus olhos amiudados por trás dos óculos de lentes espessas.
Começava a debulhar as Ave Marias e os Padre Nossos, as mãos trêmulas perdendo-se no desfiar das contas, fazendo-a reiniciar as orações para em seguida balbuciar algumas jaculatórias acompanhadas de vasto peditório.
Os operários da usina que largavam do trabalho, no apito das 6 horas, no início passavam por ela surpreendidos, recebendo um leve curvar de cabeça quando a cumprimentavam.
Porém, logo foram-se acostumando àquela cena no crepúsculo da cidade e até deixaram de saudá-la a fim de não interromper o seu recolhimento. Um ou outro indagava em comentários entre si, se a Dona Arminda não estava mergulhando num labirinto que lhe tirava a lucidez.
Quantos anos teria? Oitenta? Oitenta e cinco? Os cabelos brancos presos a um coque enroscado na nuca, os sapatos amarrados aos tornozelos, a saia e o blusão compridos, largos, envolvendo o seu corpo magro, não a faziam mais velha?
- Mãe diz que era pequena e ela já era moça feita - dizia Olegário, o sapateiro da esquina, confirmando que sua mãe já beirava os setenta anos.
Sabia-se que, quando enviuvara, se desfizera da casa do engenho Pasto Verde, nos arredores da cidade, para morar naquela rua com um filho - proprietário de uma loja de miudezas. Tinha-se conhecimento também de que possuía outros 6 filhos, que cedo haviam partido para a capital.
Certa vez, desaparecera alguns dias, sequer era vista à janela nas manhãs olhando a passagem dos estudantes em direção aos colégios. Estava doente. A esquina desprovida de sua presença, o sino parecendo tanger inutilmente causaram um impacto nos passantes e nos operários que se detinham à porta de Olegário em busca de notícias.
O sapateiro sentindo-se importante, conhecedor dos achaques de Dona Arminda informava cheio de detalhes:
- Já fui hoje à casa dela bem cedinho. Está melhorzinha. Há dois dias não tem febre. O médico diz que logo volta a andar.
- O que ela tem?
Olegário, o olhar alcançando a massa verde do canavial espalhado pelos morros titubeava:
- É... Bem... Coisas da idade.
Não queria demonstrar que pouco recolhia das informações fornecidas pela mocinha que trabalhava na casa de Dona Arminda.
Uma tarde, quando o retinir do sino desceu pelas ladeiras, Arminda ressurgiu no portão, abatida, as bochechas sugadas, os passos mais lentos que o costumeiro e galgou o trecho que a separava da esquina. Com naturalidade retirou o terço do bolso, fez o Sinal da Cruz e voltou a sussurrar as suas preces.
Naquele dia foi interrompida, não apenas pelos lapsos de seus dedos artríticos, mas também pelos cumprimentos dos operários e transeuntes que a saudavam satisfeitos. O seu retorno à esquina parecia devolver o equilíbrio à paisagem dos fins de tarde da rua.
- A saúde, está boa, Dona Arminda? Olegário aproximou-se.
Sem desviar os olhos da cruz, no alto da torre, ela respirou arfante.
- Menino, soube de sua preocupação com a minha saúde. Hoje rezo esse terço em sua intenção.
Olegário sorriu afastando-se e entrou na sapataria com uma estranha leveza ampliando-se no seu peito.
- Um terço em minha intenção - Pensava. E se valesse para ganhar na loto?
Alongou o olhar até a casa lotérica no outro lado da rua, fazendo das mãos figas e batendo três vezes no salto de madeira de um tamanco.
Arminda, sem nada perceber da cena, continuou murmurando suas preces, a saia de leve ondulando, mais parecendo um brinquedo da brisa da noitinha.
Numa madrugada, uma chuva desabou por sobre toda a cidade. Os ventos rodopiaram rudes arrancando os telhados de algumas casas, do Grupo Escolar Municipal e de algumas lojas no pátio do comércio.
Arminda acordou ouvindo o escorrer de duas ou três goteiras na sala contígua ao seu quarto, marcando o ritmo do tempo noite afora, mas logo adormeceu.
Pela manhã escutou a voz meio exaltada do filho comentando com a esposa:
- O estrago foi grande. Fiz uma ronda por aí.
A voz da nora chegou-lhe temerosa:
- Credo! Nunca ouvi falar numa calamidade dessa por aqui.
Ela sentou-se na cama expectante, as mãos ansiosas procurando o terço debaixo do travesseiro. Mas o filho dando continuidade ao comentário tranquilizou a sua aflição:
- Ainda bem que a nossa loja não sofreu danos.
Durante todo o dia uma chuva intermitente, fininha descia do alto sem nenhum vestígio de azul no céu, um mormaço asfixiando os moradores. À tardinha veio uma estiada, embora nuvens se arrastassem densas para o oeste.
Indiferente a isso, Arminda desceu os degraus de sua casa e encaminhou-se para a esquina, sentindo ser cada vez mais difícil vencer o percurso. Até parecia que a rua alongara-se de tão penoso que vinha sendo perfazer o trajeto.
Na esquina amiudou os olhos e buscou a torre com a sua cruz. Um relâmpago pisca-piscou longe e mais distante um trovão sinalizou a vinda de novas chuvas pesadas. Arminda, inquieta, apenas conseguiu divisar as molduras irregulares do casario.
Transcorreram alguns minutos e outro relâmpago riscou uma fita de luz das nuvens para o canavial.
Logo vieram outros relâmpagos e trovões começaram a abalroar-se rachando o espaço. A cada clarão ela aguçava a visão na esperança de divisar a cruz, mantendo-se ali extática, angustiada, o terço imóvel numa das mãos, os lábios contraídos.
