terça-feira, 25 de agosto de 2020

Exércitos e guerreiros: O espelho quebrado

Já se viu como há uma contradição aguda na própria base da hegemonia masculina falocrática. O fato de perseguir tão ansiosamente a virilidade leva os machos humanos a se juntarem de modo exclusivo e segregado, o que implica um movimento incontrolável em direção ao que mais os repugna: a submissão fálica. Dentro do simplismo da lógica falocrática, tal exclusividade de machos obriga a existência de alguns dominados por outros, quer dizer, alguns falos teriam que ser subjugados - arcando, portanto, com o ônus da passividade. Segundo esse raciocínio dicotômico, não há nada pior do que um homem subjugado, fronteiriço à situação humilhante da mulher, com prejuízo à sua dignidade viril. Em resumo, no próprio exercício de sua supremacia, o macho está embutindo o perigo de abalá-la pela invasão do perigo feminino, quer dizer, a submissão e, por extensão, a submissão sexual, velada ou não. Qual código de honra seria maleável o suficiente para equacionar essas duas situações opostas? Vejamos o caso dos exércitos. Organizados com base na disciplina hierárquica, supõem necessariamente uma submissão geral e escalonada. Nesse contexto paradoxal, é fácil perceber o clima instaurado de panela de pressão. Daí, pode-se facilmente compreender como os exércitos têm sido, historicamente, fulcros de máxima virilidade mas, ao mesmo tempo, redutos de homossexualidade sublimada no mais alto grau e às vezes até ideologizada. O uso de armas, por exemplo, conduz diretamente a inferências sadomasoquistas. E relações explosivas de poder são tão comuns quanto capim, dentro das tropas. Basta ver o tratamento dado pelos oficiais aos seus recrutas, em milhares de casos conhecidos que ultrapassam fronteiras nacionais - como já vimos no início deste trabalho. É claro que, frequentemente, nem os civis escapam, como ficou comprovado através das recentes filmagens feitas clandestinamente no Brasil, com registro visual de PMs humilhando, torturando e matando cidadãos comuns.

Existem inúmeros estudos analisando a existência e importância das relações homossexuais dentro dos exércitos, em muitas partes do mundo e em diferentes períodos da história. É preciso lembrar, antes de tudo, a clássica reflexão de Freud, que escreveu genericamente sobre a "estrutura libidinosa" do Exército, onde reina a ilusão de um chefe, figura do pai que ama a todos os seus soldados e de cujo amor emana a camaradagem que os congrega. Tal estrutura se repete dentro de cada companhia e unidade, com o capitão e os suboficiais representando o pai dos seus subordinados. O militarismo de tipo prussiano, segundo Freud, seria antipsicológico justamente por negar esse amor através da extrema dureza de tratamento a que são submetidos os soldados. Para ele, a negligência desse fator libidinal, dentro dos exércitos, constitui um perigo prático que leva às derrotas. A ruptura dos laços afetivo-libidinais aumenta a sensação de perigo, criando neuroses e estados de pânico entre os soldados, que se sentem anônimos e abandonados dentro da multidão guerreira.

Para além desse raciocínio freudiano abrangente e lógico, há exemplos históricos mais diretos. O amor masculino entre guerreiros e heróis existente em mitos e povos antigos repete-se demasiadamente para ser mera circunstância. Uma das razões para essa duplicidade masculina é a pressão psicológica das guerras, que aproxima intimamente o medo ao erotismo, gerando um amálgama de amor, desejo e extrema lealdade. Nas culturas de Esparta e Creta, a pederastia chegou a ser incentivada como "virtude militar", dentro da lógica de que pares de guerreiros amantes lutariam como heróis, para defender um ao outro. O famoso herói grego Epaminondas amou quase todo o batalhão sagrado de Tebas. Consta que, após o combate de Mantinea onde foi morto, dois belos soldados seus amantes suicidaram-se sobre o seu cadáver. Há uma explicação mítico-religiosa para isso. Na Grécia antiga, onde a relação homossexual era um costume militar, desenvolveu-se entre os guerreiros um culto especial a Eros, deus do amor. Em suas representações iconográficas, os dois deuses crianças Eros e Anteros (o Direito e o Reverso) apareciam envolvidos em lutas e abraços. Através dessa conexão mítica entre Eros (o Amor) e seu oposto (a Guerra), as campanhas militares vertiam-se como batalhas de amor. Não por acaso, a guerra implicava muito frequentemente o defloramento dos vencidos - praticado, por exemplo, entre os longobardos que invadiram o império romano. Esse erotismo de guerra adquiriu fixação mítica, transformando-se em cantos religiosos, insistentemente repetidos tanto nas barracas militares quanto nas prisões.

