quinta-feira, 27 de agosto de 2020

A menina, as formigas e o boi

Sempre gostei de olhar carreirinha de formiga. Seus movimentos. Suas constâncias. Acho que aprendia muito com elas, que formiga muito ensina. Aquele vaivém continuado, aquele poder. Suas cargas pesadas, todas coletivas, intencionadas. Carregos de coisas misteriosas, fanicos, indistintos. Elas sábias, instruídas, sagazes.

De menina, debruçava na terra, olhava. Acompanhava. Criava estorvos. Interditava. Cacos cheios d'água, depois dava ponte. Derrubava, elas nadando, emboladas. Salvava. Repunha. Malvadezas de criança. Vezes outras trazia agrados. Punhados de farinha grossa. Espalhava no carreirinho delas. Recolhiam grã-a-grã. Vassouravam, levavam tudo para sua casa subterra. Eu inventava coisas. Entrava com elas casa a dentro. Belezas. Jardim, mesas, cadeirinhas, redinhas. Crianças formigas balançando. Brincando de roda, cantando "Senhora dona Sancha". Eu com elas.

Em casa misturava essas coisas. Contava. Afirmava. Tinha entrado na casinha delas. Os vistos. Recontava. Jurava. Minhas irmãs gritavam: Mãiee... Aninha já évem com a inzonas dela... Vem vê ela... Mãe vinha altaneira. Ralhava forte. Me fazia calar. Tinha seus medos. Fosse tara. Um ramo de loucura, eu sendo filha de velho, doente. Meu Pai mortal quando nasci.

Eu era menina boba. Tinha medo da morte, ficar piticega, doente, feridenta, sendo filha de velho. Corria para minha bisavó. Ela era boa. Consolava. Todos viam me mim a velhice e doença de pai. Morreu quando eu nasci.

Eu era assim sardenta, diziam: cara de ovo de Tico-Tico... Chorava. Perna mole - caía à toa. Inzoneira... Não sabia o ser da palavra. Doía só eu. Minhas irmãs não, nenhuma era inzoneira, só eu.

Acreditava no capeta, tinha medo que entrasse no meu corpo. Acreditava - boneca de noite vira gente pequenina. Dão bailes, fazem suas festas, comidinhas, arrumavam suas casinhas. Levantava sutil, ia ver. Depois contava. Tinha visto coisas... Aí Dindinha teve dó de mim. Ralhou forte. Arrazoou - deixassem dessa conversa - filha de velho doente, me faziam parva...

Esse e outros temas de gente grande eu ouvia e fui guardando, fazendo segredo das bonecas, da minha ida constante à casa delas, da intimidade com as formigas. Situei um porãozinho dentro de mim escondido, maliciado.

Não falava mais. Escondia meus achados. Tia Joana veio um dia, me agradou, me deu um vintém, disse - coitadinha - órfã de Pai. Guardei a palavra. Eu era órfã de Pai... Tive dó de mim. Chorei escondido.

Nesse tempo descobri um ninho de fogo-pagou no galho da laranjeira. Morei tempo nele. No oculto. Batizei os filhotes. Dei nomes. Eu era madrinha. Meus compadres. Calada, disfarçada. Ia aprendendo as astúcias.

O quintal era grande. Meu mundo. Via o meu Anjo da guarda, ele me dava consolo, falava do céu, me protegia do capeta. Aprendi a rezar.

E foi que tinha ido as descobertas. Passei no carreirinho delas, reparei. Atravancado, dificultado. Perguntei: tinham achado um boi morto, só que faltava uma perna traseira. Deram conselhos... Mandantes. Escoteiras fossem a ré, procurar, trazer a perna. Estaria de certo lá...

O carreirinho varridinho de suas passagens constantes, baldeando coisas, cargas. Tropeiras, todas. Armocreves - gramática de minha bisavó, ela falava no antigo. Armocreves... guardei.

Agora então, dessa feita, era um boi. Elas todas azafamadas. Aquele povinho escuro, miúdo, incansável, se virando, arrastando, puxando, removendo. Empurra-empurra. Mutirão.

O achado. A caminho, de todo jeito. De arrasto. Carregado. Vai-que-vai... ia. Na ilharga as culatreiras. Vinha. Vinham prazenteiras, ligeiras, na rabadilha. Encontrada a perna.

O grosso estava na frente. Porção delas, festivas. A despensa abarrotada. Suas abastanças. Apareceram demais ajudantes. Avulsas, alvissareiras, esforçadas coletivas.

Mesmo força de formiguinha vale. Vontade decidida exemplar.

Aquele povinho inocente, esperto. Diligente, formigueiro. As estafetas, escoteiras na retaguarda. O achado... vinham vindo de vista, até cantavam seus alegres. Todas apressadas. Tivessem medo. Viessem os donos do boi, armassem briga, contenda, dessem guerra, desnutrição.

Na frente o magote trocando lugares, os pontos. A culatra. A perna separada do boi. Eu atento me exemplava. Aquilo. Aquela correição interessada de todas.

Foi indo e foi dando. Deu. Perdi o prazo das horas. Pensei ajudar. Botar na entrada. Desisti. Deixar tudo por conta de suas diligências. Ficar ali de fiscal curiosa no que se ia dar.

Mãe chamou lá em casa. Surdei. Mãe não tornou a chamar. De certo chegou visita.

O boi, a perna apartada do boi. Aquela província sortida, armazenada, afarturada, mesa cheia garantindo tempo bom.

E foi que chegaram à porta estreita, funil, engenharia, arquitetura delas. Aí, pensei, como vão entrar o boi... Parou o cortejo. Deram chamada. Vieram umas grandonas - modo de dizer - cabeçudas, arruivadas. Dentes, serras, serrotes, ferrão, mandíbulas. Sei... Deram de recortar. Mediram tamanho certo. Perna traseira, perna dianteira, a cabeça repicaram... Arredondaram a barriga. As menorzinhas influídas, puxando para dentro. Sumiam na fura suas cargas, partes recortadas. Armazenavam, entulhavam. Suas barriguinhas cheias, arrotando de certo.

Introduziram tudo. Deram jeito, astutas, diligentes formiguinhas. De comprido lá se foram as pernas. A culatra ovante.

Eu olhando, boba. Aprendendo, que formiga muito ensina. Mestras. Um boi para elas, povinho miúdo de Deus, diligente, influído, achado no carreador, particular delas.

Para mim, menina parva e obtusa, eu via - era um grilo.

Texto de Cora Coralina retirado do livro O Tesouro da Casa Velha, Global Editora, Seleção de Dalila Teles Veras, 1989.

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