A rua estava quase deserta, as casas contidas num recolhimento de portas e janelas fechadas. Alguns operários passavam apressados sem atentar para a sua presença.
A chuva começou a despencar. Ela, desperta pelo vento que arrastava folhas arrebatadas das árvores e pelo aguaceiro que lhe molhava o corpo, decidiu regressar. Num esforço, aproveitando o facho de mais um relâmpago, procurou a torre. Os óculos embaciados sequer lhe permitiram vislumbrar o casario.
Apoiando-se nas muretas e portões das casas, o vento e a chuva empurrando-lhe os passos, a saia e o blusão entranhando-se na alma, conseguiu voltar.
Ao chegar ao portão deparou-se com o filho vindo aflito a sua procura.
- A senhora não devia ter saído. Não sente a chuva? O vento? O médico disse que a pneumonia que teve...
Arminda não escutou. Atirou-se aos seus braços sussurrando trêmula:
- Piorei da visão. Não vi a torre da igreja.
O filho amparando-a na subida dos degraus, estreitando o abraço explicou:
- Não ouviu que o sino não badalou chamando os fiéis, mãe? Não tive coragem de lhe dizer. Esta madrugada durante o temporal a torre desabou.
Conto de Bartyra Soares retirado do livro Silêncio das Velas Vivas, Editora Novo Horizonte, Recife, 2008.
Naquele dia foi interrompida, não apenas pelos lapsos de seus dedos artríticos, mas também pelos cumprimentos dos operários e transeuntes que a saudavam satisfeitos. O seu retorno à esquina parecia devolver o equilíbrio à paisagem dos fins de tarde da rua.
- A saúde, está boa, Dona Arminda? Olegário aproximou-se.
Sem desviar os olhos da cruz, no alto da torre, ela respirou arfante.
- Menino, soube de sua preocupação com a minha saúde. Hoje rezo esse terço em sua intenção.
Olegário sorriu afastando-se e entrou na sapataria com uma estranha leveza ampliando-se no seu peito.
- Um terço em minha intenção - Pensava. E se valesse para ganhar na loto?
Alongou o olhar até a casa lotérica no outro lado da rua, fazendo das mãos figas e batendo três vezes no salto de madeira de um tamanco.
Arminda, sem nada perceber da cena, continuou murmurando suas preces, a saia de leve ondulando, mais parecendo um brinquedo da brisa da noitinha.
Numa madrugada, uma chuva desabou por sobre toda a cidade. Os ventos rodopiaram rudes arrancando os telhados de algumas casas, do Grupo Escolar Municipal e de algumas lojas no pátio do comércio.
Arminda acordou ouvindo o escorrer de duas ou três goteiras na sala contígua ao seu quarto, marcando o ritmo do tempo noite afora, mas logo adormeceu.
Pela manhã escutou a voz meio exaltada do filho comentando com a esposa:
- O estrago foi grande. Fiz uma ronda por aí.
A voz da nora chegou-lhe temerosa:
- Credo! Nunca ouvi falar numa calamidade dessa por aqui.
Ela sentou-se na cama expectante, as mãos ansiosas procurando o terço debaixo do travesseiro. Mas o filho dando continuidade ao comentário tranquilizou a sua aflição:
- Ainda bem que a nossa loja não sofreu danos.
Durante todo o dia uma chuva intermitente, fininha descia do alto sem nenhum vestígio de azul no céu, um mormaço asfixiando os moradores. À tardinha veio uma estiada, embora nuvens se arrastassem densas para o oeste.
Indiferente a isso, Arminda desceu os degraus de sua casa e encaminhou-se para a esquina, sentindo ser cada vez mais difícil vencer o percurso. Até parecia que a rua alongara-se de tão penoso que vinha sendo perfazer o trajeto.
Na esquina amiudou os olhos e buscou a torre com a sua cruz. Um relâmpago pisca-piscou longe e mais distante um trovão sinalizou a vinda de novas chuvas pesadas. Arminda, inquieta, apenas conseguiu divisar as molduras irregulares do casario.
Transcorreram alguns minutos e outro relâmpago riscou uma fita de luz das nuvens para o canavial.
Logo vieram outros relâmpagos e trovões começaram a abalroar-se rachando o espaço. A cada clarão ela aguçava a visão na esperança de divisar a cruz, mantendo-se ali extática, angustiada, o terço imóvel numa das mãos, os lábios contraídos.
A rua estava quase deserta, as casas contidas num recolhimento de portas e janelas fechadas. Alguns operários passavam apressados sem atentar para a sua presença.
A chuva começou a despencar. Ela, desperta pelo vento que arrastava folhas arrebatadas das árvores e pelo aguaceiro que lhe molhava o corpo, decidiu regressar. Num esforço, aproveitando o facho de mais um relâmpago, procurou a torre. Os óculos embaciados sequer lhe permitiram vislumbrar o casario.
Apoiando-se nas muretas e portões das casas, o vento e a chuva empurrando-lhe os passos, a saia e o blusão entranhando-se na alma, conseguiu voltar.
Ao chegar ao portão deparou-se com o filho vindo aflito a sua procura.
- A senhora não devia ter saído. Não sente a chuva? O vento? O médico disse que a pneumonia que teve...
Arminda não escutou. Atirou-se aos seus braços sussurrando trêmula:
- Piorei da visão. Não vi a torre da igreja.
O filho amparando-a na subida dos degraus, estreitando o abraço explicou:
- Não ouviu que o sino não badalou chamando os fiéis, mãe? Não tive coragem de lhe dizer. Esta madrugada durante o temporal a torre desabou.
Conto de Bartyra Soares retirado do livro Silêncio das Velas Vivas, Editora Novo Horizonte, Recife, 2008.
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