Entre os antigos celtas, organizados numa aristocrática sociedade guerreira, praticava-se amplamente o amor entre homens, sem manifestar qualquer menosprezo pela passividade masculina no ato sexual. Os guerreiros profissionais celtas, chamados gestates, lutavam nus por motivos metafísico-religiosos: acreditavam que assim seus corpos absorviam melhor as energias da natureza. O historiador Políbio narra o pânico que despertou entre os romanos a visão daquele exército inimigo de jovens alourados e de físico esplêndido, vestidos apenas por seus colares e braceletes de ouro. Nas sagas irlandesas ainda hoje encontram-se resquícios da afeição que ligava esses guerreiros entre si. Na Roma antiga, como já vimos, a prática normal da homossexualidade encontrava algumas restrições, inclusive contra os exoleti, ou seja, casais de homens de idade igual, vistos com maus olhos no contexto da vida social do período, que só permitia o amor masculino entre senhores e adolescentes. Consta que os exoleti eram muito comuns entre os soldados, mas as autoridades imperiais nunca tomaram medidas legais contra eles, já que o Exército romano era um mundo fechado. Na verdade, os imperadores se encontravam numa posição muito delicada, pois o conjunto do Exército praticava a religião oriental de Mitra, de tendência fortemente homoerótica. Reprimi-la iria significar, portanto, um confronto com aqueles mesmos homens capazes de fazer e desfazer imperadores. Tal situação perdurou em Roma mesmo depois que os cristãos tomaram o poder. Mas não por muito tempo, pois afinal o cristianismo herdara boa parte do ideário puritano do judaísmo. Entre os hebreus do Velho Testamento, praticantes de uma religião totalmente controladora, a vida sexual se resumia à estrita cópula homem-mulher, com fins procriativos, dentro do casamento. Para se ter uma ideia, era proibido ao homem até mesmo segurar seu próprio pênis enquanto urinava, provavelmente na tentativa de evitar tentações masturbatórias. O livro do Deuteronômio estipulava quantas vezes e quando os homens de diferentes profissões e castas deviam ter relações sexuais. Detalhe pitoresco: enquanto os condutores de camelo só podiam manter relações sexuais uma vez por mês, aos marinheiros só era permitido copular uma vez a cada seis meses - talvez por causa das viagens prolongadas que os afastavam das esposas. Submetidos a um regime de abstinência tão rigoroso, é de se perguntar se os marinheiros hebreus não encontravam nessa prescrição um forte pretexto para resolver entre si as premências sexuais - de modo que as relações homossexuais se consagravam a fortiori. Aliás, provavelmente por motivos semelhantes, as autoridades de Veneza, em 1420, reclamavam da proliferação de relações homossexuais nos seus navios e, temerosos da punição divina, ofereciam recompensa de 500 liras para quem denunciasse os marinheiros sodomitas.

Apesar do rigoroso controle cristão, conhecem-se muitos exemplos de homossexualidade nos exércitos, durante a Idade Média. A partir do século XI, as disputas dentro da aristocracia francesa e inglesa criaram grupos de jovens deserdados, que iam juntar-se em pequenos exércitos turbulentos, sem rumo, sequiosos de glória e novas conquistas. Alijados das normas morais familiares, eles eram, em geral, liderados por guerreiros mais velhos e experimentados, integrando-se em grupos ligados por amizade e lealdade. Vivia-se aí um prolongado período de iniciação, na busca de "prazer e aventura muitas vezes fora dos caminhos cristãos". Alguns desses bandos tornaram-se famosos, como a "família" de Hugh de Chester, em que se incluíam jovens cavaleiros, clérigos e cortesãos, que apreciavam "o sexo, os jogos, a equitação e outros vícios" - e muitas vezes foram instados por pregadores a "escapar da destruição de Sodoma". Sucessora desses pequenos exércitos, a famosa Ordem dos Templários, cavaleiros monásticos que participaram das cruzadas, foi perseguida e dizimada em toda a Europa, no século XIV, numa ação conjunta entre o poder secular e eclesiástico, sob acusação de heresia e prática generalizada da sodomia entre seus membros, inclusive durante rituais secretos de iniciação. O próprio emblema da Ordem, que representava dois templários montados no mesmo cavalo, chegou a ser visto como símbolo de suas práticas sodomíticas. Na França do século XVIII, a aristocracia estava repleta de efeminados que desfilavam ostensivamente com seus amantes, como era o caso de Felipe de Orleans, irmão de Luís XIV. Os gostos homossexuais eram partilhados por altas patentes do Exército. Assim, o general Louis Vendôme, considerado um dos grandes estrategistas do período, nunca escondeu suas inclinações sexuais por criados e oficiais subalternos, durante toda sua carreira. Era igualmente famoso o caso do marechal Huxelles, senhor da Alsácia, que absolutamente não desdenhava as orgias gregas promovidas por alguns membros do seu estado-maior e de seu séquito.

