sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Ausência do Sino

Artrítica, a visão cada vez mais encurtando, Arminda foi deixando de subir as ladeiras da cidadezinha para diariamente assistir à missa das 18 horas.

Inconformada, todas as tardes depois que o sol punha em chamas o horizonte mais distante, fazendo reverberar o canavial por sobre os morros e o sino agitava-se conclamando os fiéis, com dificuldade ela descia os degraus de sua casa e encaminhava-se à esquina de onde avistava por entre o casario a torre da igreja afunilando-se para o céu.

Retirava o terço do bolso da saia, os olhos fixos na torre, a cruz no alto iluminada, atraindo seus olhos amiudados por trás dos óculos de lentes espessas.

Começava a debulhar as Ave Marias e os Padre Nossos, as mãos trêmulas perdendo-se no desfiar das contas, fazendo-a reiniciar as orações para em seguida balbuciar algumas jaculatórias acompanhadas de vasto peditório.

Os operários da usina que largavam do trabalho, no apito das 6 horas, no início passavam por ela surpreendidos, recebendo um leve curvar de cabeça quando a cumprimentavam.

Porém, logo foram-se acostumando àquela cena no crepúsculo da cidade e até deixaram de saudá-la a fim de não interromper o seu recolhimento. Um ou outro indagava em comentários entre si, se a Dona Arminda não estava mergulhando num labirinto que lhe tirava a lucidez.

Quantos anos teria? Oitenta? Oitenta e cinco? Os cabelos brancos presos a um coque enroscado na nuca, os sapatos amarrados aos tornozelos, a saia e o blusão compridos, largos, envolvendo o seu corpo magro, não a faziam mais velha?

- Mãe diz que era pequena e ela já era moça feita - dizia Olegário, o sapateiro da esquina, confirmando que sua mãe já beirava os setenta anos.

Sabia-se que, quando enviuvara, se desfizera da casa do engenho Pasto Verde, nos arredores da cidade, para morar naquela rua com um filho - proprietário de uma loja de miudezas. Tinha-se conhecimento também de que possuía outros 6 filhos, que cedo haviam partido para a capital.

Certa vez, desaparecera alguns dias, sequer era vista à janela nas manhãs olhando a passagem dos estudantes em direção aos colégios. Estava doente. A esquina desprovida de sua presença, o sino parecendo tanger inutilmente causaram um impacto nos passantes e nos operários que se detinham à porta de Olegário em busca de notícias.

O sapateiro sentindo-se importante, conhecedor dos achaques de Dona Arminda informava cheio de detalhes:

- Já fui hoje à casa dela bem cedinho. Está melhorzinha. Há dois dias não tem febre. O médico diz que logo volta a andar.

- O que ela tem?

Olegário, o olhar alcançando a massa verde do canavial espalhado pelos morros titubeava:

- É... Bem... Coisas da idade.

Não queria demonstrar que pouco recolhia das informações fornecidas pela mocinha que trabalhava na casa de Dona Arminda.

Uma tarde, quando o retinir do sino desceu pelas ladeiras, Arminda ressurgiu no portão, abatida, as bochechas sugadas, os passos mais lentos que o costumeiro e galgou o trecho que a separava da esquina. Com naturalidade retirou o terço do bolso, fez o Sinal da Cruz e voltou a sussurrar as suas preces.

Naquele dia foi interrompida, não apenas pelos lapsos de seus dedos artríticos, mas também pelos cumprimentos dos operários e transeuntes que a saudavam satisfeitos. O seu retorno à esquina parecia devolver o equilíbrio à paisagem dos fins de tarde da rua.

- A saúde, está boa, Dona Arminda? Olegário aproximou-se.

Sem desviar os olhos da cruz, no alto da torre, ela respirou arfante.

- Menino, soube de sua preocupação com a minha saúde. Hoje rezo esse terço em sua intenção.

Olegário sorriu afastando-se e entrou na sapataria com uma estranha leveza ampliando-se no seu peito.

- Um terço em minha intenção - Pensava. E se valesse para ganhar na loto?

Alongou o olhar até a casa lotérica no outro lado da rua, fazendo das mãos figas e batendo três vezes no salto de madeira de um tamanco.

Arminda, sem nada perceber da cena, continuou murmurando suas preces, a saia de leve ondulando, mais parecendo um brinquedo da brisa da noitinha.

Numa madrugada, uma chuva desabou por sobre toda a cidade. Os ventos rodopiaram rudes arrancando os telhados de algumas casas, do Grupo Escolar Municipal e de algumas lojas no pátio do comércio.

Arminda acordou ouvindo o escorrer de duas ou três goteiras na sala contígua ao seu quarto, marcando o ritmo do tempo noite afora, mas logo adormeceu.

Pela manhã escutou a voz meio exaltada do filho comentando com a esposa:

- O estrago foi grande. Fiz uma ronda por aí.

A voz da nora chegou-lhe temerosa:

- Credo! Nunca ouvi falar numa calamidade dessa por aqui.

Ela sentou-se na cama expectante, as mãos ansiosas procurando o terço debaixo do travesseiro. Mas o filho dando continuidade ao comentário tranquilizou a sua aflição:

- Ainda bem que a nossa loja não sofreu danos.

Durante todo o dia uma chuva intermitente, fininha descia do alto sem nenhum vestígio de azul no céu, um mormaço asfixiando os moradores. À tardinha veio uma estiada, embora nuvens se arrastassem densas para o oeste.

Indiferente a isso, Arminda desceu os degraus de sua casa e encaminhou-se para a esquina, sentindo ser cada vez mais difícil vencer o percurso. Até parecia que a rua alongara-se de tão penoso que vinha sendo perfazer o trajeto.

Na esquina amiudou os olhos e buscou a torre com a sua cruz. Um relâmpago pisca-piscou longe e mais distante um trovão sinalizou a vinda de novas chuvas pesadas. Arminda, inquieta, apenas conseguiu divisar as molduras irregulares do casario.

Transcorreram alguns minutos e outro relâmpago riscou uma fita de luz das nuvens para o canavial.

Logo vieram outros relâmpagos e trovões começaram a abalroar-se rachando o espaço. A cada clarão ela aguçava a visão na esperança de divisar a cruz, mantendo-se ali extática, angustiada, o terço imóvel numa das mãos, os lábios contraídos.

A rua estava quase deserta, as casas contidas num recolhimento de portas e janelas fechadas. Alguns operários passavam apressados sem atentar para a sua presença.

A chuva começou a despencar. Ela, desperta pelo vento que arrastava folhas arrebatadas das árvores e pelo aguaceiro que lhe molhava o corpo, decidiu regressar. Num esforço, aproveitando o facho de mais um relâmpago, procurou a torre. Os óculos embaciados sequer lhe permitiram vislumbrar o casario.

Apoiando-se nas muretas e portões das casas, o vento e a chuva empurrando-lhe os passos, a saia e o blusão entranhando-se na alma, conseguiu voltar.

Ao chegar ao portão deparou-se com o filho vindo aflito a sua procura.

- A senhora não devia ter saído. Não sente a chuva? O vento? O médico disse que a pneumonia que teve...

Arminda não escutou. Atirou-se aos seus braços sussurrando trêmula:

- Piorei da visão. Não vi a torre da igreja.

O filho amparando-a na subida dos degraus, estreitando o abraço explicou:

- Não ouviu que o sino não badalou chamando os fiéis, mãe? Não tive coragem de lhe dizer. Esta madrugada durante o temporal a torre desabou.

Conto de Bartyra Soares retirado do livro Silêncio das Velas Vivas, Editora Novo Horizonte, Recife, 2008.

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