No mesmo período, fora do Ocidente, há o caso célebre dos exércitos de samurais, onde se estimulava igualmente a relação de casais como emulação fraterna, considerando que "o amor entre homens combina muito bem com o Caminho do Guerreiro", segundo afirmava o Hagakure, livro de ensinamentos éticos, escritos entre os séculos XVII e XVIII. A prática, que lembrava o modelo grego, chamava-se shudo, uma abreviação de wakashu-do ou "caminho do jovem", significando o aprendizado do rapaz para ser forte, corajoso e independente. Para tanto, o jovem samurai era amado por um guerreiro mais velho, até completar sua maioridade, podendo depois arranjar ele próprio um wakashu e também casar-se para constituir família. O jovem acompanhava seu mestre lado a lado, nas batalhas, para aprender com ele as técnicas de luta e os códigos de honra. Também é curioso como os samurais prezavam muito sua aparência. O livro de etiquetas aconselhava que usasse ruge, quando se sentissem muito pálidos. Na era do sengoku (guerras interprovinciais nos séculos XV e XVI), eles costumavam perfumar os cabelos com incenso e se maquiar, antes de ir para a batalha: um verdadeiro guerreiro não devia ter má aparência mesmo na morte.

Na Europa da virada do século XX, causaram sensação os "casos" amorosos envolvendo altas patentes do Exército alemão e o próprio imperador Guilherme II, motivo de inúmeras piadas maldosas nos jornais. Isso para não falar do rumoroso assassinato, em 1934, do general nazista Ernst Röhm e outros membros do estado-maior das SA, na chamada Noite das Facas Longas. Suas práticas homossexuais, nada discretas, eram bastante conhecidas por Hitler, mas só foram publicamente denunciadas quando interessou ao seu poder centralizador, ameaçado pelas interferências de Röhm. A partir daí, aliás, o famoso Parágrafo 175 do Código Penal, que criminalizava atos homossexuais, transformou-se em "lei de proteção ao sangue e à honra alemães" e passou a ser severamente utilizado. A Gestapo criou então uma subdivisão especial para prender os "degenerados sexuais", que acabavam enviados para campos de concentração de nível 3 (sem retorno), aí sendo identificados com um triângulo rosa nas roupas. Em 1942, o regime nazista imputou formalmente a pena de morte ao crime de homossexualidade, com especial rigor dentro das forças armadas, onde se recomendava a morte imediata dos faltosos. Com certeza, o nazismo tentava exorcizar cada vez mais a sua sombra: Hitler pessoalmente achava que a verdadeira causa da decadência da Grécia antiga tinha sido a homossexualidade. Enquanto isso, as atitudes na própria União Soviética revolucionária passaram da tolerância ao expurgo, à medida que o país se militarizava. Em 1934, Stalin impôs uma nova lei, que punia com até oito anos de prisão os atos homossexuais, por "crime social". Num artigo sobre o humanismo proletário, Máximo Gorki escrevia: "Nos países fascistas, a homossexualidade arruína a juventude e floresce sem punição. Suprima-se o homossexual e o fascismo desaparecerá." Estava inaugurado, então, um raciocínio que a esquerda mais reacionária passaria a repetir com insistência, daí por diante: a homossexualidade era "sintoma de decadência burguesa". Em várias cidades da União Soviética, seguiram-se prisões em massa de homossexuais, que foram enviados para a Sibéria. Consta que o clima de pânico atingiu sobremaneira o Exército Vermelho, onde reportou-se a ocorrência de numerosos suicídios.

A Marinha inglesa, por sua vez, sempre respondeu com muita severidade aos casos de pederastia, especialmente nos períodos de guerra, acreditando que tais práticas destruiriam o espírito agressivo das tropas. Assim, pesquisas mostram que entre 1756-1806 houve 19 execuções de marinheiros, por praticar o chamado "pecado inominável", tendo subido para 21 o número de executados entre 1810-1816. O espírito de animosidade parece ter continuado, a considerar as recentes declarações públicas de um alto comandante da Aeronáutica inglesa de que sentia aversão por seus colegas bichas. De fato, entre 1991 e 1994, as forças armadas britânicas expulsaram 260 pessoas, de todas as patentes, envolvidas em casos homossexuais - só no Exército, havia quatro majores, dois capitães e 113 tenentes. Reação semelhante sempre ocorreu nas forças armadas americanas, que puniam severamente o sexo entre homens, considerando os homossexuais como "psicopatas sexuais". Em 1919, ocorreu um caso peculiar e de resultados muito significativos: na Base Naval de Treinamento, em Rhode Island, foi criado um pelotão para perseguir militares suspeitos de "perversão sexual". O curioso é que o pelotão chamariz foi escolhido a dedo, entre os jovens alistados, para fazer sexo com os suspeitos e apresentar provas concretas diante dos superiores. Para surpresa de todos, os relatórios dos chamarizes indicaram uma vasta rede de encontros clandestinos, que incriminava militares insuspeitos e até casados, em lugares tão inocentes como a Associação Cristã de Moços (A.C.M.) da cidade de Newport, centro de verdadeiras orgias, envolvendo também civis, mas comandadas por marinheiros travestidos. Quando a Marinha tentou indiciar os culpados, não conseguiu distinguir quem era homossexual e quem era "normal" - mesmo porque um dos relatórios indicava um "normal" como tendo feito sexo oral com quase todos os 20 recrutas, numa só noite. Para complicar ainda mais, o tribunal militar comprovou, com surpresa, que os rapazes do pelotão chamariz tinham participado intensamente em todos os tipos de atos sexuais com homens, comprovando nos interrogatórios que eles tinham sentido prazer e até solicitado sexo espontaneamente com colegas. Quando um padre foi preso na rede e levado a julgamento, a Igreja Católica ameaçou fazer escândalo e acusou a Marinha de estar usando métodos imorais, por ensinar o vício a jovens inocentes. No ano seguinte, os militares foram obrigados a libertar os "culpados" e suspenderam os inquéritos, acuados ante um fenômeno sem solução. Ainda assim, em 1921 a Marinha condenou, num caso isolado, um recruta homossexual a 15 anos de trabalhos forçados, além de pagamento de multa e expulsão desonrosa. Nas décadas de 20 e 30, tanto o Exército quanto a Marinha dos EUA mandaram inúmeros homossexuais para a prisão. Na Prisão Naval de Portsmouth, em New Hampshire, mais de 40% dos presos eram condenados por sodomia ou felação. Como a segregação não resolvia o problema, a paranoia cresceu tanto que no forte Leavenworth, em Kansas, introduziu-se o costume de punir os acusados de homossexualismo, obrigando-os a usar um enorme D amarelo das costas - significando "degenerado". O  embate de forças desejantes parece ter continuado. Em 1944, dois militares (amantes) pegaram um ano de prisão em corte marcial, por publicarem um jornal gay chamado Myrtle Beach Bitch. O trocadilho implicado no nome revela o sentido claro de provocação - A puta da Praia Mytle. Era para não deixar nenhuma dúvida. As recentes polêmicas sobre a participação de homossexuais nas forças armadas americanas mostram que o problema continua candente, emudecendo as promessas políticas de abertura feitas nas campanhas do então candidato presidencial Bill Clinton.

Mas há mudanças ocorrendo em outros países. Nas forças armadas holandesas, os arquivos da justiça militar (pesquisados pelo antropólogo Gert Hekma) mostram que, entre 1830 e 1899, dos 104 processos movidos por crimes sexuais, 72 indicavam transgressão homossexual, com punições que variavam de três meses a seis anos de prisão, sem falar do rebaixamento hierárquico (a pena de morte tinha sido abolida desde 1811). Claro que os dados estatísticos apontados fornecem uma pálida ideia da prática homossexual, já que se conhece apenas o que foi descoberto e julgado. Além do mais, tendia-se a notificar sobretudo aqueles faltosos reincidentes que tinham manchado sua virilidade ao ocupar a "posição de mulher", ao passo que o papel ativo na relação homossexual não era considerado transgressor pelos militares holandeses. Mais ainda: devia-se evitar até mesmo nomear a sodomia (por isso chamada "crime inominável"), muitas vezes indicada apenas como "lascívia" ou "postura asquerosa". Isso dificultava ainda mais qualquer indiciamento judicial. Com todas as repressões impostas, pode-se inferir que grande parte da prática homossexual entre os soldados e marinheiros efetuava-se como contatos efêmeros e ocultos, ainda que repetidos, tendendo portanto a passar despercebidos pelos superiores. Na verdade, era mais cômodo para todos que ninguém desse maior importância a essa transgressão desde que não fosse muito aberta nem subvertesse o "padrão de gênero" viril. Dentro da Marinha, conhecem-se casos de julgamentos ocorridos na Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, entre 1705-1792, período em que foram julgados 200 casos de sodomia, diante da corte de justiça da Cidade do Cabo. Um oficial marinheiro, desligado por suspeita de prática homossexual, no final do século XIX, teve a história de sua vida publicada numa das primeiras revistas psiquiátricas do período, na Holanda. Aí ele se classifica como "uraniano", termo médico então comumente usado como sinônimo de homossexual. Ele conta que, em dois anos e meio na Indonésia, tinha feito sexo com 51 nativos e, durante um ano dentro de um navio, relacionara-se sexualmente com 30 marinheiros europeus, muitos deles repetidamente; nos três meses seguintes, serviu numa base naval perto de Roterdã, onde mantivera relações sexuais com outros seis marinheiros. Só esse relato já dá uma ideia de como a prática homossexual estava difundida na Marinha. Isso parecia, aliás, sobejamente conhecido pela medicina: em discussões ocorridas no período, sobre a legalização da prostituição feminina na Holanda, um médico que servira a bordo de navios militares alertava que a presença dessas mulheres evitaria o exemplo de "milhares (de homens) que secretamente satisfazem a si mesmos na solidão ou com alguém do mesmo sexo". Atualmente, as coisas são com certeza bem diferentes na Holanda, onde é possível encontrar nas ruas policiais de brinquinho na orelha. E mais: o Exército não apenas aceita homossexuais declarados como mantém uma espécie de sindicato organizado por eles. Num país tolerante como esse, a ideia é que todos os segmentos devem estar representados nas instituições mais importantes, para assim refletir com fidelidade o tecido social.

Convém observar que se está aí num terreno movediço. Se a relação entre eros (amor) e tânatos (morte) é uma vivência quotidiana do humano, os exércitos constituem um campo privilegiado para esse encontro. Entre os seres humanos, aqueles profissionais preparados para a mortandade indiscriminada das guerras encontram-se, obrigatoriamente, mais próximos ao mundo de tânatos. Estranho é que as paranoias masculinas falocráticas não enxergam a lógica de tal corolário, tratado como resultado de oposições inconciliáveis. Georges Bataille relevava a conexão erótico-tanática ao lembrar que foi a consciência clara da morte que levou os homens da era Paleolítica a pintar tantos falos em suas cavernas, numa espécie de convergência de duas verdades básicas. Inicialmente, erotismo e morte parecem opostos, porque o desejo é resultado da vida e a vivência erótica é o ápice da afirmação vital. Desde os primórdios, foi o conhecimento da morte que deu corpo ao erotismo, diferindo os homens pré-históricos dos animais. Mas também é verdade que a perspectiva permanente da morte nos leva à violência exasperada e quase desesperada do erotismo. Não por acaso, o orgasmo é chamado de "pequena-morte", entre os franceses. A ruptura tanática confina com a explosão erótica porque "a desordem sexual (...) nos transtorna, às vezes nos devasta (...) e nos compromete na violência do abraço". Para Bataille, ocorre o oposto da união quando dois seres se encontram sexualmente: ambos partilham "um estado de crise em que tanto um quanto outro estão fora de si", dominados pela violência. Assim, no espelho erigido de tânatos, tal como ocorre dentro dos exércitos, fatalmente estará refletida a face de eros. Quebrar o espelho da morte para refrear eros denuncia ainda mais o paradoxo embutido no fascínio amoroso que a morte exerce sobre todos nós. O espelho rompido é, certamente, a melhor maneira de reforçar, pelo recalque, a presença dominadora de eros no universo tanático dos exércitos.

Capítulo 15 do livro Seis Balas Num Buraco Só - a crise do masculino, de João Silvério Trevisan, Editora Record, 1998, Coleção Contraluz.

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